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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.35 no.66 Belo Horizonte dez. 2013

 

ARTIGO

 

A voz na psicanálise

 

The voice in psychoanalysis

 

 

Jean-Michel Vivès
Tradução: Paulo Roberto Ceccarelli
Transcrição: Leda Beirão

Association Insistance
Universidade de Nice Sofia-Antipolis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto propõe trabalhar a importância da voz nos processos de subjetivação. A partir da clínica das psicoses, o autor retoma a hipótese de Lacan de que existem armadilhas ao olhar, dizendo que existem igualmente armadilhas para a voz, e a música é uma delas. Da mesma forma que o quadro é armadilha para o olhar, o canto é uma armadilha para a voz. Para o autor, o canto é uma mistura do real articulado ao simbólico, enquanto o grito da sereia seria o puro real, não ligado ao simbólico. Com esses elementos, o autor trabalha a questão da voz da mãe endereçada ao bebê.

Palavras-chave: Voz, Canto, Psicose, Real.


ABSTRACT

This article attempts to examine the importance of voice in the processes of subjectivation. From the clinic of psychoses, the author takes up the hypotheses of Lacan according to which there are traps for the look, saying that there are also traps for the voice, music being one of them: in the same way that a picture is a trap for the look, a song is a trap for the voice. To the author, the song is a mix of the real articulated to the symbolic, while the cry of the siren would be the pure real, not attached to the symbolic. With these elements, the author works the question of the mother's voice addressed to the new born.

Keywords: Voice, Song, Psychoses, Real.


 

 

É uma honra estar aqui com vocês. Muito obrigado ao Círculo pelo convite para falar dessa questão que eu trabalho há anos: a voz na psicanálise.

Muitos teóricos se debruçaram sobre a questão da voz. Entretanto, a meu ver, muitas das implicações que dizem respeito à introdução da voz, no campo tanto da clínica quanto da psicopatologia, ainda não foram devidamente exploradas. É nesse sentido que se dirige meu interesse, e hoje eu gostaria de trabalhar com vocês os aspectos clínicos e metapsicológicos, e também as implicações da voz nos caminhos do tratamento.

Como vocês sabem, Freud não trabalhou muito a questão da voz. Foi preciso esperar os anos 1960, quando, graças a Lacan, a voz foi identificada como objeto, a partir das alucinações, particularmente, nos casos de paranoia. Rapidamente Lacan vai deixar de trabalhar a voz apenas no campo da psicopatologia e vai introduzir a voz na dialética das pulsões. Ele vai identificar dois tipos de objetos, aos quais ele chama de objeto da demanda e de objeto do desejo. O seio e as fezes são objetos da demanda. O olhar e a voz são objetos do desejo. A origem do meu interesse pela questão da voz, eu penso, foi exatamente a mesma origem do encontro de Lacan com a psicose, foi o encontro com os pacientes psicóticos.

Quando eu era um jovem psicólogo, fiquei impressionado de ver pacientes que passavam o dia com um transistor colado no ouvido. Atualmente, eles não têm mais um rádio no ouvido, têm um iPod. Isso não ajuda muito, porque, naquela época, quando a gente via um paciente com rádio na orelha, a gente sabia que se tratava de um psicótico. Atualmente, todo mundo tem um iPod na orelha, e não sabemos quem é psicótico e quem não é psicótico.

É interessante notar que os psicóticos tentam encontrar uma solução para tratar das vozes que os invadem. Esse tratamento das vozes é uma questão que me interessa muito, como também me interessam as soluções que esses pacientes tentam achar para lidar com problema da voz.

Naquela época, um texto de Büshner, que eu li, foi muito importante para mim. Georg Büshner foi um autor alemão do século XIX, que escreveu a novela Lenz. Lenz era um psicótico que escutava vozes. Em dado momento, ele pergunta às pessoas que o cercavam, se elas não escutavam os gritos que as envolviam, gritaria que eles chamam de silêncio. Eis aí uma bela intuição artística. Büshner percebe, então, que o psicótico escuta coisas que o neurótico não escuta mais.

É interessante, para mim, a ideia de que o neurótico seria aquele capaz de, em um momento dado, se tornar surdo ao real sonoro, algo que o psicótico não consegue fazer. Uma forma de reencontrar o que Lacan dizia: o psicótico tem o objeto pequeno a em seu bolso ao passo que o neurótico o deixou pelo caminho. O psicótico guarda uma proximidade maior com o objeto. Esses encontros clínicos me levaram pouco a pouco a elaborar o que eu denominei um ponto surdo.

A hipótese metapsicológica, que eu tento sustentar, é que o recalque originário, o momento em que o sujeito advém, seria ligado à necessidade de poder manter à distância o real sonoro primordial. Essa hipótese, nós podemos sustentá-la a partir de uma hipótese que já está em Freud, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.

Freud, trabalhando sobre a pulsão do conhecimento, a pulsão epistemofílica, diz que, de fato, esse desejo do conhecimento teria origem na vontade de completar uma imagem que seria incompleta devido ao fato de que os órgãos sexuais estão escondidos da vista. É porque falta um pedaço da imagem que nós vamos tentar completá-la.

Lacan terá uma interpretação um pouco diferente dessa questão, essencialmente no Seminário 11, no desenvolvimento que ele faz justamente da questão referente ao olhar.

No Seminário 11, Lacan fala do quadro como uma armadilha para o olhar. Por que se deve domar ou fazer uma armadilha para o olhar? Pela razão de que esse olhar é essencialmente persecutório. O olho é relacionado ao mau-olhado. Não há bom olhado.

Podemos compreender isso a partir da situação na qual o bebê é mergulhado quando ele vem ao mundo. Quando a criança nasce, ela é traspassada pelo olhar do mundo. De todos os lados a olham, sem que ela saiba de onde ela é olhada. Portanto, essa dimensão persecutória do olhar é imediata e originária.

A tal ponto que o teórico inglês Bentham, no fim do século XVIII, inventou um dispositivo de encarceramento que ele chamou de um dispositivo total: o panóptico. No panóptico, o prisioneiro sabia que estava sendo visto o tempo todo, de todo lado, sem saber de onde ou por quem. Seria o dispositivo perfeito do encarceramento.

Pois bem, a criança, quando chega ao mundo, entra em um espaço panóptico. Ela é olhada o tempo todo, sem que ela saiba de onde ela é olhada. Para que a criança comece a ter prazer em olhar, é preciso que ela esqueça que o olhar do outro pesa sobre ela. É o que o psicótico não consegue fazer. O psicótico sente que algo o olha — e ele tem razão — o olham, o olham desde Marte, da televisão... Algo o olha. O neurótico consegue manter esse olhar à distância através de dispositivos, por exemplo, o quadro — que é uma armadilha para o olhar.

Outro dispositivo que podemos descrever e que é mais comum é o desenho. Por que as crianças têm tanto prazer em desenhar conosco? Ora, quando se é psicólogo, interpretamos os desenhos dizendo: papá, mamã, cacá, pipi, etc.

Quando tentamos ser psicanalistas — e não é fácil — podemos tentar entender o desenho não em termos de significações, e sim como ele vem fazer uma armadilha para o olhar do clínico. Porque enquanto olhamos para o desenho que a criança está fazendo, nosso olhar não pesa sobre ela. Nosso olhar é enganado pelo pequeno trabalho que nos fornece a criança, enquanto olhamos o desenho.

Sobre esse modelo de armadilha ao olhar, do qual vocês compreenderam a importância, eu lanço a hipótese de que somos obrigados também a pensar que essa voz primordial deva, ela também, ser mantida a distância.

A dificuldade é que essa voz é essencial para que o sujeito advenha. Então, existe uma ambivalência essencial do objeto voz. Ao mesmo tempo que ela não falta, porque há alguém que se endereça à criança, e ela, então, vai poder falar, mas se a criança é capturada e presa por essa voz, ela será incapaz de desenvolver uma linguagem subjetiva.

Eis aí a dificuldade em relação à voz, porque ela é necessária, mas pode ser também aterrorizante. Diria que essa é a paisagem metapsicológica da posição extraordinária da voz, que faz com que a voz seja um objeto, me parece, um pouco diferente dos outros objetos da pulsão. Pensar a voz nessa perspectiva traz consequências clínicas e terapêuticas.

De fato, Freud já havia percebido que os psicóticos desenvolviam mecanismos para manter a voz à distância. Quando ele trabalha com as memórias de Schreber, ele observa que, quando Schreber é invadido pelas vozes, ele arruma estratégias como dizer que vai tocar piano, recitar poesias, enfim, coisas que seriam armadilhas para a voz.

Eu parto da hipótese de Lacan de que existem armadilhas ao olhar e digo que existem igualmente armadilhas para a voz. A música é uma dessas armadilhas. Nós temos uma ilustração bastante clara desse fenômeno na mitologia grega a partir do célebre episódio das sereias.

Vocês devem se lembrar de que Ulisses, para voltar para casa, devia passar pelo rochedo das sereias. Ele tinha sido advertido de que, se escutasse a voz das sereias, ele se perderia. Ele morreria. A feiticeira Circe lhe ensinou como contornar o problema. Ela lhe disse que ele podia escutá-las, desde que se amarrasse no mastro do navio. Devia também tapar o ouvido dos remadores para que eles não se perdessem e pudessem levá-lo para casa. Ele fez isso e escutou a voz das sereias.

O que é muito interessante é que Homero, o poeta que descreveu essa passagem na Odisseia, fala de voz das sereias, e não do canto. Essa diferença entre o canto e a voz é muito importante e eu vou explicar por quê.

Eu leio um pouco de grego antigo e fui à fonte, auxiliado por uma colega da universidade, para me certificar de que eu tinha entendido corretamente o termo usado para a voz das sereias. O termo que Homero utiliza é phthloggos, que diz respeito ao inarticulado, ao grito. Quando eu li, me perguntei se seria isso mesmo, porque há uma crença de que a voz da sereia seria algo maravilhoso. As pessoas se suicidavam para seguir as sereias. A voz tinha que ser magnífica. Mas não.

Minha colega de grego antigo me antecipou mais surpresas, porque, no episódio de Ulisses com os cíclopes, Homero utiliza exatamente a mesma palavra. O cíclope também é phthloggos. Tanto em um caso como no outro, a expressão remete ao inarticulado, ao indistinto, de onde se deduz que a voz da sereia não tinha nada de bonito ou melodioso, mas sim um apelo incondicional. Um apelo que diz: Venha! Venha a você o saber absoluto. E o saber absoluto para o psicanalista corresponde ao gozo.

Vemos bem que nessa questão da voz, onde o sujeito se perde é nesse apelo incondicional ao gozo infinito. Estamos, aí, além do princípio do prazer. Essa é a matriz em relação às sereias.

Há outro episódio na mitologia grega muito interessante, porque dá a solução para combater as sereias. Esse episódio se encontra na passagem dos argonautas em busca do Velocino de ouro, narrada por Apolônio de Rodes.

Vocês devem se lembrar de que Jasão fez a expedição para conquistar o Velocino de ouro e reuniu em seu barco todos os heróis da Grécia antiga, especialmente os mais musculosos. Os musculosos e Orfeu, que não era muito forte, mas tinha um talento particular. O canto de Orfeu tinha poderes especiais, podia até recuperar sua esposa do Inferno, entre outras coisas.

Jasão fez uma hipótese apaixonante, uma hipótese clínica. Ele fez a hipótese de que os marinheiros iriam preferir o canto de Orfeu ao canto das sereias. Maravilhosa hipótese clínica.

O que ocorre? No momento em que cessaram os ruídos, sinal de que eles se aproximavam do rochedo, Jasão ordenou a Orfeu que cantasse. E os marinheiros continuaram a remar, agarrados, não ao remo, mas ao canto de Orfeu.

Por que os marinheiros preferiram o canto de Orfeu ao das sereias? A mitologia, que é muito consequente do ponto de vista clínico, fez aí uma exceção, porque o marinheiro Boutès preferiu o canto das sereias ao canto de Orfeu e mergulhou ao encontro delas.

Podemos dizer que Boutès era o psicótico do grupo. Ele não conseguiu constituir seu ponto surdo, que desde sempre está em contato com a voz arcaica das sereias. Ele não conseguiu se deixar capturar pelo canto do Orfeu.

O que é o canto? Há a hipótese do quadro como uma armadilha para o olhar e da mesma forma, o canto é uma armadilha para a voz. O canto é uma mistura do real, no sentido de que a voz, enquanto real, está aí implicada, mas é um real articulado ao simbólico. Não é o grito da sereia, ao qual podemos nos referir como puro real, mas o real ligado ao simbólico, porque o canto tem também a palavra.

Isso me parece muito interessante, porque os psicóticos sabem que a voz real com a qual eles são confrontados e que os invade, como a voz das sereias, pode, em algumas condições, produzir um efeito de apaziguamento.

Aqueles que trabalham com pacientes psicóticos, sabem que há pacientes que escutam vozes o tempo todo, exceto quando estão com os respectivos psicoterapeutas. Como se o espaço de transferência fosse o meio possível para manter a voz à distância. Há outras estratégias que o paciente pode lançar mão, como o rádio, por exemplo.

O rádio representa o quê? Uma tentativa de colocar a voz em um lugar definido. Onde o paciente psicótico era confrontado a uma voz que não tinha origem, que vinha de todo lugar, ele vai situá-la, como vinda de determinada fonte.

A partir disso, podemos compreender qual é a posição da mãe e da criança, nesse dom da palavra que a mãe oferece. A mãe é, ao mesmo tempo, sereia e poeta — Orfeu. É melhor que ela seja mais Orfeu que sereia. Ao mesmo tempo, essa dimensão de sereia é essencial. Com efeito, como compreender que a criança invista na linguagem, essa fonte de sofrimento, de mal-entendido e de erros? De fato, há uma espécie de trapaça. A criança é fisgada pela voz materna e capta a noção da linguagem. Isso está bem porque há um jogo de gozo na relação com a voz da mãe, na qual a linguagem é absorvida ao mesmo tempo que a voz é incorporada. A voz é uma espécie de anzol que a criança engole e que a fisga, mantendo-a ao lado da linguagem.

Esses dois aspectos da relação da mãe com a criança — a de sereia e de Orfeu — de fato, poderão ser descritos sob a dupla injunção: venha, a injunção da sereia e advenha, a injunção do poeta Orfeu. Há o encontro entre esse duplo apelo maternal e a recepção que a criança vai fazer desse encontro.

Abrindo um parêntesis: eu não gostaria que pensássemos que tudo se passa somente do lado da mãe. É importante, porque durante muito tempo se responsabilizou a mãe do psicótico, e clinicamente eu não acho justo colocar as coisas assim.

Existe o que Lacan chama de insondável decisão do ser. Isso é magnífico: insondável decisão do ser! O que faz com que um ambiente materno faça apelo para que a criança advenha e a criança recuse? Por que a criança recusa esse endereçamento? Por que recusa esse apelo? Esse é ainda um grande mistério clínico. É, sem dúvida, uma das pistas mais interessantes em relação à clínica do autismo.

Durante muito tempo se disse que a mãe teria sido incapaz de acolher a criança. Mas, trabalhando com crianças autistas, eu pude constatar coisas muito estranhas. Assistindo a um vídeo com Marie-Christine Laznik, vimos uma criancinha com a qual a mãe tentava, carinhosamente, entusiasticamente, se comunicar. Entretanto ficou claro, por esse filme, que o bebê se vira violentamente, recusando o contato com a mãe. Chega, então, outra criança, e um tio, presente à cena, começa a brincar com ela. Nesse momento, o bebezinho, que não respondera à mãe, prontamente se comunica, respondendo ao tio.

Eis aí um mistério. O que faz com que o apelo materno não seja correspondido, enquanto o endereçamento do tio é imediatamente aceito? Podemos compreender a partir daí a razão pela qual a mãe se retrai, fica perdida e começa a desenvolver o quadro clínico de afastamento.

A hipótese é de que não é isso que vem em primeiro lugar. Em todo caso, nem sempre vem antes. Frente à não resposta da criança, a mãe se desorganiza, fica sem saber como agir. Há aí uma questão que considero clinicamente muito importante: o que leva a esse não encontro? Isso ninguém sabe. Gostaria muito de encontrar a resposta. Se tivéssemos um elemento de resposta, poderíamos trabalhar sem dúvida e avançar a questão.

Jean-Michel Vivès propõe parar aqui e passar às perguntas.

 

Referências

VIVÈS, J.-M. A voz na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Endereço para correspondência
90 Chemin Beau Site
83100 – TOULON - FRANCE.
E-mail: jeanmichelvives@gmail.com

Recebido em: 04/06/2013
Aprovado em: 10/07/2013

 

 

Sobre o Autor

Jean-Michel Vivès
Psicanalista. Membro da Association Insistance (Paris). Professor de Psicopatologia Clínica na Universidade de Nice Sofia-Antipolis, autor de La voix sur le divan (Paris: Aubier, 2012), organizador de Les enjeux de la voix en psychanalyse dans et hors la cure (Grenoble: PUG, 2002). É também músico e dramaturgo.