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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.34 no.64 Belo Horizonte dez. 2012
ARTIGO
A ética do desejo e a política da falta
The ethic of desire and the policy of lack
Arlindo Carlos Pimenta
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
Campo Lacaniano - BH
RESUMO
O autor apresenta um estudo da questão da política e sua relação com a psicanálise. Em primeiro lugar, dá ênfase ao aparecimento da psicanálise como política da falta-a-ser, na relação psicanalista-psicanalisante (psicanálise em intensão). Em extensão a psicanálise se apresenta em duas faces, a saber, na relação entre os analistas e a causa analítica e em sua presença na pólis. Tece ainda breves considerações sobre questões próprias ao Brasil.
Palavras-chave: Poder, Estratégia política, Transferência, Sujeito suposto saber, Causa analítica, Formação do analista, Discurso do capitalista.
Abstract
The author presents a study of the issue of politics and its relationship with psychoanalysis. First, it emphasizes the emergence of psychoanalysis as a policy of lack-of-being, in the relation psychoanalyst-analysand (Psychoanalysis in intension). Psychoanalysis in extension comes in two faces: the relation between analysts and the analytical question, and its relation to the polis. He also presents brief considerations about those questions specifically in Brazil.
Keywords: Power, Political strategy, Transference, Subject supposed to know, Analytical cause, Analyst’s trainning, Capitalist discourse.
Freud refere-se a três profissões impossíveis: governar, educar e curar, e assinala no prefácio do livro de Aichhorn que, por estar inteiramente ocupado com o curar, não teve tempo suficiente para se ocupar com a aplicação da psicanálise ao educar, o que não significa para ele desprezo ao alto valor social do trabalho realizado por aqueles que se ocupam deste mister.
Como assinala Coutinho Jorge (2004), Freud retoma esta mesma argumentação naquele que seria um dos seus últimos escritos, Análise Terminável e Interminável, de 1937, ponderando que, quanto às três profissões – e aí Freud não fala mais em curar, porém em psicanalisar –, podemos, de antemão, estar seguros que chegaremos a resultados insatisfatórios.
Em vários de seus escritos, mormente no Mal-Estar (FREUD, 1929) e quando responde a Einstein (FREUD, 1932), Freud mostra quanto se interessava pelas questões políticas.
O impossível envolvido nas três profissões sem dúvida tem a ver com o real do poder e o seu manejo, ou seja, seu uso e abuso.
Como nosso tema diz respeito à psicanálise e à política, privilegiaremos o governar e curar, deixando o poder do pedagógico para ser aprofundado em outra ocasião.
Vamos desenvolver a temática da política da psicanálise em intensão, ou seja, no processo analítico, e a política da psicanálise em extensão será desenvolvida na perspectiva do governar, abordando questões próprias a nossa cultura e nosso país.
Política na intensão
Freud, em seus escritos técnicos e em outros textos, menciona como fator fundamental para o desenvolvimento da transferência e eficácia do processo a autoridade do médico. Em suas recomendações adverte várias vezes de um certo distanciamento afetivo e da atenção que se deveria dar ao furor curandi para se preservar a referida posição de autoridade.
É, no entanto, Lacan (1998a), em seu texto de 1958, A direção do tratamento e os princípios de seu poder, que vai aprofundar esta questão do poder na relação analítica. Para tal se vale do livro de Karl Von Clauswicz (Da guerra).
A direção do tratamento é equiparada à direção a se dar a uma guerra. E isto tem suas razões. Lacan (1998b, p.325) tenta dar uma resposta ao texto Variantes da cura tipo ou Variantes do tratamento-padrão, onde se faz uma apologia à análise das resistências cujo adepto maior era Wilhelm Reich. Este considerava que as análises deveriam ser verdadeiros combates com os analisantes e que o analista deveria atacar as resistências.
Lacan retoma de Clauswicz o termo direção. Para Clauswicz, a guerra é uma sucessão de combates que devem ser preparados e direcionados. Os combates são encontros isolados que devem ser combinados para atingir o objetivo. A preparação de cada combate é a tática e a combinação de todos os encontros, a estratégia.
Em termos de uma análise, a tática corresponderia a cada encontro, a cada sessão, enquanto a manobra da transferência corresponderia à sucessão dos encontros, ou seja, à estratégia.
A política
A finalidade da tática e da estratégia é a obtenção de um fim político, ou seja, obter a vitória.
Lacan postula aqui a política da falta-a-ser e vai retomar este tema e insistir nele durante todo seu ensino.
Lacan aponta que, ao contrário, não é com seu ego, mas com a falta que o analista trabalha. Essa falta pode ser declinada de várias formas: falta de significante que complete o Outro, falta de relação de complementaridade, falta de ilusão de uma felicidade total etc. A partir desta política, Lacan vai definir a ética da psicanálise.
É a falta que norteia a política na direção do tratamento
O analista é bastante livre com relação à tática, ou seja, a interpretação; menos livre, porém, com relação ao manejo da transferência (estratégia), mas é a política da falta-a-ser que domina a estratégia e a tática.
A tática, isto é, a interpretação, é sempre correlata aos ditos do analisante.
Quanto à manobra da transferência, esta deve ser feita no sentido de, por exemplo, ir contra as idealizações, contra as demandas do sujeito, não respondendo a elas e não cedendo às bajulações do paciente. Responder não à demanda é fazer vigorar o desejo, portanto a falta.
“A dimensão da demanda ao analista na transferência abre o registro do poder em análise em seu duplo sentido: como potência, ou seja, o poder exercido por alguém, e como potencialidade, possibilidade de responder a um apelo” (QUINET, 2009, p.43).
Na demanda de amor, com seu aspecto incondicional, o sujeito se encontra assujeitado ao grande Outro. Este Outro, em seu poder, sua onipotência tem como responder, tem para dar. Portanto, este Outro não é marcado pela falta. É a este Outro não barrado que o sujeito se aliena através da identificação, para se ver como digno de amor. É o sujeito que delega ao Outro a onipotência ao situá-lo como ideal do eu, I(A). A Onipotência do Outro, sustentada pela fantasia, se não manejada adequadamente e dirigida pela política da falta-a-ser, reduz o processo a uma psicoterapia e se afasta do processo analítico.
O sujeito suposto saber decorre de uma atribuição ao Outro de algo que vem escamotear sua falta estrutural, ou seja, algo relativo ao saber.
A falta do Outro é suprida pelo saber suposto ao analista pelo analisante. Este Outro aparece como poderoso, em função da projeção dos traços constitutivos do ideal do eu.
Uma vez que o amor é sempre recíproco, o amor de transferência é uma demanda de amor dirigida ao analista, que é chamado não só a encarnar o sujeito suposto saber, mas também o sujeito suposto poder. O suposto saber é efeito da associação livre desencadeado pela articulação de um significante qualquer, tal como fica explicitado no matema da transferência.
O sujeito suposto poder é produto do amor que o senso comum denomina “dependência do analista”. Na poltrona do analista se situa, portanto, o lugar do saber e do poder supostos. Devido à natureza e amplitude de nossa proposta, não nos aprofundaremos mais nesta importante temática.
A política no espaço institucional
Não podemos pensar na política da psicanálise sem levarmos em conta as instituições que sustentam sua transmissão.
A instituição é onde a psicanálise em intensão (prática analítica) está em continuidade moebiana com a psicanálise em extensão (transmissão da psicanálise).
Apenas vamos mencionar com Quinet que a Escola é o coletivo institucionalizado em que a política se presentifica pela interseção da relação de cada um com a causa analítica e a sustentação coletiva do discurso analítico.
O discurso analítico não pode, segundo Lacan, ser sustentado por um só. No ato de fundação da Escola francesa de psicanálise, em 1964, Lacan assinala: “Fundo – tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa analítica” (LACAN, 2003a, p.235). Isto pode parecer um paradoxo.
Mas, se a relação com a causa analítica é solitária e particular, a sustentação do discurso analítico precisa do coletivo, e é consequência da transferência de trabalho.
Lacan critica os analistas devido ao enquistamento do pensamento. A psicanálise deve se fazer valer da produção de psicanalistas que possam não ceder às exigências da civilização, aos apelos da sociedade capitalista, colocando então esta finalidade Institucional – produzir psicanalistas com um objetivo político.
O discurso analítico no espaço sociocultural
Ao responder à carta de Einstein que colocava a questão de como articular poder e lei, Freud (1932), de início, discordava do uso da palavra poder e em seu lugar propõe que se use a palavra violência.
Ele faz uma retomada do mito da horda primeva, exposto em Totem e Tabu (1913), embora não o mencione como tal.
De início, há predominância da força bruta, do pai primevo que subjuga os mais fracos e goza de todas as mulheres.
A única forma de se contrapor a esta dominação só se torna possível pela reunião dos mais fracos, que matam e devoram o pai.
A ambivalência afetiva, saciado o ódio, faz com a nostalgia do pai e no vazio do pai morto erigir uma lei – a proibição do incesto – e a primeira organização social – o totemismo. Podemos então deduzir que o primeiro ato político, que propiciou a emergência da lei, foi o assassinato do pai pela fratria.
A violência do Um torna-se agora a violência da comunidade em forma de lei.
Em termos da civilização ocidental, a política surgiu na Grécia antiga e se referia, mais especificamente, à vida na pólis, às instâncias de poder estabelecidas cuja função era governar a vida na cidade.
Embora tenha havido algumas variações ao longo dos séculos, ainda hoje a política tem este forte significado, na filosofia e no meio social mais amplo: é tudo aquilo que se relaciona não exatamente à cidade, mas ao Estado e suas diferentes formas de governá-lo.
A política não pode ser pensada senão em articulação com a noção de poder (ou violência, segundo Freud).
O governo simplifica uma sistematização e hierarquização do poder no qual alguns comandam e outros obedecem, havendo sempre uma instância máxima de poder onde Um (mesmo como representante da lei) tem o poder e a responsabilidade da decisão final.
A história da política, em nossa civilização, nos mostra que há, no mínimo, uma tendência do homem a estabelecer relações de domínio e servidão não apenas pela criação de um poder isolado, mas também pelas microrrelações de poder estabelecidas entre os próprios homens (FOUCAULT, 1998).
Comandar, ter poder, bem como obedecer e se submeter, são posições presentes em todas as relações humanas.
Além do mais, a instância do supereu, resultado para Freud da subjetivação da autoridade paterna, explica a natureza da obediência, um dos fundamentos da política.
Muito antes de elaborar a segunda tópica e com ela tratar da origem do supereu, desde os primórdios da psicanálise, Freud se voltou para este fenômeno do poder que um homem pode exercer sobre o outro.
Seus escritos pré-psicanalíticos tratam essencialmente deste assunto pela via da sugestão e da hipnose.
Foi exatamente por recusar a se manter na posição da sugestão (poder do Um) que Freud descobriu o funcionamento do Inconsciente.
Em seguida, Freud se depara com o fenômeno da transferência e com o fio tênue que o separa da sugestão. Esse fio se refere à relação que existe entre a transferência e o amor (como já vimos) e entre o amor e o estado hipnótico.
O amor, portanto, é o ponto de articulação entre a transferência e a sugestão.
A política da psicanálise na contemporaneidade
A fim de adentrarmos esta importante e espinhosa temática, devemos nos remeter a Freud (1929), no Mal-Estar da Cultura, onde ele afirma que a civilização repousa na renúncia pulsional. Mas, se é a renúncia pulsional que permite que haja civilização, o que é renunciado retorna sob a forma de supereu manifestando-se em cada sujeito como sentimento de culpa, uma das manifestações da pulsão de morte.
Com a progressiva valorização do campo do gozo, Lacan (1992) desenvolve os discursos como formas de laço social e no Seminário XVII desponta a grande tese de que a psicanálise é o avesso da civilização.
É ainda Coutinho Jorge (2006) quem afirma que a teoria dos quatro discursos de Lacan comparece em seu ensino para tratar de uma forma original do liame social.
E continua: A originalidade desta teoria e o contexto sociopolítico no qual surge não impedem que ela seja um verdadeiro corolário de fundamentais desenvolvimentos anteriores, ou seja, a lógica do significante tanto ordena as relações humanas quanto estrutura o inconsciente individual.
Lacan (1992) demonstra a tese freudiana sobre a fundação da civilização através do discurso do mestre
O senhor delega ao saber do escravo a produção do objeto. No lugar da produção aparece o objeto a.
“A articulação da civilização S1 ? S2 implica um resto produzido (objeto a), representação do supereu como olhar, que vigia e pune, e como voz, que critica e condena.”
“A Psicanálise é o único laço social que se ocupa diretamente do objeto a como agente do discurso.”
O discurso do capitalismo
Colette Soler (2011), em seu artigo sobre o discurso do capitalista, chama a atenção para o fato de como este tema nos permite compreender que a psicanálise, como Lacan a orientou e esclareceu, não se limita, como normalmente se acredita, a ocupar-se dos indivíduos um a um, apenas. Lacan tentou introduzir a ideia de que a partir do discurso do analista, poder-se-ia compreender alguma coisa relacionada às coletividades.
Como sabemos, cada discurso é uma modalidade de laço social. Estes laços entre os humanos, com seus corpos e suas falas, são ordenados pela linguagem e só existem por serem ordenados pela linguagem.
Ainda segundo Soler, a expressão “discurso capitalista” é de Lacan e data do contexto de pós-68 ou exatamente de 1970.
O paradoxo é que, com o discurso capitalista, Lacan descreve um discurso que desfaz o laço social ao invés de enlaçá-lo.
Na época em que tal discurso foi elaborado, as questões a ele ligadas não eram tão legíveis como o são hoje em dia.
Em 1970, o mundo ainda era binário, prevalecia a guerra fria com todas as suas consequências e acusações recíprocas.
O que hoje é bastante explícito quanto à ideologia capitalista, quanto, por exemplo, a inventar formas fáceis de lucro, em 1970 não era totalmente claro.
Poderíamos perguntar: o que Lacan percebeu, naquele momento, ao formular o discurso do capitalismo?
Lacan tinha Marx em grande conceito e retém da leitura da teoria marxista o conceito de mais-valia.
Sem nos determos e aprofundarmos nesta questão, podemos dizer que a mais-valia é a parte do trabalho que não é paga e que é apropriada pelo capitalista, dono dos meios de produção. A mais-valia é subtraída do trabalho proletariado para engordar o capital.
Ainda com Soler (2011) poderíamos dizer que a mais-valia é o que incita o objeto causa de desejo do capitalismo.
A consciência da classe proletária – aquela que só tem sua força de trabalho para vender – é uma consciência na qual a mais-valia se constitui como objeto perdido, cotidianamente perdido, mais que objeto oculto ou roubado.
Lacan diz então que a mais-valia torna-se, desde aquela época em que foi formulada, extraída não do capitalismo, como afirmara Marx, mas da causa do desejo, da qual toda economia faz seu princípio.
Causa do desejo para todos, capitalistas e proletários. Uns para se apropriar, outros para recuperar.
Outro ponto importante assinalado por Lacan consiste em dizer que quando a mais-valia é causa de desejo de toda uma economia, isto engendra o que ele chama produção extensiva, logo insaciável da falta a gozar.
Produzir e consumir são os dois grandes imperativos da economia capitalista. Produzir e consumir geram a falta a gozar. Lacan atribui a falta a gozar a todos os atores da economia capitalista, pois a falta a gozar é o seu motor.
Lacan escreveu o discurso do capitalismo com os mesmos elementos dos outros discursos, porém colocando-os de forma diferente:
Entre os elementos e de forma cruzada, Lacan desenha uma flecha contínua, sem ruptura.
Enquanto nos outros discursos existe uma ruptura, uma descontinuidade, que é uma barreira para designar que entre o gozo que um discurso torna possível e a verdade daquilo que é esperado como gozo existe sempre um hiato. Na escrita do discurso do capitalismo não há um hiato.
Temos um circuito fechado, contínuo, sem ruptura, onde se pode afirmar que o sujeito é comandado pelo objeto – produtos, gadgets.
Constatamos, então, que quanto mais o tempo passa, mais somos instrumentalizados por todos os produtos, os quais nós não podemos dispensar.
Não apenas somos instrumentalizados pelos produtos como ameaçados pelos efeitos da produção.
Data de pouco tempo a consciência da ameaça que pesa sobre o planeta da relação entre a economia capitalista e a ciência – tecnologia.
O que a formulação do discurso nos mostra é que o capital, S1, demanda à ciência tecnológica que produza objetos (a) para o consumidor ($).
A consequência disto é que o discurso do capitalismo não descreve nenhum laço entre os parceiros humanos. Ele só descreve a relação de cada sujeito (consumidor) com certo objeto mais-valia. Há um laço direto entre o sujeito e o objeto a.
Já em 1970, Lacan nos dizia que o discurso do capitalismo desfaz o laço social e com isso todas as solidariedades sociais, e deixa cada um cara a cara com o objeto causa.
De início, observamos a precariedade dos laços possíveis no trabalho.
Colette Soler (2011) sublinha então dois pontos básicos, a saber: o clamor sobre a precariedade e em segundo lugar um sentimento do sem sentido (non sens), verdadeiramente um índice de que os mais-de-gozar, produtos de consumo, não só não conseguem estancar a aspiração humana, pois excluem o vetor do desejo, mas aumentam de forma devastadora o sentimento de falta a gozar.
O resultado da fragmentação dos laços sociais é um individualismo louco e forçado.
Soler ainda cunha o termo narcinismo, que combina este tipo particular de posicionamento típico do nosso tempo: narcisismo e cinismo. Esta lógica faz com que os indivíduos assumam, sem nenhum constrangimento, uma série de manobras de exploração colocadas como astúcia ou capacidade de competir.
Não se faz lucro sem algum abuso.
Outro ponto importante que Lacan sublinha em 1972 é a exclusão das coisas do amor pelo discurso do capitalismo.
Ele conclui que isto levaria à foraclusão da castração. Esta conclusão é de início paradoxal; exprime, no entanto, o fato de que o amor entre parceiros coloca em jogo a castração. Neste sentido, um discurso que exclui as coisas do amor, exclui logicamente a castração.
É ao excluir as coisas do amor, desfazendo o laço social, que o discurso do capitalismo tem um efeito sobre a violência e as atrocidades, pois quando os laços sociais se desfazem, a dissidência das pulsões se manifesta de uma forma bem diferente. Freud (1921) já chamara nossa atenção para este fato em Psicologia das Massas.
Talvez aqui possamos perceber com clareza o que é rejeitado no discurso que retorna de outra forma. Com a exclusão das coisas do amor, como laço, retornam sob a forma de romance barato, filmes eróticos e práticas na internet.
O sexo clivado do amor aparece de forma acentuada na clínica, mormente por parte das mulheres que buscam alguém, um companheiro, frequentemente sem encontrá-lo. O pegar, o ficar, com muita frequência não caminha em direção ao laço amoroso, gerando angústia e decepção.
Outro ponto que observamos é que todos os discursos, sob suas formas históricas diversas, sempre implicaram uma disparidade de lugares.
Mais uma vez, Soler assinala que a discriminação é a repartição das disparidades, a repartição dos lugares preciosos.
Os quatros discursos estabelecem os lugares ordenados que definem uma ordem. Estas ordens reinaram na história, como bem sabemos: mestre – escravo; homem – mulher; professor – aluno; pais – filhos etc.
Todos estes discursos eram discursos da violência instituída. A violência atual não é instituída, mas produzida.
Muitas questões relevantes e de interesse poderiam ser levantadas, o que estenderia sobremodo nosso texto e exposição.
Façamos um ponto de basta para nos perguntamos: E então, o que a psicanálise pode dizer? E o que pode fazer?
Lacan, a partir do que foi construído da estrutura subjetiva, pôde interpretar o discurso do capitalismo, ou seja, revelar seus modos de gozo.
Mas, hoje em dia, o que é possível ser feito? Assim como Freud, que no final do século XIX e início do século XX, a partir da Histeria, criou o discurso do psicanalista, o que pode o psicanalista de hoje frente ao discurso prevalente do capitalismo?
Lacan (2003b) nos afirma, em seu texto Televisão, de 1973, que o discurso analítico pode promover a saída do discurso do capitalismo.
É claro que sendo realistas, não se trata de uma revolução psicanalítica, mas como o próprio Lacan assevera, trata-se antes de uma subversão.
O que a psicanálise pode objetar do discurso capitalista é suscitar um desejo outro ou sustentar os desejos outros.
Para Lacan, o final de análise é caracterizado pela emergência de um outro desejo que não diretamente pelo Outro. Sustentar um Outro desejo, que é uma forma não de fazer barra, desde que todos estamos presos ao discurso capitalista, mas de subtrair alguma coisa deste discurso.
Aqui, mais uma vez, sobretudo deve vigorar a política da falta-a-ser, que possibilita a emergência do desejo e de sua ética.
Para finalizar, algumas palavras sobre a realidade política de nosso país, que se mostra mais evidente e agravado pelo discurso da contemporaneidade.
Chama-nos a atenção um modo específico de exercício do poder de nossos políticos, independentemente da área em que atuam: executivo, legislativo ou judiciário, ou mesmo independentemente do partido político a que pertençam.
Impera o regime da barganha de interesses pessoais, a corrupção e o distanciamento dos interesses comunitários em contraste com os individuais e familiares.
Freud, em suas reflexões sobre a cultura, aborda a verdade das origens da forma possível, a saber, pelo viés do mito.
Em 1973, em Televisão, Lacan (2003b) vai dizer que o Mito é uma forma épica de mostrar a estrutura. O mito procura dar uma forma discursiva a alguma coisa da verdade que por si mesma não poderia passar enquanto tal. A forma discursiva pode ser universal ou individual. Já em Totem e Tabu, Freud (1913) vai falar da herança arcaica que aparece já na pré-história dos povos, e que a história por assim dizer se inicia pelo ato memorável e terrível do assassinato do pai. Porém, é em Moisés e o Monoteísmo (1939) que Freud resgata o conceito de tradição como forma de transmissão, que tal como no mito constitui o que poderíamos denominar o Outro Social, composto por traços que formam os ideais de um povo.
Neste sentido, como hipótese inicial a ser aprofundada e mais bem embasada, poderíamos fazer a proposta de um entendimento de nossa realidade atual com uma visão a posteriori de nossa tradição.
Evidentemente, com todo cuidado e sabendo que esta é uma contribuição a um tema muito complexo e formado por inúmeras variáveis.
Sabemos que a primeira forma de exercício de poder existente em nosso país foram as Capitanias Hereditárias.
Sérgio Buarque de Holanda (1997) em seu escrito sobre as raízes do Brasil enfatiza a diferença entre colonização e exploração, ocorrida após a descoberta do Novo Mundo.
A diferença entre a colonização ocorrida, por exemplo, nos Estados Unidos e no Canadá e a exploração Ibérica constituída no puro gozo da terra e suas riquezas.
As Capitanias Hereditárias constituíram a política da Coroa portuguesa sem recursos para investimentos na nova colônia. Portugal resolveu, então, adotar o modelo feudal e destinar aos donatários um número aproximado de quatorze faixas de terras.
As cartas de doação tinham caráter perpétuo e hereditário. O rei atribui aos donatários inúmeros direitos e isenções.
Cabe aos donatários distribuir sesmarias aos colonos, que são isentos dos pagamentos de tributos sobre a venda do pau-brasil e dos escravos.
Baseados na hipótese de uma transmissão e formação do Outro social, podemos pelo menos conjecturar sobre se seria apenas coincidência a dissociação do poder público no Brasil em todas as esferas e independente da filiação partidária.
O poder político é exercido como se o mandato atribuído pelo voto apontasse mais para uma capitania que se apresenta como hereditária. De pai para filho e agora até para neto.
O poder político é exercido quase que exclusivamente em beneficio próprio e de seus parentes e colaboradores (assessores), e de amantes que recebem verbas e benefícios como as sesmarias.
As altas taxas de arrecadação, que neste ano já passa de trilhões de reais, não se revertem em beneficio da comunidade, do país.
A indústria da multa e a corrupção, dentre outras chagas, fazem de nossa Pátria um mãe gentil, mas do Estado brasileiro faz um pai terrível e primevo, que força seus filhos a uma cidadania prostituída, sem seriedade e postura ética possíveis.
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Endereço para correspondência:
Rua Paraíba 1317/201 – Bairro Funcionários
30130-141 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: arlindopimenta@gmail.com
RECEBIDO EM: 01/08/2012
APROVADO EM: 20/08/2012
Sobre o Autor
Arlindo Carlos Pimenta
Psicanalista. Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro do Campo Lacaniano – BH.