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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.34 no.64 Belo Horizonte dez. 2012

 

ARTIGO

 

O engajamento político dos “intelectuais”1

 

The political engagement of “intellectuals”

 

 

Sophie de Mijolla-Mellor
Tradução: Marília Etienne Arreguy
Revisão: Jô Gondar e Daniela Brulhart Donoso

Universidade Denis Diderot

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Quando e como se ultrapassa o limite que vai transformar uma reflexão em atos irreparáveis? O pensamento que, para existir, só pode ser livre, deve ser por isso considerado responsável diante do que pode engendrar? É, então, uma abordagem psicanalítica, e também uma interrogação ética, sobre a passagem da construção das ideias à fábrica de ideologias o objeto desta apresentação.

Palavras-chave: Ideologia, Política, Intelectuais, Pensamento colocado em ato, Cultura, Civilização, Fantasia, Sublimação, Teoria x Prática, Filosofia política.


Abstract

When and how are limits surpassed that change a simple reflection into irreparable acts? Could thought that, to exist necessarily has to be free, be responsible towards what it might result in? Thus, the object of this article is a psychoanalytical approach, and also an ethical interrogation, about the transition between the constructions of ideas to the fabrication of ideologies.

Keywords: Ideology, Politics, Intellectuals, Thought acted out, Culture, Civilization.


 

 

I - O que é preciso entender por “engajamento político”?

Podem ser apresentados dois casos figurativos:

Aquele em que o “intelectual” faz eco a uma política em curso e a sustenta com sua própria palavra, e mais, com a autoridade advinda de sua notoriedade;

Aquele em que o teórico, mais frequentemente um filósofo, constrói um modelo de sociedade que permanece enquanto utopia durante toda uma época, mas que poderá posteriormente ser retomada por um homem de ação, e posta em ato.

Essas duas figuras são simétricas e invertidas: em um caso o intelectual segue o homem de ação e no outro ele o precede. Eu começarei dando um breve exemplo do primeiro caso, e concentrarei meu desenvolvimento sobre o segundo, que me parece muito mais pesado em termos de consequências, unindo-se à questão da fábrica das ideologias.

 

a) “Os pedantes da barbárie”

Entre 1914 e 1915, ao publicar cerca de quinze artigos nos quais reivindica partilhar a herança cultural de “nosso Goethe”, Romain Rolland se dirige aos alemães e, do mesmo modo, tenta fazer os beligerantes de todas as nacionalidades ouvirem uma voz “acima da peleja” (ROLLAND, 1915, p.7). Sua argumentação se apoia na ideia de que a Alemanha foi levada contra sua própria tradição no pangermanismo belicista do imperialismo prussiano, perspectiva que poderia tão bem se aplicar duas décadas depois à Alemanha nazista.

É em nome de sua cultura que ele intima o povo alemão a não seguir o belicismo prussiano: “Vocês são os netos de Goethe ou de Átila? (...) Vocês se mostram indignos dessa grande herança, indignos de tomar parte no pequeno exército europeu que é a guarda de honra da civilização” (Rolland, 1915, p.7), escreveu ele após as destruições de Louvain e de Reims pelos soldados alemães em 1914.

Esta é, de fato, a razão pela qual os “intelectuais” se referem à guerra como algo que os enche de cólera e de tristeza. Em lugar de exercer seu poder crítico, esses “pedantes da barbárie” (e ele cita aqui o filósofo Miguel de Unamuno) parecem uma matilha latindo na trilha em que o caçador os soltou. Bergson já afirmara doutamente que “a luta engajada contra a Alemanha é a própria luta da civilização contra a barbárie” (ROLLAND, 1915, p.7). O historiador alemão Karl Lamprecht, em espelhamento, responde: “A guerra engajada entre o germanismo e a barbárie (…) é a sequência lógica daqueles que a Alemanha livrou no decorrer dos séculos contra os Hunos e os Turcos” (ROLLAND, 1915, p.27).

Saber continuar diferenciando um povo, com sua civilização e seu temperamento próprio, daquilo que ele se torna quando se enreda numa ação violenta devido a circunstâncias políticas é certamente a missão daqueles que trabalham no sentido de pensar a cultura. Engajar-se não é gritar com os lobos, mas tomar um recuo reflexivo necessário e expressá-lo de maneira crítica e argumentada, quando possível. A ação passa então pelo pensamento que se exprime em palavras ou em imagens e sua eficácia é julgada pelo fato de que será considerada perigosa e subversiva, e perseguida por isso.

 

b) O pensamento como um ato

No momento do processo de Nuremberg, o magistrado Robert Kemper se dirigiu ao jurista Carl Schmitt nos seguintes termos: “Nosso ponto de vista é que os órgãos de execução na administração, no comércio e no exército, não são mais importantes que os Senhores que pensaram a teoria, o plano para toda a questão2.

Teria Carl Schmitt consolidado cientificamente os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade notoriamente por sua teorização acerca do “Pangermanismo”?3 Mas a complexidade do pensamento desse autor, que lhe vale servir de teórico tanto pela extrema direita quanto pela extrema esquerda, não deve induzir a uma reflexão em profundidade sobre a irredutibilidade da posição do teórico em face dos atos que tentarão atribuir a ele? Entretanto, longe da defesa bastante fácil que consistiria em dizer que o pensamento de um autor pode, por meio de algumas deformações, servir às atuações mais afastadas de seu conteúdo, é preciso se interrogar sobre a fantasia do ato que contém todo pensamento, seja ele o mais abstrato, justificando desde então que o apreendemos também no nível do agir.

É bem do agir do pensamento em si mesmo que se trata e não dos atos de seu autor; também, é relativamente secundário saber se este ou aquele tinha ou não adesão ao partido, ou o que foram as manifestações abertas ou escondidas dessas simpatias políticas, aspectos no fundo importantes, mas que pertencem à psicobiografia. Interrogar o pensamento como um ato visa, então, restituir-lhe todo seu peso, seu valor e, portanto, sua responsabilidade histórica quando se torna um instrumento de alienação, levando em conta que seu projeto consciente era inteiramente outro, visando essencialmente o conhecimento. A história da filosofia é rica em exemplos a esse respeito, indo de Machiavel a Marx e Carl Schmitt. Ele mesmo invocou em sua defesa, que não teríamos arrastado Rousseau diante de um tribunal porque seu pensamento inspirara os Jacobinos...

Seguindo esse exemplo, minha conferência será mais particularmente centrada sobre a relação entre esse último e Robespierre, e eu tentarei mostrar:

Que a adesão nunca se faz somente pelas ideias, mas que aquele que as recebe adivinha ou fantasia, sobre o assunto que as anuncia, um conteúdo ao qual ele pode então se identificar;

Que o teórico, mais frequentemente um filósofo que escreve, vai suscitar uma adesão que conduzirá à elaboração de discursos políticos que são proclamados;

Que uma terceira fase, aquela do homem de ação, é requerida para transformar os discursos em atos.

Quando e como se ultrapassa o limite que vai transformar uma reflexão em atos irreparáveis? O pensamento que, para existir, só pode ser livre deve ser por isso considerado como responsável diante do que pode engendrar? É, então, uma abordagem psicanalítica, e também uma interrogação ética, sobre a passagem da construção das ideias à fábrica de ideologias, que será o objeto de minha apresentação.

 

II – A fantasia do ato que contém o pensamento

a) O pensador como conquistador

Eu não sou, verdadeiramente, nem um homem de ciência, nem um observador, nem um pensador. Pelo meu temperamento sou apenas um conquistador” (Freud à Fliess, Correspondence, 1.2.1990).

Minha vida: as aventuras e a odisseia de um dissecador [vivisecteur]4 da alma no início do século XX” (Robert Musil, Journal, I, p.24.)

Declarações surpreendentes da parte desses homens de pensamento cuja aventura e conquistas, concentradas nos limites do perímetro de seu escritório, parecem, ao ouvi-los, ter sido trazidas por uma pulsão agressiva com vistas à destruição ou à expansão.

De Espinosa – representado sob todos os traços como o revolucionário napolitano Masaniello – a Freud, reconhecendo o espírito de insubmissão e a paixão dos Ancestrais defensores do templo, alguma coisa se repete, e não pode ser reduzida a uma compensação fantasmática da regularidade um pouco morna de uma vida consagrada ao pensamento e que, contrariamente a essa oposição que implica Freud com o “verdadeiro homem de ciência”, parece mesmo constituir um elemento pulsional específico da atividade discursiva. Para Musil (1956), se tivéssemos proposto a engenheiros a aplicação neles mesmos da ousadia de suas ideias, e não às suas máquinas, eles teriam reagido como se tivéssemos pedido para fazer de um martelo a arma de um crime (MUSIL, 1956, p.43). E como ele disse em outro lugar, “o homem de pensamento está engajado em uma aventura belicosa, seu espírito é frio, vigoroso, afiado nos detalhes, e sem perdão, temerário e irresponsável, sem escrúpulos para com o todo” (MUSIL, 1992, p.98).

De fato, o intelectual reconstitui, no mundo fechado de seu pensamento, o mundo exterior, e a estratégia mais eficaz não vai além da aritmética mais elementar ao passo que “a súbita necessidade de uma dedução tão moderadamente sutil e complexa quanto a resolução de uma equação diferencial simples custaria a vida de milhares de homens” (MUSIL, 1992, p.174). Desta forma, a oposição entre o homem de ação e o homem intelectual não é pertinente, pois não se trata de uma substituição do pensamento pela ação, mas de um deslocamento da ação em um domínio em que ela pode se exercer livremente, como pode experimentar uma criança que brinca ou um apaixonado que fantasia.

A intrepidez do pesquisador é assim necessária, e se ela lhe falta, ele nada encontrará. Nós encontraremos no caso de Leonardo [Da Vinci] um testemunho particularmente interessante desse prolongamento sublimatório da ousadia da investigação diante do interdito de ver. Trata-se de sua obra de anatomia, em que a curiosidade infantil no lugar do conteúdo do corpo materno, e em particular dessa figura fantasmática que Melanie Klein chama de “pais combinados”, se prolonga diretamente na investigação do corpo humano.

Uma passagem dos Carnets se refere a uma fantasia em que Leonardo se encontra na entrada de uma enorme caverna ignorada por ele, e que o deixa, ao mesmo tempo, fascinado e apavorado: “E após ter permanecido assim por um momento, subitamente duas emoções nasceram em mim, o medo e o desejo, medo diante da escura e ameaçadora caverna, desejo de ver se não poderia haver alguma maravilha em seu interior”. A fantasia da cena primitiva e a atitude positiva e ousada da criança que se prolongam na paixão de investigação adulta não poderiam ser mais bem resumidas do que nessas linhas.

O que é que “a” política realiza “do” político como estrutura da realidade humana5 quando reivindica isso? O que se encontra regularmente nos regimes totalitários sustentados por uma ideologia forte.

b) Teoria e prática

É habitual opor os teóricos e os práticos qualquer que seja o campo considerado. Esta distinção é, entretanto, datada, pois ela recobre o velho debate entre o ideal e a realidade, as ideias e as sombras da caverna platônica. O pensamento puro estaria sem acesso à ação, a qual só se exerce na carne do mundo tangível, e os “práticos” com suas “mãos sujas” (J. P. Sartre) e, eventualmente, sua vista curta teriam finalmente ganhado a causa sobre os precedentes, que eles poderiam até esmagar nas engrenagens de uma realidade, da qual eles escolheram não participar, para permanecerem livres.

Muitos períodos e regimes políticos têm assim posto no ostracismo, reeducado ou diretamente executado seus “intelectuais”, mesmos aqueles cujo pensamento os havia mais ou menos guiado, o que mostra bem que a teoria não era estranha à prática, já que eles puderam ser considerados suficientemente perigosos de modo que fosse necessário deles se desembaraçar.

E, de fato, a maior parte dos filósofos desde Platão reivindicaram a ação: não aquela que adotariam em um agir prático participando do poder ou da sua contestação, mas aquela da influência que eles esperam exercer sobre aqueles que traduzirão o seu pensamento em realizações concretas sob a forma de governos “esclarecidos”. Entra-se “em política” como se entra “em religião”, quer dizer que, então, não sobra mais espaço para outra coisa na existência deste que se entrega a essa paixão de conduzir seus semelhantes. De forma inversa, a reflexão sobre “o político” pede a colocação de uma perspectiva crítica, uma visão mais ampla, em síntese, um posicionamento filosófico.

No entanto, quando verdadeiras mudanças se desenham ou se fomentam, os homens políticos precisam de uma doutrina, e é então que se pode produzir um chamado ao político, assim como se pode fazer um “chamado ao delírio”, em um outro contexto, para significar que se tenta curto-circuitar uma situação bloqueada.

Mas a que tipo de político, então, apelar? Será que todo texto pertencente ao político comporta um programa realizável que constituiria desde então um chamado, ou mais, uma provocação à ação? Mas o que seria reciprocamente um tal texto se não fosse concebível transformá-lo numa realidade?

 

III – O inumano da utopia teórica

Qual é o real impacto dos textos na práxis política? Os exemplos são numerosos, indo da influência de Rousseau sobre Robespierre até aquela de Karl Marx sobre Lênin, e corroborados por meio do estudo da biblioteca de Hitler, das suas obras preferidas com suas notas deixadas às margens.

Certamente, os homens de ação raramente se atêm a um só texto e praticam de bom grado um sincretismo teórico que lhes permite flexibilizar o texto conforme sua conveniência, inclusive aquele [texto] que não comportava aparentemente nenhum programa de ação pré-definido.

De maneira inversa, Platão, Aristóteles, Machiavel e muitos outros filósofos tiveram por objetivo não só refletir sobre a vida política, suas origens e as condições de seu exercício, mas desenhar a cidade ideal, ou seja, constituir uma compilação de conselhos e de regras para príncipes e para povos.

Nesse caso – aquele em que o teórico constrói uma utopia que vai ser retomada por um homem de ação ou um grupo –, pode-se falar de um “trabalho” ulterior da obra no mesmo sentido em que se pode dizer de um vinho ou de uma rachadura em um edifício (que “trabalham” – quer dizer, que revelam potencialidades positivas ou negativas com o decorrer do tempo que, invisíveis a princípio, estavam, entretanto, latentes).

Por este fato, a obra só existe completamente a posteriori de sua produção, em função da maneira como ela é recebida e compartilhada.

Um trabalho de apropriação, talvez um desmembramento e uma deformação, vai então se seguir. Infinitos comentários, interpretações que são, de fato, novos textos que, então, virão à luz.

A colocação em prática é apenas uma dessas modalidades de compartilhamento da obra, que engendra não somente uma obra de mesma natureza, mas atos. Nesse sentido, a obra não seria somente o produto de um autor, ele mesmo determinado por sua época, mas deveria ser considerada como um “espaço transicional” que não pertence nem ao autor nem àquele que a porá em prática.

Pode-se dizer então que a “verdade” do texto político, no sentido hegeliano de sua realização, é dada pelos homens de ação que vão a partir dele se afirmar? De fato, as ideias em política não podem permanecer na esfera ideacional de maneira ilimitada. Mesmo as utopias mais improváveis conheceram uma realização pelo menos provisória.

Sem isso o texto permaneceria letra morta, projeto abortado ou pura fantasia para o prazer, como a “Sociedade dos amigos do crime” concebida por Sade. Pelo contrário, o texto de Rousseau, que visava a uma autenticidade, teve uma influência decisiva sobre sua época. No entanto, se somos certamente muito mais julgados pelos nossos atos do que por nossas intenções, o que acontece quando as intenções teóricas se tornam fatos, porém nas mãos de um outro?

Por exemplo, independentemente das manipulações operadas pela sua irmã sobre os seus textos, é Nietzsche responsável pelo uso que os nazistas fizeram de suas noções teóricas como a “vontade de potência”? Para responder a essa questão é preciso ir um pouco mais longe e considerar que toda teoria, precisamente porque é abstrata, contém em sua essência uma potencialidade ao inumano.

O inumano nasce, com efeito, sempre do desprezo pela singularidade das vítimas que são identificadas, elas também, a um princípio abstrato. Também se pode mais frequentemente encontrar inspiração para atos de barbárie vinda de escritos em nome dos quais eles seriam cometidos.

Como disse Ricoeur (1995), a racionalidade do político se exprime pelo fato de a constituição expressar a relação horizontal da “vontade de viver junto”.

Mas essa racionalidade tem também uma finalidade, ou seja, a violência fundadora que se vai reencontrar na relação vertical entre governantes e governados, a relação hierárquica. Esta forma avançada de racionalidade tem, portanto, também nela, uma forma arcaica de irracionalidade.

Pode-se considerar que o texto através do qual o homem de ação vai se afirmar constitui precisamente uma maneira de dissimular essa relação arcaica de violência sob uma aparência racional fundada nas palavras de um tratado? O texto vai fundar o legislativo, que é o lugar da racionalidade, enquanto que o executivo será aquele do emprego da força, fundada, entretanto, sobre o precedente. No entanto, a maneira de impô-lo será a de dispensar os corpos constituídos e praticar esta democracia direta que faz a cama de todos os totalitarismos.

Para abordar essa questão, eu tomarei como exemplo a influência de Rousseau sobre Robespierre. O que é que, de fato, o jacobinismo e os massacres revolucionários trazem a posteriori ao texto de Rousseau, se considerarmos a maneira pela qual ele inspirou permanentemente a ação de Robespierre?

 

IV – O exemplo de Rousseau lido por Robespierre

Destacamos quanto a identificação de Robespierre com Rousseau era ligada a condições sociais e afetivas similares no sentido que, ambos órfãos, viveram a humilhação precoce da pobreza e um déficit de proteção parental. Eles partilham uma mesma vivência de preconceito e um mesmo desejo de reparar a injustiça sofrida, mas sob uma forma sublimada que não os leva à busca do sucesso, mas ao triunfo da justiça. Robespierre escreve que seu exemplo e a inspiração que desenhou nos escritos de Rousseau estão constantemente presentes para ele.

Aquele que se chamará o “incorruptível” tem amor pela justiça, pela liberdade e pela humanidade por sua própria paixão, quer dizer que ele está vinculado pelo sentimento mais ainda do que pela convicção.

Eles vão consagrar sua voz, um por escrito, o outro pelo discurso, para serem ouvidos contra a intriga, a covardia e o complô. Convencidos de serem acusados, eles próprios acusam os seus detratores em uma defesa infinita pro domo em que é preciso explicar, se confessar, se dar como exemplo de uma situação injusta mais largamente estendida. Um e outro escrevem: textos teóricos em forma de discurso, para o primeiro, e discursos em forma de texto teórico, para o segundo.

Entre os dois eu depreenderei três eixos nocionais comuns e recorrentes:

A pureza

O povo como abstração e o Terror

O sacrifício de si

a) Pureza, verdade, inocência, pobreza

É em nome da defesa desta tríade que um e outro vão se tornar “acusadores”. Há em Robespierre uma obsessão do complô e da intriga que tem um fundamento de realidade histórica, mas o personagem do “Acusador público” não podia se sustentar a não ser por uma ideologia da pureza a ser defendida contra aqueles que a mancham. Esta pureza está ligada ao desfecho, o que é um tema classicamente rousseauniano.

Entretanto, se Robespierre defende a igualdade de direitos, ele considera, no entanto, que a desigualdade de bens é inevitável. O dinheiro não está longe de lhe aparecer como coisa de patifes, mas nem por isso ele exige uma repartição igualitária. O ideal de frugalidade rousseauniano está de acordo com sua ideia de um povo ideal, puro, casto, limpo e ascético, e é precisamente esta pobreza que é o sinal da pureza. Por causa dela, o povo é levado a desmascarar a injustiça, ele é a voz da virtude e da verdade.

Lembremo-nos que a Assembleia Nacional de 1790 tinha por decreto erigir uma estátua em memória de Jean-Jacques Rousseau contendo a seguinte inscrição: “A Nação Francesa livre [graças] a Jean-Jacques Rousseau: Vitam impendere vero6.

Mas de qual verdade se trata? Não de uma verdade hegeliana que faria do Povo uma figura do Espírito em marcha, mas a verdade oposta à mentira dos malandros, aquela dos intrigueiros e dos tiranos. É porque o Povo não tem nada que pode encarnar essa força, ele é virtuoso porque não foi manchado pelo dinheiro e pelo poder.

b) O Povo como abstração e o terror

Se existe em Rousseau a noção de um messianismo de uma camada social frente à outra, não se trata, em compensação, de uma ditadura do povo. Entretanto, porque lhe é preciso fazer ouvir a sua voz e denunciar a intriga e a perversão, o povo tem um direito à violência. Aqui a dimensão política é intrinsecamente misturada à moral, funcionamento tipicamente rousseauniano.

Conhecemos o discurso inspirado que Robespierre apresenta na Convenção de 17 Pluviôse de 1794: “A mola do governo popular em revolução é simultaneamente a Virtude e o Terror: a Virtude sem a qual o Terror é funesto; o Terror sem o qual a Virtude é impotente.”

A Virtude cai naturalmente sob aqueles que não têm nada, pois eles não foram corrompidos pelos bens materiais, é o Quarto Estado, a massa tumultuosa dos “Sem Calças[Sans Culottes] e das “Tricotadeiras[Tricoteuses] que estão sempre próximos do motim, porque não têm nada a perder. Só se pode apaziguá-los remontando à causa do motim e, desse modo, restabelecer a justiça.

É nisso que sua revolta é portadora de uma melhor equidade potencial, mas passa pela violência em relação aos “exploradores” e aos “tiranos”. Como ele o proclama em 1791 no Couvant des Cordeliers: “O interesse do povo é o interesse geral, o dos ricos é o interesse particular”.

O risco é certamente a abstração de um tal processo e seu radicalismo, assim como, por outro lado, a tentação do poder absoluto que se desenha, já que Robespierre de fato se identifica ao personagem moral do Povo, ao qual ele empresta sua voz e se dá inteiramente. Às vésperas do massacre de Setembro, ele escreveu contra os Girondinos que queriam dissolver a Comuna: “Somente a coragem e a energia do povo podem conservar a liberdade. Ele é algemado desde que durma, ele é desprezado desde que não se faça ouvir, ele é vencido desde que perdoe aos seus inimigos antes de tê-los inteiramente domado.

c) O sacrifício de si

Os revolucionários pertencem, em geral, a uma classe superior, mas, por uma razão ou por outra, foram dela excluídos e sua luta pelos pobres é um combate pessoal. A vivência do preconceito está com certeza sempre latente, seja por se referir à injustiça, que constitui em si mesma desigualdade, seja porque, rastreando esta mesma injustiça, ele próprio goze de ser acusado e maltratado.

Para poder pensar a liberação e a promoção dos humildes, é preciso em si mesmo não ter pertencido a essa classe, mas ter sido dolorosamente assimilado a ela, quando se pensava pertencer a um outro nível. O masoquismo está ligado aqui ao sacrifício heroico que autentifica o fato de estar do lado “bom”.

Destacamos que Robespierre tem por estilo falar essencialmente de si mesmo, mas ele o faz à maneira de Rousseau que ao se pintar, nos diz ele, pinta todo homem (GALLO, 2008). Robespierre pinta o Povo por si mesmo e ele mesmo no Povo, como se estivesse fundido nessa figura.

O sacrifício de si começa aí: só existir para a causa do povo, por sua defesa e sua promoção.

Essas não são, entretanto, as características do povo, suas maneiras ou sua linguagem, às quais ele se identifica, mas, primeiramente, uma figura sofredora, a vítima dos ricos e dos patifes. Mais que uma massa concreta, esta imagem abstrata se define pela perseguição constante que ela sofre. Pode-se ver uma infatuação na identificação a esta entidade, mas pode-se também considerar o processo sublimatório que torna possível tal fusão. Robespierre não é nada mais além desta ideia abstrata à qual ele terminará por dar sua vida, após ter suprimido um certo número de outras [vidas] !

Como na maior parte dos martírios, o sacrifício é tudo menos triste. Ele se acompanha de sentimentos generosos, ternos e mobilizadores onde encontramos a pegada rousseauniana; há festas, cantos, bandeiras... O objetivo é também de elevar a alma do povo, de educá-lo. Rousseau está muito presente aí, e o ardor irracional, o gosto do homicídio não é seu feito, não mais que o ateísmo do livre pensador, a ambição ou o egoísmo.

Depreendem-se dos textos dos discursos de Robespierre, tonalidades permanentemente filosóficas e morais que não se encontrariam em um líder de povos que se apoiaria sobre a promoção da identidade de um grupo, de uma classe ou de um povo. O Terror foi tornado possível sob a forma que conhecemos em razão da referência filosófica a Rousseau.

E quando Saint Just, guilhotinado ao mesmo tempo que Robespierre, constata que “O exercício do terror banalizou o crime”, ele toma consciência de uma realidade que Robespierre, impregnado de Rousseau, não podia apreender justamente em razão da abstração do seu propósito.

 

V – Da construção das ideias à fábrica de ideologias

a) O “abandono sublimado
b) a uma ideia abstrata”

Eu proponho considerar que o abandono sublimado concerne ao homem de ação que vai se devotar à colocação em prática do texto e, para tal, realizar a operação de alienação que permite modificar tanto a realidade quanto os valores no espírito daqueles que vai galvanizar. Ao fazer isso, o líder vai se alçar ao nível daqueles que eu chamei, [no livro] A necessidade de crer, de um “ideal realizado”, tornando-se aquilo que Hegel designou como um “Grande Homem”.

Freud vai se perguntar sobre o que faz um “grande homem”, não sem dificuldade. Após ter aceitado que são mais os dons intelectuais do que os físicos que o caracterizam, ele chega à ideia de que são mais os homens de ação do que os intelectuais, ou artistas, que merecem essa denominação. O grande homem é aquele que os outros colocam em lugar-tenente de pai:

Nós sabemos que existe na massa humana a forte necessidade de uma autoridade que possamos admirar, diante da qual nos inclinamos, pela qual somos dominados, e mesmo eventualmente maltratados. A psicologia do indivíduo nos ensinou de onde vem essa necessidade da massa. É a nostalgia do pai, que habita em cada um desde sua infância” (FREUD, 1938, p.207).

O que faz, entretanto, com que um indivíduo vá poder, em um momento da História, se colocar em posição de ser um pai para os outros? Hegel tinha uma explicação que Freud teria certamente recusado por pecar pela transcendência: “Os indivíduos históricos são aqueles que disseram primeiro aquilo que os homens queriam” (HEGEL, 1965, p.123).

O grande homem não é então nada mais que um indivíduo particularmente sensível, receptivo àquilo que Hegel nomeia: “o espírito escondido, ainda subterrâneo, que não alcançou ainda uma existência atual, mas que bate contra o mundo atual” (HEGEL, 1965, p.121).

Porque eles procuraram neles mesmos, em uma fonte que não surgiu ainda na superfície, dão a impressão de se apoiar unicamente sobre suas próprias forças; e a nova situação do mundo que eles criam e os atos que eles realizam são aparentemente um simples produto de seus interesses e de sua obra. Mas o Direito está do seu lado porque eles são lúcidos: eles sabem qual é a verdade de seu mundo e de seu tempo; eles conhecem o Conceito, quer dizer, o universal que está em vias de se produzir e que se imporá na próxima etapa” (HEGEL, 1965, p.122).

O líder é então habitado por uma ideia, uma abstração; teremos então uma série indo:

• da ideia abstrata;

• àquele que a revela como “indivíduo histórico”, que será uma espécie de caixa de ressonância do Espírito Universal;

• e, terminando, naqueles que a testemunham (os heróis, os mártires).

O indivíduo histórico está então no limite entre a ideia e o ato: ele se inspira de um texto ou de uma ideologia que dele resulta; ele não age, mas fala. Seu ato é seu discurso, e os outros são a matéria maleável que se deixa modelar pelo verbo, o repete e o cita. O agir violento em si não é de seu feitio. Ele se contenta de inspirá-lo e, fazendo assim, transmite algo do texto do qual ele se faz intermediário.

c) A relação de alienação ao texto

A relação de alienação ao texto nunca é direta, mas sempre mediatizada pelo discurso e pela eloquência. Não é por acaso que numerosos políticos desde Cícero, e provavelmente bem antes, foram advogados. Há alienação porque é a sedução da palavra e não a compreensão do conteúdo do qual ela é portadora que galvaniza as massas. Quando o discurso político não apela a uma ideologia, então sua força só se sustenta pela importância da questão decisional.

Assim, na França, o Chamado de 18 de junho de 1940 do General De Gaulle e o discurso do Marechal Pétain se resumem a um conteúdo nocional puramente afetivo e diametralmente oposto: salvar a nação continuando o combate em outro lugar ou salvar o povo francês organizando a submissão em condições menos desfavoráveis.

Nos dois casos, não havia ideia no sentido de uma teoria e o objetivo era aparente e praticamente o mesmo, de que a nação e o povo não são noções superponíveis, uma sendo abstrata e referindo à identidade de um conjunto; a outra sendo concreta e designando a coleção de indivíduos reunidos num conjunto.

Ambos poderiam, de uma maneira diferente, reivindicar para si uma “ideia” da França a ser mantida no ser. Nesse resgate, de todo modo, o que diferia era o meio de alcançá-lo e uma apreciação implícita da realidade, tanto histórica quanto ainda presente, da França e da Alemanha.

A eloquência do líder, aquela dos ditadores, é baseada, em compensação, sobre ideias, independente de seu valor, e a ação que ele requer é mediatizada por elas. É preciso que ele mesmo esteja persuadido, pode-se dizer, autoinfatuado pela força dessas ideias, para poder ser eloquente. Ele pode, então, personificar-se como seu porta-voz, à altura do poder que lhes confere. Nesse sentido, é preciso que o líder tenha efetuado previamente, para ele mesmo, um abandono sublimado à ideia abstrata para poder produzir um efeito de transmissão do abandono às massas que escutam e que vão aderir à paixão percebida nele.

 

Conclusão

Todo texto pode se tornar um instrumento de alienação coletiva através de um agir que o autor frequentemente estava longe de ter previsto.

A passagem da escritura ao discurso e, em seguida, aos atos implica uma série de processos de transformação que justificam que examinemos, a posteriori, o que, no texto, poderia ulteriormente ser realizado em atos. Nesse sentido, o pensamento, que só pode existir de modo livre – e é bem por isso que pode construir utopias –, deve ser considerado como responsável por aquilo que pode engendrar.

 

Bibliografia

FREUD, S. L'homme Moïse. [Moisés e o monoteísmo], 1938 (tradução livre).

GALLO, M. L'homme Robespierre. Paris: Perrin, 2008.

HEGEL, G. W. F. La raison dans l'Histoire. Paris: Plon, 1965 (tradução livre).

MIJJOLA-MELLOR, S. de. Le besoin de croire. Paris: PUF, 1992. Traduzido para o português: A necessidade de crer. São Paulo: Unimarcos, 2004.

MUSIL, R. Cahier 16, in L'Herne, p.98, cit. Mijolla-Mellor, S. de. Le plaisir de pensée. Paris: PUF, 1992.

MUSIL, R. L'homme sans qualités, I. Paris: Seuil, 1956.

ROLLAND, R. Au-dessus de la mêlée. Paris: P. Ollendorf, 1915.

 

 

Endereço para correspondência:
Pr. Sophie de Mijolla-Mellor
20, rue du Cdt René Mouchotte
75014 Paris
Tel.: +33 (0) 6 11 53 66 18
E-mail: s.mijollamellor@gmail.com

RECEBIDO EM: 18/08/2012
APROVADO EM: 18/09/2012

 

 

Sobre a Autora

Sophie de Mijolla-Mellor
Professora. Pesquisadora da Universidade Denis Diderot – Paris/França. Editora da revista Topique. Diretora da École Doctorale de Recherches en Psychanalyse et Psychopathologie – UP7. Psicanalista do Quatrième Groupe.

 

 

1Conferência proferida no Rio de Janeiro e em São Paulo, em abril de 2012. Trad. Marília Etienne Arreguy, professora da Faculdade de Educação – UFF; associada ao Fórum do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro; e-mail: mariliaetienne@id.uff.br; Revisão: Jô Gondar, professora do Programa de Pós-Graduação em Memória Social – UNIRIO; membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Email: jogondar@uol.com.br; Daniela Brulhart Donoso, psicanalista; mestre em Psicologia Social pela USP, e-mail: danybru@gmail.com. *Todas as traduções dos autores citados foram feitas de modo livre.
2N.T.: Arquivos do Tribunal de Nuremberg. Disponíveis para consulta sob demanda.
3N.T.: Uma das doutrinas alemãs que deram sustentação ao nazismo.
4N.T.: Especialista em dissecar animais vivos.
5Ricoeur faz notar com justeza que “a política como briga do poder, não esgota a política como estrutura da realidade humana”. Cf. Ricoeur, P. “Politique et totalitarisme”. In La critique et la conviction. Paris: Calmann-Lévy, 1995, repris en Poche par Hachete, p.156.
6Consagrar sua vida à verdade”.