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Reverso

versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.33 no.62 Belo Horizonte set. 2011

 

O filme: “Cisne Negro” – alguns comentários

 

Movie: “Black Swan” – some comments

 

 

Cristina Gaoni Medioli

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nina, a protagonista do filme “Cisne Negro”, é uma bailarina clássica em busca da perfeição. À medida que ela avança em direção a essa meta, os limites entre a realidade e a alucinação vão se atenuando e levam a sensações muito perturbadoras. Sabendo que nem tudo pode ser representado no palco da vida, vemos que a pulsão da morte acaba puxando Nina para o abismo. Assim, o fim da peça do que pode ser representado coincide também com o fim da vida da protagonista. Nesta tragédia, Érika, a mãe de Nina, assiste impotente ao desfecho de todos os seus sonhos. Nina nunca mais será a doce menina que, encarnando a perfeição, deveria resgatar as frustrações profissionais da mãe. Saindo de cena, Nina não vai mais ter que enfrentar as investidas de Thomas, o diretor artístico que queria estimular nela a audácia, a ousadia e a sedução, não vai mais precisar aprender a seduzir os outros, pois no caminho de sua vida, foi ela que foi levada pela trágica força sedutora do Real da morte.

Palavras-chave: Impasses na relação mãe-filha, Devastação, Tentativas de separação, Real da morte.


Abstract

Nina, main character of ‘Black Swan’, is a classic ballet dancer who seeks perfection. As she progresses toward her goal, the boundaries between reality and hallucination lead to highly disturbing sensations. While understanding that not everything can be depicted in the center stage of life, we are able to perceive that the pull of death eventually brings Nina to the abyss. Therefore, the end of the ballet piece leads, also, to the end of the character’s life. The tragedy displays how Nina’s mother sees the conclusion of her dreams in utter powerlessness. Nina will no longer be the sweet child, representing perfection, who should re-attain the professional frustrations of her mother, these meaning the source of regrets for the latter. After exiting the stage, Nina has no longer to tolerate Thomas’s advances, who attempts to provoke in her audacity, seduction and sensuality, for she was, during her life, conducted by the seductive power of death.

Keywords: Impasse in the relation of mother-daughter, Devastation, Attempts of separation, Reality of death.


 

 

O filme “Cisne Negro”, do cineasta Darren Aronofsky, é um precioso exemplo dos possíveis impasses no relacionamento mãe-filha.

A história de Nina, a protagonista, nos remete à questão sempre implícita no feminino, do que é ser uma mulher. Sabemos que as mulheres, por não se submeterem totalmente a lei fálica, precisam, a partir de um ato inédito, inventar a própria, pois tem características de singularidade, feminilidade.

Trata-se frequentemente de uma construção aonde os mecanismos de identificação ao outro materno vêm a construir o suporte (metaforicamente a fundação) sobre o qual se fixam os requisitos da feminilidade, pois encontram, assim, algumas amarras simbólicas e imaginárias. Fundamental para a mulher é a referencia maternal, mas Érika, a mãe de Nina, não serve como apoio nem para a maternidade e nem para a identidade de ser desejante, que segundo Freud seriam os dois possíveis destinos da mulher (Freud, 1933 (1932)).

Érika viveu a maternidade como um erro, uma frustração, pois teve que interromper a carreira profissional, a oportunidade de ser mãe teve para ela escasso valor sublimatório. Amargurada ela projeta agora as próprias expectativas no futuro promissor da filha bailarina.

Lembrando Freud em Sobre o Narcisismo (Freud 1914), vemos que a imortalidade do ego, duramente reprimida pela realidade, renasce ao projetar-se nos filhos, encarregados assim de resgatar os pais das próprias frustrações. O narcisismo dos pais transformado em amor objetal, inequivocamente, revela sua natureza anterior. Assim Érika, que lamenta a mortificação do próprio desejo, agora quer que Nina, a filha, consiga aquilo que ela foi impedida de realizar, ou seja, se tornar uma bailarina perfeita. Este imperativo acompanhará Nina até a morte, pois só neste momento de despedida ela sentirá ter alcançado este ideal de perfeição.

Nina vive uma relação opressora com a mãe e nem a possível, mas sempre precária identidade oferecida pela identificação ao grupo, constituído nesse caso pelas colegas de dança, apazigua o enigma do seu ser, pois ela vive afastada delas.

Este isolamento favorece o retorno do gozo para o próprio corpo, cuja integridade é desde sempre ameaçada pela voraz presença de Érika.

Ao longo da filmagem assistimos às inúteis tentativas da filha de se rebelar contra a mãe. Nina tem crise de vômito como tentativa de expulsar a invasão deste outro materno que já a amamentou, mas vê-se mais uma vez obrigada a comer o bolo que a mãe comprou, para comemorar a notícia de que Nina foi escolhida para representar a protagonista na peça teatral “A lagoa dos cisnes”.

De fato Érika ameaça jogar o bolo na lixeira, se a filha não o comer, e Nina sente-se assim ameaçada de ser colocada no lugar de dejeto, se não realizar o desejo da mãe. Nina tenta assumir uma posição de sujeito escapando da mãe que queria que ela ficasse em repouso para se dedicar só aos ensaios e que declara: “Eu sou a rainha da lagoa dos cisnes, você nunca saiu de lá”.

Entretanto, é tortuoso para a nossa protagonista o caminho da formação de uma identidade própria, pois o outro que na função de espelho deveria refletir para ela a própria identidade, só pode ser apreendido em pedaço; por isso ela rouba o batom da bailarina ex-estrela, que ela vai substituir no teatro. São pedaços deste outro, nunca apreendido por inteiro e sempre persecutório.

Por este motivo Nina, na alucinação, depois de ter expulsado a mãe do quarto, se despedaça, as pernas quebram e ela desmonta igual a um robô e cai no chão, cai como objeto, mas não há algo a mais que possa representá-la.

No caminho da formação da subjetividade, fundamentais são a alienação e a separação, o sujeito tem que sair da posição de alienação ao outro materno na qual se encontra ao nascer, mas para Nina existe aqui um impasse, pois na separação ela se desintegra. Nina só existe como a doce menina da mãe que aceitou se enquadrar no desejo dela, tornando-se bailarina. Por isso, ao ser apresentada a dois amigos da colega Lily, esta lhe pergunta: “E você, quem é você?” Não entende e responde “uma bailarina”. Só depois que o rapaz repete a pergunta para ela, é que, finalmente, fala o próprio nome.

O filme não relata nada do pai de Nina e isso nos leva a pensar que a influência dele na vida da filha tenha sido escassa, se não totalmente ausente, como no caso provável de Érika ser uma mãe solteira. Citando Lacan no Seminário 4 (1956-1957), lembramos que o pai é o palito (falo na metáfora paterna) na boca do jacaré (metáfora referente à mãe) para impedir que esta se feche.

Ao expulsar a mãe do quarto, Nina coloca uma barra de ferro atrás da porta, falo metafórico a impedir que a boca do jacaré se feche. Metáfora paterna tardia e insuficiente, pois o olhar da mãe a persegue e está presente em todos os retratos que pintou dela e da filha. Neles os olhos acompanham persecutoriamente os movimentos de Nina. Uma porta fechada não basta, não há como fugir do olhar materno ameaçador e devastador. Mesmo tendo tentado se desfazer da infância (o cisne braço) jogando fora os bichinhos de pelúcia que ainda habitavam o seu quarto, atrelando-a ao passado, Nina é prisioneira do olhar materno, o gozo alheio deixa marcas no seu corpo, que ela fere em testemunho de um gozo descontrolado.

Nina não tem como esconder os arranhões e as feridas do corpo machucado para a mãe, que resolve despi-la para vistoriá-la e decide aparar suas unhas, assim como envolve suas mãos em luvas, enquanto ela dorme, para que ela pare de se arranhar. O outro materno que deveria refletir para ela a unidade corporal, ao contrário faz corte e despedaça a sua integridade.

Nina, assim, não consegue se ver separada da mãe, e ao se acariciar debaixo dos lençóis, é interrompida pela alucinação de que a mãe está no quarto vigiando-a; o prazer do corpo é assim paralisado pela presença da mãe.

Nina precisa encontrar a própria subjetividade, fugir do gozo mortífero materno e procurar, assim, um ideal de feminilidade que lhe sirva de apoio na figura de Lily, a colega mais desinibida e capaz de seduzir o produtor teatral. Numa relação sexual alucinada ela, ao juntar o próprio corpo ao da colega, procura descobrir nele os segredos da feminilidade.

Entretanto, o imaginário das suas fantasias, tendo pouca ancoragem no real e no simbólico, torna-se persecutório e a partir daí, Lily será vista como usurpadora, aquela que quer tomar o lugar dela. Não se reconhecendo como ser desejante, Nina foge também das investidas de Thomas, o diretor artístico, que ao beijá-la recebe em troca uma mordida. Frente ao real e à alteridade dos sexos, Nina não encontra recurso para sustentação de um desejo que seja dela, singular. Angustiada, segue assim mais uma vez a trilha do desejo alheio, renunciando ao que exista nela de terno, cisne branco, perfeito na dança, para interpretar a sensual e cruel bailarina do cisne negro; é isso que o produtor espera dela, o imperativo da perfeição sendo agora substituído pelo imperativo da sedução.

Fundamental é o papel deste protagonista masculino para Nina descobrir o que é esperado em uma mulher. É ele que lhe rouba o beijo no qual, apesar da mordida recebida, ele aprecia a tentativa de virada da tímida Nina para uma mulher que sabe o que quer e sabe se impor. É ele que declara a uma desprovida Nina: “Touch yourself”, experimente o seu corpo, se conheça, e ainda, depois de uma investida sobre ela, fala que este é um exemplo de sedução dele sobre ela e não o contrário, como ela deveria afinal aprender, já que é no papel do cisne negro, no qual ela tem mais dificuldade de se encontrar, que é esperado o seu melhor desempenho.

Assim, Nina teria que ser ao mesmo tempo a doce menina frágil, submissa e ingênua, como a mãe queria, e a garota audaz, sedutora e sensual como exige a interpretação do Cisne Negro.

Nina se olha no espelho mais uma vez, procurando uma imagem confortadora, mas vê refletida a imagem persecutória da colega Lily. A angústia é grande, e sentindo-se puxada pelo abismo, em uma luta alucinada, ela mata Lily, mas percebe depois que o corpo da colega não estava ali. Depois cumpre o seu macabro ritual, e com estilhaço de vidro enfiado na própria barriga, ela ferida mortalmente vai ao palco. Puxada pelo abismo ela “cai” da cena, cai como objeto, na sua perfeita, mas última interpretação, aquela de um ser que não consegue se tornar sujeito.

 

Bibliografia

FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933 [1932]). Conferência XXXIII: Feminilidade. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XXII.         [ Links ]

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XIV.         [ Links ]

ZALCBERG, Malvine. Cisne Negro: perdendo-se na perfeição. In Opção Lacaniana, online nova serie. Ano 2, n.IV, mar./2011. ISSN 2177-2673. Disponível em http://www.opcaolacaniana.com.br/texto8.html. Acesso em 20/05/2011.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 4: a relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Pisa, 499 – Bandeirantes
31340-690 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: crimedioli@terra.com.br

RECEBIDO EM: 25/05/2011
APROVADO EM: 15/07/2011

 

 

Sobre a Autora

Cristina Gaoni Medioli
Advogada. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.