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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.67 Belo Horizonte jun. 2014

 

ARTIGO

 

Corpo, natureza, ética1

 

Body, nature and ethics

 

 

Maria Carolina Bellico FonsecaI; Maria Isabel Sá e Ferreira de SouzaI;

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A escrita deste texto tem com ponto de partida a perspectiva lacaniana de que a obra de Freud traz uma nova perspectiva ética para nortear a experiência que se passa na clínica psicanalítica. O que ali se manifesta como sofrimento diz respeito ao fato de que o homem não tem um saber advindo do corpo natural para sustentá-lo no mundo, precisando constituí-lo a partir da sua inscrição no campo da linguagem, o que coloca a falta e o gozo no centro da sua experiência humana. Ir além do sofrimento, fazendo da falta mesma, da castração, outro saber que se faça sustentáculo para o falasser inventar novos modos de gozo, é a proposta ética da psicanálise.

Palavras-chave: Ética, Corpo, Natureza, Linguagem, Saber, Gozo, Falasser, Invenção.


ABSTRACT

This text has as starting point the Lacanian perspective that Freud's work brings a fresh point of view to guide the ethical experience that happens in psychoanalytic practice. What is manifested as suffering is the fact that man has no knowledge coming from the natural body to sustain himself in the world, needing to set him from his enrolment in the field of the language, which puts the fault and the enjoyment at the centre of human experience. The proposed ethics of psychoanalysis goes beyond suffering, making the lack itself, the castration, other ways of knowledge that do mainstay the parlettre to invent new modes of enjoyment.

Keywords: Ethics, Body, Nature, Language, Knowledge, Parlettre, Enjoyment, Invention.


 

 

Logo no início do seminário da ética, Lacan ([1959-1960] 1988, p. 9) salienta que “a obra de Freud e a experiência que dela decorre trazem-nos o novo”. Isso ocorre, acrescentamos nós, na diferença do discurso da Ciência. Sim, pois, ali onde apenas havia o corpo máquina, apreensível por esse saber, a psicanálise introduz o corpo erógeno e o sujeito desejante. Para a ciência o corpo é organismo, pura matéria reativa, sem desejos, cujas falhas podem ser estudadas, examinadas, manipuladas, medicadas, enfim, compreendidas. “O que caracteriza o corpo com o qual a ciência nos confronta é a exclusão do desejo como causa de seu funcionamento e como explicação causal de seu destino e da sua morte” (AULAGNIER, 2002, p. 111). Submetida ainda aos imperativos do discurso capitalista, a ciência nega a castração, o sujeito do inconsciente e o desejo.

Mas a experiência psicanalítica reconhece que esse corpo, objeto da ciência, porta também um saber fora da linguagem ao qual não temos acesso por não ser apreensível pelo significante. Para Miller (1999), o corpo que a ciência toma como objeto é o corpo natural, corpo vivo que manifesta sua unidade pelo movimento. Nele há um saber inscrito que o regula adequadamente para a sobrevivência no meio ambiente natural (Unwelt), um saber cosmológico.

Tal regulação, todavia, é perturbada pelo fato de que o humano é um ser falante afetado desde o início pela linguagem, o que o obriga a produzir um saber a-cosmológico, saber inconsciente, que diz respeito não à sobrevivência na realidade do mundo, mas à satisfação que pode obter no corpo vivo não natural a partir do seu ambiente linguageiro. Libidinizado pela mãe, na medida em que ela deseja, cuida e lhe atribui significados, o corpo é lugar de inscrição da falta, e sua satisfação é sempre incompleta, o que faz do sujeito um eterno desejante Desejo de muitas expressões, muitas roupagens e que só finda com a morte da matéria. Assim, a operação do significante sobre o corpo faz dele imagem, representação simbólica e resto real, definindo o regime de satisfação do ser falante que é, ao mesmo tempo, de gozo do corpo e gozo da linguagem. “[...] no falasser o gozo do corpo é ligado ao significante como sua consequência” (MILLER, 1998, p. 101).

Estranho regime em que, de maneira enigmática, o aumento da tensão pulsional no corpo, exigindo satisfação imediata, pode encontrar na dor a descarga apaziguadora, num mais além do princípio de prazer. Isso se evidencia no relato de uma analisante sobre a estranha “mania” (sic) de sua filha psicótica que, mediante a angústia, encontrava “sossego” nos cortes que se inflingia ao corpo, “aliviando, assim, a tensão” causada.

Por outro lado, o saber inconsciente tem íntima relação com a sexualidade, a castração, a falta e o desejo. Saber não sabido pelo sujeito que se faz presente através dos sonhos, sintomas, lapsos e chistes, enfim, pelas formações de um inconsciente que interfere no funcionamento do corpo, desordenando-o de sua naturalidade. É o que se passa, por exemplo, na histeria. Para Miller (1999), na histeria temos o que Lacan chamou de “recusa do corpo”, e ele acrescenta, em dois sentidos: “recusa a obedecer o saber do corpo” e “recusa do Outro corpo, especialmente do outro sexo”, trata-se de “um corpo doente pela verdade”.

Podemos ver isso no filme Augustine, paciente de Charcot, famosa por seus sintomas conversivos – seu corpo, palco de seus conflitos, tomado por paralisia e cegueira, era impedido de atuar de acordo com suas funções, impedimento interno que não se relacionava ao corpo biológico, mas àquele que obstava a vazão de suas pulsões sexuais. À medida que o desejo foi se manifestando, os sintomas foram desaparecendo, o que deixou Charcot sem saber o que fazer cientificamente com o corpo desejante, só lhe restando atuar como homem e dar vazão aos desejos que reprimia. Ele, de sujeito da ciência, cai como objeto, entregue ao corpo de Augustine.

A ciência defendida por Charcot, conforme o filme citado, considera o corpo natural como o determinante último dos modos pelos quais o homem busca a satisfação e a intervenção sobre o organismo como suficiente para corrigir os rumos dessa busca. Carreia uma posição ética fundada num conceito de normalidade que desconhece a incidência da linguagem sobre o corpo vivo. Elide o sujeito, objetaliza o corpo humano, como fez Charcot ao abordá-lo como mero organismo ajustável mecanicamente no seu funcionamento.

Desde que Freud descobriu que o sintoma histérico, acontecendo no corpo, é formação do inconsciente linguajeiro, caminho singular para uma satisfação pulsional afetada pelo recalque, a psicanálise propõe uma nova forma de abordar a divisão corpo-pensamento. Freud o fez articulando a representação e a pulsão que a excede, na construção dos conceitos de fantasia e de sintoma, apontando para um saber inconsciente que os regula. Coloca a linguagem como aquilo que descola, inexoravelmente, o gozo do corpo natural. Reconheceu que os caminhos para obter prazer, mesmo determinados por um saber inconsciente, não eram suficientes para esgotar a ânsia de satisfação do sujeito humano, ânsia que o conduz a um além onde não há sequer trilhas a seguir. O sujeito, efeito da linguagem, está aí como falta-a-ser, no horizonte de um mais-de-gozar imponderável, e o corpo vivo está como um estranho.

Há, então, uma fronteira entre o saber e o gozo. O sujeito na vida e na análise, principalmente, encontra a verdade na condição de falante que o constitui e o orienta, mas não oferece certezas e nem completude na busca de satisfação; depara-se, assim, com o não saber que também lhe é constitutivo. A verdade é que se trata de um sujeito dividido entre a linguagem e o gozo que a excede.

Será possível considerar como uma das manifestações desse não saber lidar com gozo excedente à linguagem as relações efêmeras e promíscuas dos jovens nas baladas e shows dos nossos tempos? No gozo dos corpos, carnes são tomadas pela imagem que veiculam e contadas como verdadeiros troféus numa competição denunciada pela linguagem – “peguei geral”, “passei o rodo”, “comi”, “fulano é O cara (comedor)”, etc. Aqui, o outro do desejo não existe, restando um Outro vociferador, superegoico, exigindo cada vez mais gozo. Essas relações nem mesmo merecem esse nome, pois não passam de “ralações”, “ralações” de corpos num sexo que não faz laço entre os sujeitos. A coisa se complica para aqueles que, inadvertidamente ou sintomaticamente, se veem presas fáceis para essas máquinas de plantão e se apaixonam. O resultado mais comum são a angústia e o desamparo, muitas vezes acompanhados pela sensação de terem sido usados (e frequentemente são mesmo!) e de terem feito papel de bobo. Sem querer generalizar, essa tem sido uma queixa constante em nossos consultórios: “Não tem mais homem/mulher pra namorar”. São os encontros sexuais presenciais ou virtuais substituindo os encontros amorosos balizados pela ética do desejo, que inclui a falta, o saber fazer com ela. Não, tais encontros estão mais de acordo com o discurso capitalista com sua injunção de gozo e apelo à conquista de gadgets, aqui representados pelos corpos troféus.

Na negação da castração, no desespero da falta-a-ser, no horror da incompletude, essa contabilidade de corpos mascara a angústia. Mas, às vezes, até mesmo mascarado de amor, o gozo se instala.

Enquanto analistas, não podemos nos furtar a indagar se, não se tratando aqui necessariamente de sujeitos perversos ou psicóticos, estruturas nas quais o gozo é desmedido, seria esse um gozo perverso na neurose? Tal pergunta, vinda da clínica, nos conduz a um questionamento ético relativo ao gozo dos corpos na contemporaneidade, tendo com referência a manifestação acima descrita.

Tanto na vida como na clínica, o sujeito castrado, em sua condição de falta-a-ser, está sempre encaminhando sua demanda a um Outro que supostamente sabe sobre o mais-de-gozar insuportável e que supostamente pode lhe garantir a consistência de um saber para ser completo. É o que fazem os jovens ao mergulhar nas baladas em busca de um gozo a mais, de uma noitada inesquecível cheia de histórias de embates e conquistas que mais tarde serão contadas e recontadas aos demais. É como se dissessem: “Sabe Fulana/o? Peguei! (Como dizem os jovens de uma conhecida propaganda de TV.) Eu sei gozar! Não é isso que você quer de mim?”.

Para que busque na relação com o Outro aquilo que acredita que pode fazer dele um ser completo, é necessário que o sujeito Nele se aliene como falta-a-ser: demanda de amor, paixão do ser que pode, ainda se completar no ódio e/ou na ignorância (LAURENT, 2000, p. 39). Os jovens, ao aceitar as propostas de encontros sexuais puramente fortuitos, buscam, além do gozo do corpo, o complemento do ser no Outro e nele se alienam de seu desejo, perdendo-se como sujeitos. Muitas vezes na expectativa de encontrar um algo mais, o sujeito desejante é escamoteado. Pode ser isso o que tais jovens obtêm ao ficar por ficar, mas para depois contar, contar os parceiros aos amigos numa soma de experiências que tendem ao infinito, caso não seja obstaculizada por um inusitado encontro com o amor, seja com um ideal, um semelhante, seja com um analista.

Por outro lado, quando separado do Outro por um inesperado toque do real, extraído do campo fálico e premido pelo vazio do circuito pulsional, o sujeito falante tem que se haver, por si mesmo, com a exigência de gozo do corpo vivo (falta a gozar). Diante do vazio do tédio, uma saída, para aqueles jovens, pode ser o gozo desenfreado do sexo, saída para a experiência da falta que não encontra uma pega com o inconsciente para desejar, permanecendo mera contabilidade de um gozo que visa o infinito, que não soma nem diminui. Enquanto na histeria encontramos a recusa do corpo, aqui estamos diante da recusa do sujeito de se haver com vazio pulsional que causa o desejo.

Ao corpo não há acesso direto. O que sabemos do corpo vivo vem dos seus buracos, onde a pulsão circula e faz borda, sem imagem ou representação: apenas um traçado sem forma, um trajeto que desenha um vazio. “Lacan faz valer o objeto pequeno a como aquilo que vem desenhar um trajeto em torno do buraco” (LAURENT, 2000, p. 83). Na experiência do vazio que presentifica o corpo vivo se encontra a articulação do inconsciente com o real de gozo. “É o momento em que há, efetivamente, um modo de solda entre o saber do inconsciente e o gozo” (LAURENT, 2000, p. 87).

Ao que se produz como decorrência desse modo de solda, Lacan chama de paixões do “a”, paixões da alma, que se referem à relação do falasser com o corpo vivo, enumerando-as em Televisão: “o gaio saber, a felicidade, a beatitude, o entusiasmo, a tristeza, o tédio e o mau humor” (LAURENT, 2000, p. 87). Nas paixões da alma, o sujeito não se endereça ao Outro, na via da demanda. A falta a gozar é um toque de real ao qual o sujeito, separado do Outro, pode responder; não há nada melhor, com a inconsistência de uma pontual articulação significante inconsciente, para dar curso à pulsão, na via do desejo.

Na análise é a demanda de amor transferencial ao saber do analista que permite a entrada do sujeito, esperança que vai também se constituir em obstáculo, sempre no campo da linguagem. Paradoxalmente, cabe ao analista sustentar a experiência da falta para que o analisante possa abrir mão da suposição de saber no Outro. É a inscrição da falta como ponto central da estrutura subjetiva, e não como mera circunstância pessoal, registro do encontro faltoso e repetido com o real que não tem sentido, o que possibilita ao analisante avançar da falta-a-ser para a falta-a-gozar como móvel da sua ação, abrindo uma nova posição ética e um novo fazer do sujeito como falasser.

A ética psicanalítica, ética referente à clínica do sujeito dividido entre o significante e o gozo, implica bem dizer a relação entre o saber inconsciente e o gozo no real do corpo vivo, inscrevendo ali o vazio como fundamento da estrutura de linguagem que constitui e mantém o falante, possibilitando alguma satisfação da pulsão.

O sujeito, mesmo alienando-se no Outro, pode dele se separar sem desespero quando dos encontros com o real, com os pedaços de real que lhe são propostos pelo fato de ter um corpo que pulsa. Se a ética implica a questão de como devo agir, a psicanálise responde com a transmissão de um saber fazer com o vazio estrutural que o torna fecundo ao ser contornado pelo desejo inconsciente: um saber em ato.

É apenas no âmbito da reflexão ética que o gozo pode ser tratado como a outra face do desejo, o que situa as coordenadas de uma analise como prática que faz recair sobre o sujeito a responsabilidade por seu gozo (VIEIRA, 2001, p. 117).

Quanto aos jovens contemporâneos acima referidos, se de alguma maneira conseguirem bendizer o “mal-dito” vazio que os habita e reencontrar o desejo inconsciente enlaçando-o ao gozo do corpo, estando aí como sujeitos responsáveis por seu gozo, pode ser que encontrem também um modo mais leve de viver.

Cabe à psicanálise, então, mais do que ir na contramão da nossa realidade contemporânea, na sua posição ética, sustentar o lugar da diferença e propor outra saída. “Que não seja a saída da identificação de um com todos, que é a saída conformista” (LAURENT, 2000, p. 23). Ao reintroduzir a falta e, consequentemente, o desejo no discurso dos sujeitos, ao dar lugar à singularidade e à invenção, a psicanálise ainda estará, com Freud, trazendo o novo à civilização. Pelo menos àqueles que a procuram ou que se propõem a ouvi-la... Quanto aos outros, ela pode insistir, uma vez que aquilo que lhe é causa permanece...

 

Referências

AUGUSTINE. Filme de Alice Winocour, produzido por Isabelle Madalaine e Emile Tisne com Vincent Lindon, Stéphanie Sokolinski, Chiara Mastroianni, França, 2013.         [ Links ]

AULAIGNER, P. Nascimento de um corpo, origem de uma história. In: AULAIGNER, P. Corpo e história. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 1988.         [ Links ]

LAURENT. E. As paixões do ser. Salvador: Publicação da Escola Brasileira de Psicanálise - Bahia e do Instituto de Psicanálise da Bahia, 2000.         [ Links ]

MILLER, J.-A. Elementos de biologia lacaniana. Conferências proferidas por ocasião do IX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, nos dias 22, 23 e 24 abr. 1999. Belo Horizonte: Publicação da Escola Brasileira de Psicanálise.         [ Links ]

VIEIRA, M. A. A ética da paixão: uma teoria psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Maria Carolina Bellico Fonseca
Rua Santa Rita Durão, 321/511 - Funcionários
30140-110 - Belo Horizonte/MG
E-mail: carolinabellico@gmail.com.br

Maria Isabel Sá e Ferreira de Souza
Rua Aristoteles Caldeira, 569/2º andar - Prado
30430-410 - Belo Horizonte/MG
E-mail: mariaizabel@yahoo.com.br

Recebido em: 10/09/2013
Aprovado em: 29/10/2013

 

 

Sobre as autoras

Maria Carolina Bellico Fonseca
Psicóloga. Sócia efetiva do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

Maria Isabel Sá e Ferreira de Souza
Psicóloga. Candidata em formação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

 

 

1 Trabalho apresentado por ocasião da XXX Jornada de Psicanálise do CPMG.