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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.67 Belo Horizonte jun. 2014

 

ARTIGO

 

Pesquisas sobre a origem do niilismo e da afirmação originária1

 

Researches on the origin of nihilism and of the original affirmation

 

 

Alain Didier-Weill

Association Insistance

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pode-se dizer que cada um de nós, enquanto sujeito, é um herético, que enfrenta, faz face a um inquisidor que está em nós, que é o superego. É um conflito desigual, porque a resposta do inquisidor, com muita frequência, tem o poder de interromper a vida do herético. Ela tem o poder de interrompê-la por uma razão totalmente misteriosa, e essa é a razão pela qual nós somos levados, com frequência, a preferir o comando do superego, entre outras causas, pelo horror do sujeito a ser questionado e siderado.

Palavras-chave: Superego, Inquisidor, Iluminismo, Talmude, Ateísmo, Monoteísmo bíblico, Metáfora paterna, Sideração, Niilismo.


ABSTRACT

One can say that each one of us, as subject of the unconscious, is a heretic facing an inquisitor that is inside us, which is the superego. This implies an unequal conflict, because the response of the inquisitor, too often, has the power to disrupt the life of the heretic. Such answer has this power because of a completely mysterious reason, and that is why we are frequently led to prefer the command of the superego, among other causes, by the horror of the subject of the unconscious being questioned and siderated.

Keywords: Superego, Inquisitor, Illuminism, Talmud, Atheism, Biblical monotheism, Paternal metaphor, Sideration, Nihilism.


 

Há uma questão que podemos colocar para nós mesmos, de manhã ao despertar: a vida que eu estou levando é uma partida que eu estou ganhando ou estou perdendo?

Porque a vida pode ser comparada a um jogo, por exemplo, uma partida de xadrez. Entretanto, há uma diferença, porque na partida de xadrez, de tênis ou mesmo de futebol, nós conhecemos as regras. Nós as conhecemos perfeitamente. Existem, inclusive, câmeras que mostram se a bola de tênis caiu dentro ou caiu fora da linha.

Na vida, será que existe um olho dizendo: ganhou ou perdeu? Não, porque nós não conhecemos a regra do jogo da vida. Porque aquilo que chamamos de lei é enigmático. Nós jogamos um jogo do qual não conhecemos perfeitamente o código. No entanto, nós nos divertimos ou nos aborrecemos. A grande diferença é que, na vida, há dois parceiros, que obedecem a duas palavras de ordem absolutamente opostas. Contudo, não é como no jogo de xadrez – o branco e o preto – porque na vida esses dois adversários, sobre os quais eu vou falar, podem ser dissimulados, escondidos, um pelo outro.

O primeiro parceiro, um dos dois parceiros do jogo, se engaja no seguinte mandamento, no seguinte comando: advenha! Evidentemente, eu estou evocando o que Freud nos deixou: “Ali onde isso era, devo vir a me tornar”.

A gente passa do primeiro agente que joga essa partida; além dele, há outro agente, ao qual vou dar o nome superego, que anuncia: não advenha! Assim, a vida que levamos é o resultado dessa partida entre dois inimigos.

Nós poderíamos esquematizar isso dizendo que cada um de nós, enquanto sujeito, é um herético, que enfrenta, faz face a um inquisidor que está em nós, que é o superego. É um conflito desigual, porque a resposta do inquisidor, com muita frequência, tem o poder de interromper a vida do herético. Ela tem o poder de interrompê-la por uma razão totalmente misteriosa, e essa é a razão pela qual nós somos levados, com frequência, a preferir o comando do superego.

Se nós fazemos sintomas é porque uma parte de nós dá preferência à voz interna que nos diz: não advenha! Não advenha, quer dizer, interrompa em você todo e qualquer movimento vivo. Por exemplo, no momento em que o sujeito vai tomar a palavra, com frequência, ele é reduzido ao silêncio. Porque ele ouve a voz lhe dizer: cala-te, se você falar, o mundo inteiro vai ver que você é um cretino, que você não é nada.

O sujeito pode aparecer no mundo e fornecer a sua imagem, e talvez seja impedido de fazer isso, porque a voz do superego lhe diz, sobretudo se o sujeito for uma mulher: não se mostre, se você fizer isso o mundo verá sua feiúra! Uma ideia do superego feminino nos é dada por Marilyn Monroe que era a mais bela e se sentia a mais feia.

E ainda se o sujeito quiser dançar, por exemplo, a voz que ele ouve diz: para! E diz para ele: se você dançar, atenção, você vai cair! E tombando rumo a sua tumba, você vai mostrar para todos o dejeto que você é.

Essas três manifestações das quais nós podemos ser testemunhas, o nó borromeano de Lacan nos permite pensar esse triplo comando negativo: quando ele é desenodoado, e o real não é mais mediatizado pelo simbólico e pelo imaginário, quando não é mais R/S, S/I e I/R. Eu deixo isso para discussão, se vocês quiserem. Agora vou prolongar essa questão.

Como é possível compreender que Freud e Lacan não tenham podido evitar, para sustentar suas teorizações, se referir à nossa herança cultural, relacionando-a a duas pequenas cidades da Antiguidade – Atenas e Jerusalém? Porque foi em torno do século V antes da nossa era que apareceu o conflito ligado ao surgimento das Luzes. Tanto Freud quanto Lacan, ao mesmo tempo que eram muito críticos a determinados aspectos do Iluminismo, reconhecem que a psicanálise se inscreve no grande movimento de combate do Iluminismo.

Em vista disso, nós estamos sempre em dívida com o aparecimento dos pré-socráticos e também com o aparecimento dos talmudistas. Em cada um desses dois casos, aparece o conflito entre o herético e o inquisidor. Lembremo-nos do que os pré-socráticos nos trazem, porque aquilo que eles nos trazem faz com que surja o inquisidor.

Os pré-socráticos, sem entrar em detalhes, trazem a intuição genial de substituir o nome de Deus por nomes comuns. Em lugar de Zeus, Hera, Hermes, Gaia, eles vão dizer: o fogo, a terra, a água e o ar. Fazendo isso, eles fundam a ciência, a teoria da Natureza, a teoria da physis e destroem a teogonia de Hesíodo, que interpretava os eventos do mundo através de intervenções divinas.

O Inquisidor aparece no século V, em Atenas. O clero ateniense cria uma palavra que não existia – a palavra ateísmo. Em nome do ateísmo, os pré-socráticos serão perseguidos. O primeiro foi Anaxágoras, que foi o mestre de Péricles. Ele foi expulso da cidade. O outro foi Protágoras, cujos livros foram queimados. Esse foi o primeiro auto da fé da história e o último conhecido ocorreu em 1933, em Berlim. Entre essas duas datas, houve muita destruição de livros, muitos autos da fé. O terceiro herético, o mais conhecido e que, por ateísmo foi condenado à morte, foi Sócrates. A palavra ateísmo é dada pelo clero, ao passo que os discípulos de Sócrates ou de Anaxágoras consideravam seus mestres tão piedosos quanto possível.

Agora, outra figura do Inquisidor diz respeito ao monoteísmo bíblico. Ocorre em relação ao fato de que os talmudistas inventaram o Iluminismo de modo diferente dos pré-socráticos. Quando o último profeta falou, os hebreus da época ficaram em dúvida de como reagir diante do fato de que Deus se tornara surdo ou mudo. Os talmudistas inventaram uma resposta humana: sim, ele se cala, mas nós, homens, vamos fazê-lo falar pela interpretação dos textos. Essa interpretação vai se colocar como infinita, porque o infinito é a marca do divino, mas a marca do infinito também está no humano.

O inquisidor, que surgiu em relação ao talmudista, tem um nome célebre: São Paulo. São Paulo é aquele que diz o seguinte: “Doravante, não haverá mais interpretação de Deus”. Isso é um assunto antigo e constitui o tema do Antigo Testamento. Antigo porque, desde o surgimento do filho de Deus, Jesus, que fez ver que o divino está silencioso, uma nova história começa: o Novo Testamento. E esse novo significa que o antigo caducou. De certa forma, nesse sentido, Paulo é um Inquisidor. A propósito, será a ele que na Idade Média os inquisidores irão se referir.

Eu não quero avançar, sem falar da maneira pela qual o Inquisidor pode surgir no meio psicanalítico. Porque, de todo modo, o superego pode se apoderar de pensamentos que têm relação com a psicanálise. Vocês sabem que Freud sofreu muito com a censura vienense, aos olhos da qual ele era completamente louco.

No que diz respeito a Lacan, o superego se manifestou no início de sua carreira e no final. No início de sua carreira com a famosa excomunhão – palavra que ele mesmo emprega para falar disso – excomunhão pela IPA, que ele qualifica de Igreja, dizendo que a psicanálise se tornara uma seita religiosa.

No meu livro Quartier Lacan e no filme também, porque Quartier Lacan é também um filme, doze dos primeiros companheiros de Lacan evocam como eles vivenciaram esse aparecimento do superego nos idos dos anos 1950. Eles evocam igualmente como é que eles viveram trinta anos depois, quando Lacan nos deixou em virtude da doença. Como surgiu uma nova figura de Inquisidor, que se manifestou pela existência de um tribunal, nomeado por ele próprio “Delenda Est Escola Freudiana de Paris” – Delenda Est, claro, Delenda Est Cartago.

Por que esse tribunal apareceu nos anos 1980? Porque nessa época foi criada a Escola da Causa, que acolheu inúmeros estudantes jovens. Digamos que, naquele momento, a psicanálise só interessava aos jovens. E como, em seu conjunto, os analistas da ex-Escola Freudiana de Paris não entraram nessa nova escola, era preciso responder a esses jovens todos, que perguntavam por que Dolto, Leclaire, Safouan, analistas que estavam no livro Quartier Lacan, não entraram nessa escola nova. Por que eles não entraram na escola nova, que estava sendo feita em nome de Lacan?

Foi nesse momento, que o Inquisidor Delenda deu a seguinte resposta: é preciso que nós reconheçamos hoje que existem verdadeiros lacanianos e falsos lacanianos – lacanianos não ortodoxos. Assim se enunciou publicamente porque Dolto não era lacaniana, Leclaire não era lacaniano, Safouan também não era lacaniano, etc., etc. E os mais jovens, entre eles Alain, faziam parte da longa lista dos heréticos.

Não se pode tomar superficialmente essa transformação, do estado de espírito próprio ao superego, porque cada um de nós é convidado pelo superego, cada um de nós sofre a tentação do pensamento dogmático. Eu acredito que o gênio de Freud foi ter dado um nome a essa tentação do pensamento.

Em suma, Freud nos mostra em seu primeiro livro, A interpretação dos sonhos, que uma das possibilidades do pensamento é pensar segundo o princípio do prazer. É um pensamento que tem como função responder a tudo, de tapar todos os buracos. Evidentemente, esse pensamento não deixa de ter relação com aquilo que a história nos trouxe, através do processo stalinista.

A questão difícil de ser respondida é: como o herético era definido pelo Inquisidor Delenda? Ora, era sobre a relação dele com o saber. Um analista ortodoxo lacaniano considera que a teoria transmitida pelo mestre Lacan é um saber que existe independentemente dele, uma vez que seja enunciado. Cabe ao analista ortodoxo demonstrar no que essa teoria é verdadeira. Como se fosse preciso demonstrá-la, prová-la caso houvesse dúvida. Justamente, o analista herético é um analista que é analisando de Lacan e, enquanto analisando, considera que o saber transmitido pelo mestre no seminário não é apenas um saber dado por um mestre, mas o saber de um analista. Quer dizer, de um analista “suposto saber”. A partir do momento em que a suposição é introduzida, é introduzida pelo fato de que Lacan – o homem que fala no seminário – não está cortado do gênero humano. Ele também é habitado pelo umbigo do sonho, pelo real. A partir do momento em que o saber deixa um furo para o real, o aluno fica em posição de talmudista.

O analista não pode mais se contentar em repetir, como se a repetição garantisse a verdade. Não, ele deve interpretar e, às vezes, segundo Lacan, até mais que interpretar, ele deve reinventar a psicanálise. Não inventá-la, porque isso já foi feito – reinventá-la. Quer dizer, produzir novos significantes. O famoso significante que Lacan escreve como .

E quando Lacan fez a proposição do passe, ele disse que qualquer um que articulasse o significante seria de fato um passante e deveria ser chamado Analista da Escola. É isso que significa autorizar-se por si mesmo. E isso é inconcebível para o Inquisidor.

Nessa época, o Inquisidor Delenda só podia conceber a transmissão da psicanálise pela matemática, e não por um passe que não tinha nada de científico. O que é absolutamente verdadeiro. Eu estou falando do Inquisidor, estou pensando no episódio do Delenda, mas estou também falando de cada um de nós. Porque o próprio fato de fazermos sintomas nos ensina que nós amamos muito, muito, o superego.

Estou tentando me aproximar daquilo que o Inquisidor que está em mim não aceita. O que ele não aceita, o que seu olhar e a sua visão não aceitam é a divisão entre o seu olhar e o que ele ouve. Eu vou falar sobre os dois tipos de divisão que são próprios aos gregos e aos talmudistas.

Para sermos rápidos, a divisão inventada pelos gregos, nós podemos resumi-la pela divisão trágica, que mostra em cena aquilo que os filósofos descobrem na natureza. Existem dois tipos de leis absolutamente antinômicas: o nomos e a physis. A lei escrita e a lei não escrita. Nós poderíamos dizer: aquilo que não cessa de se escrever em relação ao que não cessa de não se escrever. Resumidamente: o simbólico em relação ao simbolicamente real.

Para ser novamente rápidos, evoquemos a figura de Antígona, que recusa a lei escrita do nomos porque uma intuição lhe diz que existe outra lei, uma lei que os homens não puderam escrever na constituição, uma lei em nome da qual ela irá se opor à lei política do rei Creonte. Em consequência, enterra seu irmão, que apodrecia no solo de Tebas.

A divisão do homem bíblico está ligada à relação entre o sujeito e a lei. É, por exemplo, a relação de Adão com a voz divina que lhe fala. A voz divina lhe pergunta: “Onde estás?” Nós sabemos que Adão não responde. Ele não responde como um dia o fará Abraão, que responderá a essa pergunta dizendo: “Eu estou aqui”. Eu estou aqui, diante de Você, face a face. Adão não responde e se vira. Ele chega inclusive a fazer um falso testemunho contra a mulher. Ele diz: ela é a causa da maçã que eu comi.

A questão da interpretação da não resposta de Adão, do seu mutismo, dilacerou o Ocidente. Porque é nessa interpretação que surge o dogma cristão e o antijudaísmo teológico.

O que dizia o Talmude? Como o Talmude interpreta o silêncio de Adão, a não resposta de Adão? Ele atribui a não resposta a um ato de covardia, de falta de fé em Deus. Ele não responde porque não quis. Ele teria podido, mas não quis. E essa é a definição do pecado para o judaísmo.

A grande novidade, trazida por Paulo, é a seguinte: ele não respondeu, não porque não quisesse, e sim porque não podia. Esse não podia mostrou um abismo entre dois pensamentos. Na realidade, o que quer dizer ele não podia? Quer dizer que, para Paulo, no momento em que ele começou a desobedecer a Deus – existe aí uma polaridade importante e, por isso, Lacan me pediu para fazer uma intervenção em um seminário dele sobre a topologia e o tempo. Isso remete à ideia de que cada um de nós faz uma foraclusão originária, não patológica.

Isso é muito complicado, mas vou tentar transmitir. No momento em que Adão para de seguir a lei, pelo próprio fato dessa interrupção, a lei de Deus Pai é destruída. Pelo próprio fato de que o homem seja covarde, a lei perde seu poder e sua eficácia, como se ela só existisse através do sujeito. O sujeito diz não, então a lei morre.

Na linguagem de Paulo, isso resulta em que a lei una, primeira, desapareça e no lugar dela surjam três leis: a letra da lei, o espírito da lei e a carne – a lei da carne. O nó borromeano pode ajudar a entender esse três. No momento em que três vêm no lugar de um, aparecem três tipos de conflitos e, prestem atenção, porque esses três conflitos são aqueles que nosso superego nos inflige quando nós o escutamos.

Os conflitos são: os da letra e do espírito, significando que a letra perdeu o espírito e se tornou débil e ineficaz. O conflito do espírito e da carne, significando que a carne se tornou um puro objeto de concupiscência, perdendo seu caráter sublime (entre parênteses, é aí que a carne faz sintoma). Esses três conflitos rebaixam o homem. Dando um exemplo, quando o analista fala, se ele dispõe apenas da letra, a sua palavra não tem nenhuma eficácia.

Aquilo que Lacan nomeou como ação da metáfora paterna é o fato de poder dar ao homem o poder de transmitir pela sua fala o espírito da letra. É por esse poder que a psicanálise dá ao homem que o Vaticano a incluiu durante muitos anos no seu índex.

O Vaticano reconhece a resposta de Paulo, que é o fundador do dogma, contrariamente aos evangelhos. Os evangelhos não participam de nenhum modo do dogma cristão. Eu chamo atenção por ter me dado conta de que esse fato é desconhecido por muitos cristãos. Portanto, para o dogma, o homem pode ser salvo dessa maldição unicamente pela intervenção da graça trazida pelo filho de Deus. É a graça que permite que o espírito, a carne e a letra se reconciliem e encontrem um nó que os faça um.

 

II

Alain Didier-Weill fala dirigindo-se a Marco Antonio Coutinho Jorge: A segunda vez que nos vimos foi no Rio em 1994. Então, nós falamos, entre outras coisas, da questão da sideração. Essa é uma questão extremamente profunda que eu vou relacionar com a questão do niilismo.

Certo, Lacan nos ensinou que deveríamos fazer um retorno a Freud. Um retorno como esse não se faz de forma definitiva, e penso que cada um de nós deveria fazer esse retorno. Da minha parte, eu vou tentar mostrar a riqueza inaudita que ainda existe quando se retorna a Freud, dependendo do olhar que nós voltemos àquilo que ele nos traz.

Eu vou tocar num ponto que me parece uma grande invenção e que, a meu ver, ainda não foi reconhecida como fundamental. Como usualmente, a força dos inventores está no início. No ato mesmo de começar existe uma reserva de significância quase inesgotável. Então, eu vou evocar novamente o primeiro sonho a partir do qual Freud fez a teoria do deslocamento. Ele nos dá a oportunidade de ver ao vivo como nós podemos nos apoderar da realidade, deformando-a para dar posse dela ao superego. Em resumo, a raiz de nossa relação com a perseguição e de nossa afeição por ela.

Eis aí o que Freud descobre: é possível que um sujeito, cada sujeito, possa ser profundamente questionado pela questão das questões e que venha a preferir se subtrair dessa questão, substituindo o questionamento pela acusação. É como se preferíssemos ser acusados a ser questionados. Como se ser acusado, fosse preferível a ter que acusar recebimento.2

Antes de retomar o comentário desse sonho, eu lembro aqui – posteriormente vocês vão entender por que – o ponto de partida de São Paulo. São Paulo era um fariseu, um judeu praticante, que se separou do judaísmo para se tornar, segundo os historiadores, o verdadeiro fundador do cristianismo. Jesus, sem São Paulo, aparentemente não teria, por seus ensinamentos, tido o poder de criar essa nova religião.

O ponto de partida de São Paulo é o seguinte: ele procurava sua salvação e sente que a lei, a Torá, ele a recebe como um elemento que o persegue, de modo algum um elemento pacificador e sim como alguma coisa que o vigia, o fecha, o aprisiona. Enfim, uma lei que seria válida somente para delinquentes. Ora, para um judeu fervoroso a lei é, antes de tudo, uma questão. Uma questão que simplesmente pergunta: “Onde estás?” Quer dizer, ela espera do sujeito uma resposta. Para Paulo, a lei não pergunta, ela diz: você é um acusado, um culpado. Dito de outra forma – e eu vou me deter aí – para ele, a lei é uma manifestação do superego.

Para nós, analistas, a questão permanece sempre em aberto. O que faz com que o significante se dê como simbólico, chamando o sujeito a advir ou o que faz com que o significante seja superegoico, significando que ele não advenha – não se torne –, que seja um delinquente e deva ser punido? Frequentemente há uma semelhança perturbadora entre o simbólico e o superego.

Um exemplo dessa confusão possível foi genialmente localizado por Lacan. Tomemos o mandamento bíblico, evangélico, seguinte: “Tu és aquele que o seguirá.” Então, como se escreve seguirá? Seguirá ou seguirás? Se for com “s” a frase é simbólica, se for sem “s” ela é superegoica. Isso mostra a nuance sutil que pode haver entre a abertura e o fechamento – a abertura simbólica e o fechamento simbólico.

Eis o golpe de gênio de Freud no sonho da monografia botânica. Ele descobre inicialmente que esse sonho vem só-depois de uma questão colocada na véspera por seu amigo Königstein. Ele questiona Freud e lhe pergunta: “Meu caro Freud, qual é a sua relação com a dívida?” Questão que deixa Freud um interlocutor siderado. Quer dizer que ele não encontra como responder-lhe, ele fica boquiaberto, e sua boca mostra a singularidade do furo, um furo real, dentro do simbólico. Será que ele vai ficar assim, congelado por toda eternidade? Não, nesse momento chega, de passagem, uma certa Irma... E Freud, que está siderado, saindo do silêncio, lhe diz que ela estava com uma aparência florescente. Ele introduz o significante flor. No dia seguinte, quando ele faz o sonho – o sonho da monografia botânica – através do significante botânica, ele reintroduz a ideia da flor que ele teve, na véspera, para sair do silêncio. O sonho evidencia que ali, onde o sujeito tinha ficado siderado, incapaz de encontrar uma resposta, com o sonho e o significante botânica, ele conseguiu responder ao que o tinha deixado mudo.

Em suma, ali, onde tinha sido colocada uma questão sobre a dívida simbólica, questão metafórica, ele responde deslocando a questão para um objeto metonímico, que tem para ele uma significação sexual. Ali, onde era esperada uma fala dele, ele responde introduzindo um objeto, um objeto sexual. A gente pode ver bem que o objeto sexual não é a finalidade do sonho, mas o meio pelo qual o sujeito recorre para continuar a falar, quando tinha perdido a fala.

A questão siderante esperava uma resposta criativa, a resposta de um homem de espírito, que responde com espírito à metáfora, que produz, por exemplo, aquele famoso significante . Ora, Freud no sonho não responde por um significante. Ele responde obliquamente, através da convocação de um objeto – flor.

Agora entramos na parte mais difícil. O que Freud descobre, quando vai interpretar seu sonho? Ele descobre que os pensamentos inconscientes do sonho dizem o seguinte: a flor remete à cocaína, cujas propriedades anestésicas ele descobrira, graças às quais seu pai tinha sido operado de catarata. Isso provava que ele não estava em dívida. Ele descobre que o sonho é uma súplica apaixonada para afirmar: eu não estou em dívida! Como se ele respondesse a uma acusação de que ele estivesse em dívida.

Ora, o significante siderante jamais lhe disse: “Você está em dívida”. Ele significou com uma interrogação: “Você está em dívida?” Assim, Freud descobre que preferiu criar uma situação na qual se desculpava, como se estivesse sendo acusado, quando estava sendo apenas questionado.

Do mesmo modo, isso nos concerne a todos nós. Eis aí a nossa preferência pelo superego, que Freud descobre genialmente. Lá, onde o significante questiona, o sonho mostra que o sujeito prefere ser acusado de uma acusação injusta e falsa, o que lhe permite se defender: não sou culpado.

Cada um de nós pode perceber que, a cada vez que somos acusados de maneira injusta, é muito fácil responder colericamente e dizer para o acusador: você é um mentiroso! Ora, Freud mesmo criou esse acusador que não existia. Eis aí, então, nossa relação com o superego.

Pensem no modo como um grande número de pessoas acusa injustiças, pensando que basta dizer não à injustiça para dizer sim à justiça. Ora, esse não para o não, não é um sim.

Um exemplo muito simples: se vocês lerem biografias de pessoas “simpáticas” como Hitler ou Stalin, vocês vão aprender que, na adolescência, eles foram totalmente alterados, perturbados, pela injustiça que reinava em torno deles e juraram passar a vida a lutar contra a injustiça. Quando eles alcançaram o poder, nós sabemos o que eles fizeram com a justiça. Quando alguém diz não à injustiça, o que isso prova? Será que isso prova que ele se tornará um Martin Luther King? Quer dizer, uma relação de sim à justiça ou um Hitler, que não tem nenhuma relação com a justiça.

Dito de outro modo, a descoberta de Freud, eu penso, é passível de ser universalizada. O Inquisidor que descobre em si, no sonho, que o leva a se desviar da questão que ele recebeu, como se ele tivesse sido acusado – eu penso que essa questão é universalizável. Quando eu falei de nossa preferência inconsciente pelo superego, ela está ligada ao nosso movimento de horror à possibilidade de sermos siderados. E Freud descobre só depois o que o sonho mostra. Freud se desloca da posição de siderado por uma pergunta à outra na qual ele diz: “Eu não estou em dívida”, quando ele coloca em cena o objeto sexual flor.

Portanto, a questão que Freud coloca, é que só-depois, quando ele vai analisar o sonho, que ele retorna à posição do início, que ele a assume, que ele de novo diz sim a ela, ele diz outro sim, que vai se prestar a consequências: vai produzir um significante novo – a nominação do processo inconsciente de deslocamento. Essa nominação de um significante novo cria o início da psicanálise.

Antes de escutarmos o diálogo entre nossos amigos São Pedro e São Paulo, gostaria de fazer uma observação: será que há uma relação entre o homem universal que não aceita ser questionado e prefere ser acusado e São Paulo? São Paulo pretende ser acusado pela lei, razão pela qual foi preciso, a partir de então, abolir a lei, quando essa lei bíblica era, antes de tudo, uma questão: onde estás?

A pergunta é: haveria uma relação entre a invenção de São Paulo ligada à recusa humana de ser questionado e siderado? Essa recusa se traduz por uma cólera que Nietzsche chama de ressentimento. São os ressentimentos ligados ao niilismo no qual se coloca o sujeito que nega o valor do significante causa do sonho e do humano. Esse significante, Freud o chama de significante de alto valor psíquico.

A noção de valor que faz com que a vida valha a pena ser vivida, ela desaparece no niilismo. Suprimindo esse valor radical, aparece o niilismo sobre o qual Nietzsche fala, uma coisa assustadora. Ele diz: “Eu olho o futuro” – ele diz isso 30 anos antes do apogeu do nazismo – “e eu vejo num futuro próximo um desencadeamento assustador do niilismo”.

Aprofundando essa questão do ressentimento que Nietzsche relaciona expressamente com a doutrina do pecado original de São Paulo, esse pecado retiraria da vida o prazer de viver, para qualquer um que não tivesse fé em Cristo.

Portanto, Nietzsche verdadeiramente previu a chegada do nazismo na Alemanha. A vitória do niilismo absoluto. Antes desse niilismo absoluto, existiam pequenos niilismos, que agiam na nossa vida cotidiana. Por exemplo, o niilismo que é ligado ao mundo capitalista, que promete a posse dos objetos.

Entre muitos exemplos, eu vou dar um exemplo bastante esclarecedor para se compreender como a posse do objeto pode nos tornar niilistas. Refere-se ao que o grande chefe Sioux, Touro Sentado, disse no final da sua vida. Esse homem, que nos foi apresentado nos filmes de cowboys, que víamos na juventude, como um bárbaro, era um homem de imensa sabedoria.

Ele disse o seguinte:

Os homens brancos chegaram. Para fazer a paz, eles nos propuseram comprar a terra. Eles não compreenderam porque nós nunca quisemos nos tornar proprietários da terra. Poderiam eles compreender que, se nós tivéssemos comprado a terra, nós teríamos perdido nosso bem mais precioso, qual seja nossa aptidão para, de noite, sonhar com a terra?

Touro Sentado disse também que a criatividade humana, a razão do sonho, estava ligada ao fato de que a terra era inapropriável e que a propriedade – se ela suprime o inapropriável – ia levar ao declínio de seu povo. Ele previu o que se passou com o povo Sioux.

O niilismo hoje, uma face do niilismo capitalista está ligada ao fato de que a ideia da propriedade poderia suprimir a dimensão do inapropriável. O que nós chamamos de real. O mal-estar na civilização, entre outras coisas, é que para um grande número de pessoas, no capitalismo, tudo tem preço. Tudo pode ser comprado, por um preço justo, apreciável, porque não existe mais o inapreciável. Frequentemente, o desprezo dos homens capitalistas pelo mundo, eu penso, está ligado à perda do sentimento de valor do inapropriável.

Na questão siderante – eu vou concluir aqui –, algo de inesperado é transmitido pela capacidade de receber essa questão mais além dos sentidos. Tudo se passa como se o pacto originário que nós estabelecemos com o significante, que precede à criação do inconsciente, permanece no real com a significância no real, cuja tradução é impossível porque é uma significância infinita. O homem não pode se tornar o equivalente do infinito, mas quando a gente tem o golpe do infinito, a gente pode renunciar a se satisfazer de uma forma finita.

Pode-se anunciar que permanece no real uma mensagem muito próxima da mensagem musical, que nos fala sem ter palavras – Lacan dizia desses significantes: dizem a verdade, mas não falam. A significância, que permanece no real, permanece aberta ao homem. É a abertura da questão absoluta. É a noção mesma de aberto, de abertura, que diz, por exemplo: Você está em dívida? Você está em dívida em quê? Quando recebemos essa questão, ela nos mantém despertos – sobretudo quando nos chamamos Weill (de éveil, réveil, de acordado, desperto).

Essa questão é infinitamente traduzível. Segundo nossa ética, nós damos a ela traduções diferentes. Em 1789, uma das traduções foi: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A lei, o direito natural cessava de não se escrever. Cem anos mais tarde, Freud deu outra tradução: “Ali, onde isso era, devo vir a me tornar”. Hoje, nós poderíamos dizer que uma das traduções, entre esses delegados do infinito, seria: o que é a justeza? Se a justeza não é o equivalente a dizer não à injustiça, como guardá-la no horizonte? O que é um dizer justo? Um justo desejo?

No final da sua vida, Marguerite Duras fez a seguinte observação. Ela estava voltando da região do Midi, na França, e viu inúmeras pessoas deitadas imóveis na praia. Ela disse que não acreditava ser possível que o desejo do ser humano fosse se deitar imóvel o dia inteiro em uma praia. O calor do sol certamente não seria o calor que eles buscavam.

E a questão que nós nos colocamos: o mal-estar na civilização moderna não será uma frigidez, que as pessoas pensam curar se esquentando ao sol?

Gosto muito da resposta que Nietzsche dá ao niilismo sobre a possibilidade de não ficar afligido pelo não valor, através do ato dionisíaco de dançar.

Apesar da guerra mundial – horrível – as pessoas que foram mais destruídas por essa guerra, as diferentes vítimas do racismo – os negros, os ciganos, os judeus – foram precisamente três fontes de três tipos de música: o blues, a música cigana e a dos judeus. É extraordinário que tenham sido eles a responder à ruptura dos pactos, afirmando pelo ato mesmo da dança e da doação musical que continuavam a ouvir o mandamento significante, sem significado. Simplesmente o mandamento: advenha! Um comando para advir, simplesmente pelo ato de viver. Um comando que diz: “Advenha.”

 

Referências

DIDIER-WEILL, A. Os três tempos da lei – o mandamento siderante, a injunção do supereu e a invocação musical. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Endereço para correspondência
7, rue de l’Espérance - Paris - 75.013 - Butte aux Cailles
E-mail: alaindidierweill@gmail.com

Recebido em: 04/06/2013
Aprovado em: 20/03/2014

 

 

Sobre o Autor

Alain Didier-Weill
Psiquiatra, psicanalista, foi membro da École Freudienne de Paris, fundada por Jacques Lacan. Um dos idealizadores do Inter-Associatif de Psychanalyse, criou a Association Insistance (Paris/Bruxelas). Autor de Os três tempos da lei (Prêmio Édipo 1996); Invocações - Dionísio, Moisés, São Paulo e Freud; Inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise; Nota azul - Freud, Lacan e a arte; Lacan e a clínica psicanalítica; Lila et la lumière de Vermeer (Prêmio Édipo 2004); Mémoires de Satan; Un mystère plus lointain que l’inconscient. Organizou as seguintes obras: Quartier Lacan; Fim de uma análise, finalidade da psicanálise; Trabalhando com Lacan; Freud et Vienne. Dramaturgo, escreveu diversas peças para o teatro, entre ela, A hora do chá na casa dos Pendlebury; Pol; Les trois cases blanches; Vienne 1913; Freud et Einstein - pourquoi la guerre?; Come back Dionysos; Jimmy. Sua peça L’appelant foi transformada no filme The caller, por Richard Ledes, em 2008, tendo sido premiado no festival de Tribecca desse ano.

 

 

1 Palestra proferida no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais em 23 out. 2012, como parte das comemorações dos 50 anos da instituição. Tradução de Marco Antônio Coutinho Jorge (Corpo Freudiano do RJ, Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ). Estabelecimento do texto por Leda Maria Beirão.
2 O termo accusé de réception, em francês, corresponde a um recibo de que alguma coisa foi entregue, por exemplo, uma notificação judicial, uma carta registrada.