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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.34 no.64 Belo Horizonte dez. 2012
ARTIGO
O analista, o poeta e o mestre do Zen: reflexões sobre os impasses da clínica
The analyst, the poetry and the zen master: reflexion on clinic
Edson Santos de Oliveira
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Pretende-se neste artigo estabelecer reflexões sobre a clínica, o Zen e a poesia, demonstrando que essas práticas podem ser instrumentos valiosos para se trabalhar os impasses nas sessões. O analista deve atuar de modo semelhante ao do poeta e do mestre do Zen, produzindo significantes siderantes que apontam para o fora do sentido.
Palavras-chave: Literatura, Psicanálise, Impasse, Zen.
Abstract
In this article the author proposes reflection about psychoanalytic clinic, the zen and the poetry, to show that these practices can be valuable instruments to work the impasses during the sessions. The analyst should act in a similar way as a poet and a Zen master, to produce signifiers that point to off meaning.
Keywords: Literature, Psychoanalysis, Impasse, Zen.
A literatura sempre iluminou a psicanálise e algumas vezes trouxe contribuições que escapam ao campo do simbólico, enriquecendo a clínica, como é o caso da obra de Joyce, lida por Lacan. Comentando sobre a obra de Marguerite Duras, o autor de Outros Escritos afirma: “Foi precisamente isso que reconheci no arrebatamento de Lol V. Stein, onde Marguerite Duras revela saber sem mim aquilo que ensino” (LACAN, 2003, p. 200, grifo nosso). O poeta precede o cientista. Essa afirmação de Lacan procede se levarmos em conta que o real só pode ser trabalhado com quem tem alguma afinidade com o vazio e o silêncio. Nesse caso, ninguém melhor do que o poeta para levar o analista a refletir sobre sua prática clínica, uma vez que a grande poesia, como a meditação Zen – poesia e religião se interpenetram –, nos leva muitas vezes ao fora do sentido. Diferentemente dos métodos tradicionais do conhecimento, voltados para a lógica formal, o poeta descreve o real através de uma linguagem condensada, às vezes enigmática, enfocando-o com um olhar sempre novo. Tentaremos assim fazer algumas aproximações entre a literatura e a psicanálise, tendo em vista a categoria do impasse, propondo o vazio do zen como possibilidade de romper com a cadeia significante para uma nova economia do gozo.
É frequente a comparação do texto literário com o ato de fiar. Essa relação pode perfeitamente ser conectada à clínica, que é também um tecido de falas, pausas, cortes e intervenções. Poderíamos comparar a clínica a uma renda, um pano cheio de furos, principalmente se levarmos em conta a fala, os silêncios do analisando, as intervenções e a resistência do analista. As sabotagens feitas pelo analisando fazem parte da rotina da análise. Lacan afirma que a resistência é do analista. Este, para contornar a resistência, tem que abrir mão de seu narcisismo, criando uma espécie de vazio para alavancar a transferência. Esse vazio, ou apagamento do eu do analista, não seria uma espécie de furo nesse tecer de renda que é a clínica?
Alguns pesquisadores estudaram o silêncio nas sessões e tentaram destacar elementos do corpo do analisando tais como gestos, olhares, modos de deitar no divã, formas de entrar e sair da sessão, respiração, tom de voz, além de outros. Evidentemente esses pontos são importantes na clínica, mas ainda estão no plano do significado. Nessa perspectiva, o analista observa o corpo e tenta traduzi-lo, dar sentido a ele. Mas como lançar mão do significante na sessão? De que modo avançar indo em direção ao real, ao fora do sentido?
A expressão “impasses da clínica” nos leva a alguns pontos da teoria lacaniana, que defende a supremacia do significante sobre o significado, invertendo o algoritmo saussuriano. Saussure afirma que um significante é uma imagem acústica e sonora e está relacionado à materialidade do signo. Já o significado corresponde ao conceito (SAUSSURE, 1996, p.80). Em linhas gerais, a psicoterapia tende muito mais para o significado do que para o significante, buscando os elementos latentes que teriam dado origem a determinada neurose. Dessa forma, nos impasses da clínica, muitas vezes o psicoterapeuta tende a preencher os muros do silêncio do analisando com pontuações que apontam para o significado.
Trabalhar lacanianamente com o significante nos impasses da clínica não é tarefa fácil e muitas vezes pede criatividade. Freud fez um significativo esforço ao buscar novas formas de intervenção. Prova disso é que tentou analisar obras de arte. No entanto, suas análises de texto literário são restritivas, enfocando-as como produção fantasmática, como no caso do sonho ou do sintoma (KON, 2001, p.42). Freud estava limitado pelo seu tempo e nem tinha condições de fazer análises literárias de outra forma.
Em nossa prática analítica, corremos o risco de nos tornarmos reféns dessa latência do sentido, quando nos defrontamos com os silêncios do analisando. Evidentemente o significado deve ser levado em conta, mas não de forma tão incisiva. Uma sessão tem uma plasticidade que permite às vezes ao analista construir intervenções, diríamos, um pouco mais radicais, mais sintonizadas com uma clínica do Real.
Uma prática de análise criadora, como postula Noemi Moritz Kon, não se posiciona numa atitude de “decifrar um código secreto de um conhecimento presente, mas esquecido, mas sim para criar, num encontro psicanalítico fundante, os múltiplos sentidos de realidades singulares inéditas” (KON, 2001, p.43, grifo nosso). Nessa linha de raciocínio, como afirmamos anteriormente, o analista deve aprender com o poeta.
A concepção de arte como fazer, frequente na Antiguidade, foi se perdendo, sendo substituída pela noção de arte como expressão e conhecimento. A obra como forma de conhecimento, que se impôs ao longo da história da Estética, seria o reflexo de uma ideia pré-determinada. Entende-se a arte como fazer, seguindo as propostas da Antiguidade, aquela que se baseia na invenção. Em outros termos, enquanto faz, o artista inventa o por fazer e o modo de fazer (KON, 2001, p.44). Essa proposta poderia servir de reflexão para a clínica psicanalítica. O sentido, a busca de uma verdade, como costuma acontecer em algumas sessões de psicoterapia, deveria ser temperado por uma prática criadora, dando espaço ao significante.
Aquela prática a que nos referimos anteriormente – a de observar as reações do corpo do analisando – ainda é prisioneira do significado. Há outros elementos que devem ser levados em conta. Pelo viés da poesia, algo de novo deve acontecer na sessão, rompendo com os impasses. Denise Maurano endossa essa proposta:
“A chamada interpretação analítica tem o objetivo de, antes de ser uma resposta, ser um enigma. Ainda que vinculada à decifração de alguma significação, ela aponta o limite que pode ser significado, indica o furo que vigora no sentido. Por isso ela rompe com a mesmice e abre o canal para o novo, colocando o analisando em trabalho, e não o acomodando em uma resposta que lhe tenha sido dada. Estamos aí perto de um exercício poético” (MAURANO, 2006, p.67).
Entra aqui a possibilidade de uma clínica voltada para o fazer, baseada numa ética que supõe um constante reinventar. Não se trata de tentar explicar ao analisando um fato determinado por alguma causa pré-estabelecida, mas de remetê-lo a novos significantes, de reenviá-lo ao S1. Um belo exemplo desse tipo de clínica nos é dado por Marie-Christine Laznik, que foi analisada por Lacan. Afirma a psicanalista que às vezes ficava em silêncio nas sessões. Nesse instante, Lacan se aproximava e ela ouvia o ritmo da respiração de seu analista e continuava sua associação:
“Acho que Lacan fazia intervir o ritmo da respiração quando, tomada desse medo ou dessa piedade, eu ficava sem voz. Esse apoio me possibilitava recuperar uma voz que já não recuava ‘pelo bem do outro’. Podia, então, operar uma catarse: separação dos planos que, por um tempo, me possibilitava saber um pouco mais a respeito do sujeito do inconsciente” (LAZNIK, 2009, p.70-71).
Outra experiência interessante narrada por Marie-Chiristine Laznik: ao parar de associar, ela afirma que ouvia o barulho que Lacan produzia ao virar uma página depois da outra. O som da página era como uma pontuação sem palavras. Essa intervenção de Lacan nos faz lembrar a diferença existente entre escansão e interpretação, proposta por Alain-Didier (2011). A interpretação remete a um sentido, já a escansão, ao significante siderante. A escansão aponta para o Real. Ela tem sintonia com o recalque originário. Um analista deverá, segundo Alain-Didier, saber “introduzir a escansão siderante” a fim de conduzir o analisando ao despertar. O chiste, por exemplo, está mais para a escansão do que para a interpretação. Didier mostra também que, na música, o som, a nota, é um bom exemplo de significante siderante. Ela não traz uma significação, mas remete a uma sequência de novos significantes, outras notas. Há uma escansão que preexiste à música. É o que ocorre com os surdos. Não ouvem, mas podem dançar num ritmo interior (DIDIER-WEILL, 2011, p.11).
Voltemos à experiência analítica narrada por Marie-Christine Laznik. Quando Lacan se aproxima da analisanda e lhe oferece sua respiração ou produz um barulho na página, ele está ancorado no plano de alíngua e não no do discurso. Milner afirma que alíngua é marcada pelo não todo. Ela é o que sustenta a língua. Nesse sentido, “a língua suporta o real de alíngua” (MILNER, 1987, p.19). Em outros termos, podemos afirmar que existe um “antedizer” que alicerça o dizer. Esse antedizer, que não deve ser entendido como origem, tem sintonia com o pulsional, com a língua materna. Trata-se de um discurso sem palavras, que está relacionado a um fora da linguagem.
Enquanto o cientista busca a organização lógica do pensamento, o poeta trabalha não só com significados, mas com elementos de alíngua. Esta escapa ao linguístico, à conceituação. É ainda Milner que nos auxilia:
“O surpreendente é que o fracasso não seja absoluto e que um poeta se reconheça nisto que ele consiga efetivamente, se não preencher a falta, ao menos afetá-la. Na alíngua, que ele trabalha, acontece que um sujeito imprima uma marca e abra uma via onde se escreve um impossível a escrever” (MILNER, 1987, p.26).
Completando Milner, poderíamos acrescentar que o poeta e o louco estão numa mesma frequência. Ambos desautomatizam a linguagem. Nesse sentido, fazer poesia é colocar as palavras em estado de delírio, como queria Manoel de Barros. Poeta e louco pervertem sentidos, possibilitando a chegada do novo. Não entrando na ordem simbólica, o louco está numa realidade de puro gozo. Alguns poetas e escritores entraram nessa sintonia, nomeando, ainda que precariamente, esse Real.
Ao fazer intervenções na clínica, bordejando o real, convivendo com os impasses, o analista procura criar situações inusitadas para o analisando à maneira de um koan. Para o Zen, um koan é uma resposta vazia de sentido, dada por um mestre a seu discípulo. Com isso, o discípulo se vê na obrigação de construir respostas possíveis, entrando na cadeia significante. Um dos objetivos do koan é romper com a racionalidade e produzir novas formas de percepção até chegar ao vazio. Vazio aqui não deve ser entendido como mera ausência, mas como possibilidade de construção de significações. E o Zen é uma tentativa de apontar para o fora do sentido.
O koan era um exercício mental conhecido de Lacan. No Seminário XX, o pensador francês deixa claro que a resposta pela assemia, pela isenção de sentido, acena para uma forma de enfrentamento direto com o gozo e com a pulsão (ANDRADE, 2008, p.11). Se o “real só se poderia inscrever por um impasse de formalização” (LACAN, 1985, p.125), o koan do Zen seria um bom exemplo para enfrentar esse impasse. Ainda no Seminário XX, Lacan afirma: “O que há de melhor no budismo é o Zen, e o Zen consiste nisto: em te responder com um mugido, meu amiguinho. É o que há de melhor quando se quer naturalmente sair desse negócio infernal, como dizia Freud” (LACAN, 1985, p.157). Uma resposta “em mugido” é como um Koan, convocando o analisando a produzir novos significantes. É um corte que direciona para o S1.
Interessante notar, como aponta Cleyton Sidney Andrade (ANDRADE, 2008, p.07), que no texto em francês Lacan não usa a palavra “mugido”, mas “aboiement”, que significa latido. A origem dessa tradução é curiosa. Ela nasceu da pergunta de um monge a um dos mestres famosos do Zen, Joshu. O monge lhe pergunta se o cachorro tem natureza búdica. Joshu lhe responde com um “mu”, tradução japonesa de um caractere chinês “wu”, que significa “nada”. Dando uma contribuição ao texto de Andrade, poderíamos dizer que resgatando o som em japonês, o tradutor do texto de Lacan para o português fez uma bela tradução, no sentido de transcriação. Em outros termos, ele não ficou preso ao significado do vocábulo francês “aboiement”, mas tentou resgatar o som em japonês “mu” propondo a palavra “mugido” e enriquecendo o original chinês “wu”, que quer dizer “nada”. Assim, tanto “wu”, quanto “mu”, “aboiement” ou “mugido” são boas opções de tradução, já que o importante no Zen é apontar para o fora do sentido. No caso da tradução portuguesa, fica ainda mais rico o texto, já que ao responder com um mugido, tanto o mestre do Zen quanto o analista esperam que discípulo e analisando sejam capazes de ruminar esse “mu” produzindo novos significantes. Uma intervenção analítica é como um mugido, um corte que leva o analisando a sair dessa cadeia infernal da linguagem, entendida aqui como aparelho de gozo.
Trago aqui uma experiência em que tento me aproximar dessa proposta lacaniana. Atendo a um obsessivo que nunca dá pausas na fala, preenchendo todos os intervalos. Sua posição como pai é muito poderosa, ficando sempre de madrugada, no mesmo lugar, à espera do filho, já maduro. Quando ele chega, meu analisando quer saber de tudo o que aconteceu. É tremendamente controlador da vida do rapaz. Observei que, ao se referir não só às saídas do filho, mas aos pequenos afazeres do quotidiano, ele usa com frequência nas sessões o significante sempre, que é repetido três vezes. Trata-se de um recurso linguístico que remete a um desejo de controle total do filho e da família, uma forma de preencher todas as lacunas. Passei a cortar as sessões, pronunciando, em um tom ascendente, a expressão “às vezes”, logo após o seu obsessivo “sempre”. Espero que esses cortes, criando vazios, sejam capazes de questionar esse “sempre”, signo da incapacidade que ele tem de conviver com a falta.
Lacan afirma que a psicanálise consiste em “falar daquilo que não se pode falar/não se sabe falar” (FINGERMAN, 1992, p.53). Assim, cabe ao analista aprender com o poeta e com o louco, já que ambos colocam as palavras em estado de delírio. Poeta, em grego, é o que faz, é o que cria do nada. Sair do impasse da clínica significa convocar a poesia, já que ela é marcada pelo não todo, pelo feminino. Como um koan, ela tem a natureza de enigma, possibilitando a instauração do novo a cada leitura. Para isso, o analista, como propõe Fingerman, “deve ser agente do discurso que ele propicia, sabendo jogar com a duplicidade de sua posição: sujeito suposto saber e objeto causa do desejo. Espera-se que ele proporcione o saber significante e o objeto que aí faz buraco” (FINGERMAN, 1992, p.60).
Bibliografia
ANDRADE, Cleyton Sidney de. O analista e o mestre do Zen. http://www.fafich.ufmg.br/estudoslacanianos/pdf/art02_n15_Cleyton.pdf Acesso em: 28/04/2012. [ Links ]
DIDIER-WEILL, Alain. Acordar, despertar I. In MAURANO, Denise; NERIE, Heloneida; JORGE, Marco Antonio Coutinho. Dimensões do despertar na psicanálise e na cultura. Trad. de Márcia Átalla Pietroluongo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. [ Links ]
FINGERMAN, Dominique Touchon. O que se espera de um analista. In FORBES, Jorge (org.) A escola de Lacan: a formação do psicanalista e a transmissão da psicanálise. São Paulo/Campinas: Papirus, 1992. [ Links ]
KON, Noemi Moritz. Entre a psicanálise e a arte. In SOUSA, Edson Luiz André de; TESSLER, Elida; SLAVUTZKY, Abrão (orgs.). A invenção da vida: arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001. [ Links ]
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Versão brasileira M. D. Magno; texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. [ Links ]
LAZNIK, Marie-Christine. Ritmo, presença, voz, respiração. Testemunho sobre o manejo da transferência em Lacan. In DIDIER-WEILL, Alain; SAFOUAN, Moustapha (orgs). Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários. Trad. Claudia Berliner; revisão técnica de Leila Longo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. [ Links ]
MAURANO, Denise. A transferência: uma viagem rumo ao continente negro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. [ Links ]
MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Trad. Ângela Cristina Jesuíno. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1987. [ Links ]
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Trad. Antônio Chelini et al. 25. ed. São Paulo: Cultrix, 1996. [ Links ]
Endereço para correspondência:
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31270-901 – BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3496-8318
E-mail: edson-so@uol.com.br
RECEBIDO EM: 17/09/2012
APROVADO EM: 20/09/2012
Sobre o Autor
Edson Santos de Oliveira
Professor da UFMG - EBAP/Letras. Candidato em formação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.