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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.67 Belo Horizonte jun. 2014

 

ARTIGO

 

De amor também se morre

 

Out of love one also dies

 

 

Vanessa Campos Santoro

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O amor paixão tomado aqui no sentido do pathos aparece na clínica psicanalítica na vertente dos parceiros sintomáticos ou na devastação feminina. Escutamos na clínica os desencontros amorosos ligados primeiramente aos parceiros até chegar às desditas na relação mãe-filha. Às vezes não sabemos de qual amor se trata e percebemos na equivocidade da linguagem que a primeira devastação é sempre a materna. A hipótese que buscamos confirmar é esta: mulheres que foram devastadas pelas mães escolhem parceiros amorosos sintomáticos igualmente devastadores. De Freud a Lacan abordamos o feminino e os tortuosos caminhos para o amor.

Palavras-chave: Édipo, Castração, Feminino, Gozo fálico, Gozo suplementar.


ABSTRACT

Love passion, taken here in the sense of pathos, manifests in psychoanalysis in the category of symptomatic partners or feminine devastation. We learn from clinic work that love mismatches are connected firstly to the partners until it reaches the difficulties of mother-daughter relationships. Sometimes one is not aware of which love it is and one only realizes in language misconception that the first devastation is always related to the mother. The hypothesis that we want to sustain is the following: women who were devastated by their mothers choose symptomatic partners equally devastators. From Freud to Lacan we approach the feminine and the lopsided roads to love.

Keywords: Oedipus, Castration, Feminine, Phallic Enjoyment, Overenjoyment.


 

 

Gostaríamos de abordar o tema do amor paixão, tomado aqui no sentido do pahtos, e de como ele aparece na clínica psicanalítica na vertente dos parceiros sintomáticos ou na devastação feminina.

Os poetas e escritores nos inebriam com seus poemas e histórias e falam tanto do amor com o final feliz como da paixão que mata.

Vem à mente um filme antigo cujo título é De amor também se morre. Trata-se de uma mulher que sai de casa para se casar com um forasteiro, para se livrar da mãe que a massacra. Depois de um tempo relativamente feliz, o forasteiro, que era um homem do mundo, a abandona. “Se ao menos tivesse um filho...” Procura a mãe, que não a acolhe. Desesperada ao saber que sua avó materna que cuidara dela quando pequena morrera, sai pelas ruas e é atropelada.

Na clínica escutamos desencontros amorosos ligados primeiramente aos parceiros, que vão se desfiando como um rosário de penas, até chegar às desditas na relação mãe-filha que transitam entre a carência “ela nunca me amou” até o excesso “eu era tudo para ela”. Às vezes não sabemos de qual amor se trata e percebemos, na equivocidade da linguagem, que a primeira devastação é sempre a materna.

A hipótese que buscamos confirmar na clínica é: mulheres que foram devastadas pelas mães escolhem parceiros amorosos sintomáticos igualmente devastadores.

Malvine Zalcberg (2003) fala da devastação levando em conta a importância para ambos os sexos de encontrar um lugar no simbólico. Para que o sujeito possa advir, é preciso sair da submissão ao desejo materno, tomando do Outro paterno um traço mínimo de identificação.

Do pai recebe-se o legado da identificação viril que no menino o faz ter direito ao phalus, uma vez que porta o suporte imaginário do pênis. Na menina, o legado da identificação viril se revela incipiente, obrigando-a a se voltar para a mãe, exigindo-lhe identificação feminina de que ela, a própria mãe, não tem registro no psiquismo.

A devastação traz a própria evidência do que é ser mulher, ser falante, ser não-toda (fálica), no dizer de Lacan “ser um pouco louca”, referida ao falo e ao furo (privação). A mulher se depara com a castração e, em última instância, com a falta de significante no campo do Outro.

Freud fala de catástrofe quando se refere à relação mãe-filha (pré-edípica), confrontada com o vazio revelado pela ausência de registro daquilo que se possa representar como feminino.

A transição para o objeto paterno é realizada com o auxilio das tendências passivas, na medida em que escaparam à catástrofe (FREUD, [1921] 1996, p. 275).

Se a filha continua intensamente ligada à mãe endereçando a ela as tendências pulsionais ativas e passivas, tem dificuldade de se dirigir ao pai e depois aos outros homens, como mulher.

A catástrofe, para Freud, se relaciona com o destino do falo na menina. É tortuoso tornar-se mulher. Há que abandonar a zona erógena e o objeto de amor mãe para se dirigir ao pai.

Freud nos fala da inveja do pênis que corresponde a uma fixação infantil precoce, porque uma parte do gozo do sujeito está implicada nela. Esse gozo, que é decepção, se repete e está para além do princípio do prazer (masoquismo feminino).

O ciúme e a inveja estão mais presentes na menina, bem como no fantasma Uma criança é espancada (FREUD, [1919] 1996). Aí se dá a passagem da mãe (que não lhe deu o pênis), para o pai, como objeto de amor.

A catástrofe traz a mãe como responsável pela falta na filha, que não lhe perdoa por essa desvantagem. Por isso, a ligação intensa da menina com sua mãe termina em ódio. Lacan criou o neologismo “hainenamoration” (amódio) (haine = ódio) + (enamoration = amor). Ou seja, o caminho da menina para se tornar mulher tem restos e marcas do que foi a relação pré-edípica com sua mãe. Eles acompanham as escolhas amorosas. É comum escutar “casei com minha mãe”.

Assim, o processo de alienação/separação pelo qual todos passamos para nos constituir sujeitos tem uma especularidade diferente, quando se trata de mãe e filha. Eis a hipótese que buscamos discutir aqui.

Zalcberg nos fala que, para Freud, a feminilidade de uma mulher se constitui “entre pai e mãe”. Para Lacan, a feminilidade se dá “entre duas mães”, pois a figura da mãe para uma menina se desdobra em função materna e mulher.

Lacan utiliza o termo ravage (devastação, estrago) no texto O aturdito (1973), escrito logo após o estabelecimento das fórmulas da sexuação.

[...] a elocubração freudiana do Complexo de Édipo que faz da mulher peixe na água pela castração ser nela ponto de partida, contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe de quem como mulher ela realmente parece esperar mais substancia que do pai- o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação (LACAN, 2003, p. 465).

Substância vem do latim subsistere e significa habitar um lugar. Sub-sistere deriva do verbo stare presente na etimologia do existere, existir. Ex-sistir é ocupar um lugar fora de. Sabemos que a problemática da feminilidade para Lacan é a questão da ex-sistência/existência.

Subsistência se refere aos víveres. A demanda oral da filha para mãe é imensa, pois a mãe não pode lhe dar existência enquanto mulher, nem a substância feminina. Não lhe dá porque não tem; é da ordem do impossível. Nota-se que a demanda oral dirigida à mãe é muito ativa nas análises de mulheres. O que pode dar a mãe à sua filha? Seu amor e seu modo de lidar com o impossível de ser mulher.

A música de Joyce Feminina nos mostra belamente isso:

 

Feminina

— O’ mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?
— Não é no cabelo, no dengo ou no olhar, é ser menina por todo lugar.
— Então me ilumina, me diz como é que termina?
— Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar.
Costura o fio da vida só pra poder cortar
Depois se larga no mundo pra nunca mais voltar
— O’ mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?
— Não é no cabelo, no dengo ou no olhar, é ser menina por todo lugar.
— Então me ilumina, me diz como é que termina?
— Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar.
Prepara e bota na mesa com todo o paladar
Depois, acende outro fogo, deixa tudo queimar
— O’ mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?
— Não é no cabelo, no dengo ou no olhar, é ser menina por todo lugar.
— Então me ilumina, me diz como é que termina?
— Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar.
E esse mistério estará sempre lá
Feminina menina no mesmo lugar

Lacan fala da demanda de amor feminino que não cessa, que pede ainda mais, encore (en corps; en cuore), pois não há limite do lado feminino. Sabemos que toda demanda é demanda de amor. O amor demanda mais ainda, encore, é sempre insatisfeito.

Amar é dar a alguém que, por sua vez, tem ou não tem o que está em causa, mas é certamente dar o que não se tem (LACAN, [1957-1958] 1999, p. 218).

O amor procura realizar o encontro que pelo lado do sexo se torna impossível. Lacan diz que o “amor vem em suplência à não relação sexual”. Onde só se tem diferença, o amor pretende fazer o UM da união para dar algum significado à relação sexual que não é complementar.

Um sujeito como tal não tem grande coisa a fazer com o gozo. Mas por outro lado seu signo é susceptível de provocar o desejo. Aí está a mola do amor (LACAN, 1985, p. 69).

Quando a gente ama não se trata de sexo (LACAN, 1985, p. 37).

Então ser homem ou ser mulher é uma distinção frente à castração e à modalidade de gozo, ou seja, qualquer ser falante pode se localizar do lado masculino ou do lado feminino na sexuação, independente de sua anatomia.

Joel Birmam em Cartografia do feminino afirma que o conceito de feminilidade supõe uma nova abordagem do sujeito. Se na teoria do falo o sujeito busca a totalização, na feminilidade há um “não controle sobre as coisas”, fugindo da lógica binária de ser ou não ser, ter ou não ter o falo (BIRMAM, 1999, p. 51).

Não existe relação sexual harmônica e complementar entre sexos. O parceiro amoroso se revela herdeiro da relação pré-edipiana com a mãe e, mais precisamente, das censuras feitas à mãe, tornando-se alvo das reivindicações fálicas. As parcerias amorosas são, portanto, sintomáticas.

O que quer a mulher? Ser amada loucamente através das cartas de amor. A contingência do encontro se dá pelo amor.

O gozo suplementar é o lugar da confrontação do ser humano com sua finitude e incompletude. É a possibilidade de viver com o desvanecimento, com a ausência do Outro que só se alcança a partir do simbólico .

A mulher é não-toda, o que a faz ausente de si mesma e, portanto, ausente como sujeito. Vemos na clínica mulheres enlouquecidas tomando atitudes mais impulsivas, sempre em nome do amor pelo homem e podendo até morrer de amor, como no filme.

Malvine Zalcberg (2010), em conferência no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, diz que o homem é devastador para a mulher se a deixa solta, se lhe nega as palavras de amor. “Sempre ser mulher para um homem” (sic). A mulher pede ao homem que cifre seu gozo.

Se uma mulher é sinthoma para todo homem, fica absolutamente clara que a necessidade de encontrar um outro nome para o que o homem é para a mulher [...] Pode-se dizer que o homem é para uma mulher tudo o que quiserem, a saber, uma aflição pior que um sinthoma [...] Trata-se mesmo de uma devastação (LACAN, [1975-1976] 2007, p. 98).

Diante da falta de lugar como mulher, só lhe resta fazer-se objeto para o Outro.

O estado de estar amando é comparado à fascinação ou à servidão.

O objeto amado consome o eu e este se empobrece
(FREUD, [1921] 1996, p. 143).

A devastação é consequência do arrebatamento, devido à falta de significante da mulher. Ravissement vem do latim e significa: pilhar, roubar, forma de êxtase onde a alma é penhorada; pessoa transportada de admiração.

Em O arrebatamento de Lol V. Stein (Marguerite Duras, 1964) aparece a fascinação de Lol ao olhar a mulher de preto que lhe rouba seu noivo no baile. A mãe de Lol a leva para outro lugar, casa-se com um homem com quem tem uma relação muito parecida com a mãe e vai se isolando de todos. Na última parte, Lol volta a sua cidade depois da morte da mãe e passa a assistir aos encontros de uma antiga amiga e seu amante revivendo a cena do baile, onde perdera o noivo para a Outra mulher. Lol enlouquece no arrebatamento fascínora (faz-sina).

Espera-se que as análises façam as mulheres se confrontarem com o feminino e, como a mãe, encontrar um parceiro, um homem, com o qual façam sinthoma para ter filhos, em vez de perpetuar a devastação materna em suas escolhas amorosas e em suas próprias filhas.

 

Referências

BIRMAN, J. Cartografia do feminino. São Paulo: Editora 34, 1999.         [ Links ]

CAMPANÁRIO, I. S. Espelho, espelho meu. Salvador: Ágalma, 2006.         [ Links ]

DURAS, M. O deslumbramento (Le ravissement de Lol V. Stein [1964]). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
Rua Levindo Lopes, 333/1008 – Savassi
30140-911 - BELO HORIZONTE/MG
E-mail: rlindopimenta@gmail.com

Recebido em: 03/09/2013
Aprovado em: 20/03/2014

 

 

Sobre a autora

Vanessa Campos Santoro
Psicóloga. Psicanalista. Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.