Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Reverso
versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.36 no.68 Belo Horizonte dez. 2014
ARTIGO
Transposição: poema e psicanálise
Transposition: poem and psychoanalysis
Erick Gontijo Costa
Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO
Este artigo aproxima a escrita do poema à do matema, a partir do conceito de transposição, do poeta francês Stéphane Mallarmé, e de alguns textos do poeta português Herberto Helder.
Palavras-chave: Poema, Matema, Transposição, Stéphane Mallarmé, Herberto Helder.
ABSTRACT
This article approximates the writing of a poem to the writing of a matheme, following the concept of transposition by the French poet Stéphane Mallarmé, and some texts by the Portuguese poet Herberto Helder.
Keywords: Poem, Matheme, Transpoition, Stéphane Malarmé, Herberto Helder.
O escritor real tem, muitas vezes,
apenas uma ferida cujo nome ele desconhece,
mas que lhe concede silêncio
e uma palavra gaga e balbuciante.
PESSANHA, 2013.
Escrever, para alguns, é trazer, por meio de certa operação lógica, o impossível à língua. O que se coloca como impossível frente à linguagem é o que lhe excede, o que nela não se registra via simbolização, mas se apreende em seu silêncio, entre uma e outra palavra. A língua do escritor que diz a partir de sua ferida, do que traumatiza o corpo de sua língua, é sempre uma linguagem que opera com resíduos restantes do que não chega a se simbolizar.
Escrever, em psicanálise, pode servir, dentre outras coisas, para escrever o que não pode ser escrito. A esse respeito, o psicanalista Ram Mandil assim apresenta uma hipótese para a função da escrita na psicanálise:
À pergunta “para que serve a escrita?”, responderia com uma frase, com valor de hipótese [...]. Diria que, para a Psicanálise, sobretudo após Lacan, a escrita serve [...] para escrever o que não pode ser escrito. Essa resposta, para que não caia no paradoxo, necessita da distinção entre a escrita, de um lado, e o que não pode ser escrito, de outro. O que está indicado é que escrevemos a partir do que não pode ser escrito, isto é, movidos pelo que não é capaz de se inscrever (MANDIL, 1997, p. 104).
Marguerite Duras (1993, p. 51-52) em Escrever, apresenta, com a precisão do poema e, talvez do matema, a operação que aqui a entendemos como escrita do impossível:
Escrever.
Não posso.
Ninguém pode.
É preciso dizer: não se pode.
E se escreve.
É o desconhecido que se porta em si: escrever, é
isso que se alcança. Isso ou nada.1
Aquém da metaforização, a escrita do impossível – tratamento ao que nela não se registra por inteiro – é a experiência de criação a partir do que resta da linguagem esgarçada pelo que a excede. A escrita, nessa perspectiva, distancia-se da ornamentação da língua, da estética tranquilizante de eficácia mercadológica. Escrever é transpor o real à letra.
Transposição - estética da cura analítica
Alain Badiou, em seu texto Por uma estética da cura analítica, busca formalizar, a partir da obra do poeta francês Stéphane Mallarmé, o conceito de transposição. Extraído da obra do poeta, o conceito é pensado analogamente ao tratamento analítico, visando a apresentar a estética proposta por Mallarmé como uma experiência similar à cura analítica lacaniana:
Lacan define a análise de modo muito preciso: a análise deve elevar a impotência ao impossível, a cura analítica é a passagem de um estado de impotência a uma experiência do real e, portanto, a uma experiência do impossível. O que me interessa é essa passagem da impotência ao impossível. Eu gostaria de mostrar que a transposição poética é também uma passagem da impotência ao impossível, uma passagem na língua (BADIOU, 2004, p. 237).
Na experiência de análise ou de algumas escritas, ocorre uma passagem, marcada pelo desaparecimento de um objeto, contra o qual o sujeito inicialmente nada pode. Nessas práticas de leitura e escrita, a própria língua, esgarçada pela perda, opera sobre o real que em si incide, passando, ao bordejá-lo, à afirmação do impossível na própria língua.
Mallarmé, em Crise de verso, apresenta a direção de sua obra, regida pela lógica da transposição:
Falar não concerne à realidade das coisas senão comercialmente: em literatura, isso se contenta em fazer-lhe uma alusão ou em distrair sua qualidade que alguma ideia incorporará.
Sob essa condição se lança o canto, que uma alegria aliviada.
Essa visada, digo-a Transposição – Estrutura uma outra.
A obra pura implica a desaparição elocutória do poeta, que cede a iniciativa às palavras, pelo choque de sua desigualdade, mobilizadas; elas se iluminam de reflexos recíprocos como um virtual rastro de fogos sobre pedrarias, substituindo a respiração perceptível no antigo sopro lírico ou a direção pessoal entusiasta da frase (MALLARMÉ, 2010, p. 164-165).
Primeiramente, o poema incorpora não a realidade das coisas, mas sua ideia. Não falamos apenas em representação das coisas, pois, como veremos, algo acede ao poema como impossibilidade afirmada. Não se trata-se de pura simbolização da realidade, mas de depuração do registro simbólico e esvaziamento do imaginário da língua até seu limite, em que irrompe o real, transmissível pela letra. Esse primeiro passo, a transposição do real ao simbólico, estrutura na língua do poema – obra pura – um desaparecimento do poeta, de seu caráter identitariamente enraizado no eu, para dizermos com precisão. A iniciativa é agora das palavras, do que nelas extravasa o eu. Badiou, por sua vez, partindo dessa formulação de Mallarmé, assim elabora o conceito de transposição em seu texto:
A transposição, como operação poética, parte da impotência, cuja causa é um desaparecimento ou uma perda, organiza no poema um desaparecimento segundo (poder-se-ia dizer quase um desaparecimento mimético) e produz, finalmente, uma afirmação, que é uma afirmação real e a afirmação de um ponto de impossível. É nessa profundidade que há uma semelhança entre o poema de Mallarmé e a cura analítica (BADIOU, 2004, p. 239).
Temos, portanto, um primeiro momento, em que há a impotência da linguagem diante do limite do dizer simbólico. A princípio, encontram-se apenas os vestígios do que da linguagem desaparece: um objeto perdido. O poema, partindo dos vestígios do objeto, que é perda na língua, organiza um desaparecimento segundo, o dos vestígios. Fazendo desaparecer no poema os vestígios do objeto desaparecido, a linguagem depara-se com o que lhe é impossível. Há aí um deslocamento: da impotência de representar a perda à afirmação de uma impossibilidade na língua.
Ao impossível que se afirma na língua – em psicanálise, o real – Mallarmé nomeia noção pura.
Para que a maravilha de transpor um fato de natureza em sua quase desaparição vibratória segundo o jogo da fala, entretanto? se não é para que daí emane, sem o incômodo de um próximo ou concreto chamado, a noção pura? (MALLARMÉ, 2010, p. 166).
Segundo Badiou,
A ‘noção pura’ vem no lugar onde algo desapareceu. Mallarmé diz: la notion d’un objet qui fait défaut – ‘a noção de um objeto que falta’. No fundo, a noção pura de Mallarmé é o real daquilo que foi perdido. Não é o objeto, pois o objeto falta, mas é o real do objeto perdido. E Mallarmé vai distinguir o real da perda daquilo que é perdido na perda. Esta é a primeira observação sobre a transposição, é o objetivo da transposição: ela é, verdadeiramente, a experiência do real (BADIOU, 2004, p. 239).
Na experiência do real, o poema desemboca em seu exterior, abre a língua à noção do que em si não se registra – a noção pura. “E aquilo que o poema não pode dizer não é ‘indizível’, mas sim o real do dizer” (BADIOU, 2004, p. 240).
Mallarmé, a respeito do que é vestígio a se apagar na língua, visando à noção pura, escreve:
Digo: uma flor! e, fora do oblívio em que minha voz relega qualquer contorno, enquanto algo de outro que os cálices conhecidos, musicalmente se levanta, ideia mesma e suave, a ausente de todos os buquês (MALLARMÉ, 2010, p. 166).
O objeto se coloca não mais como ser nomeado, mas ausência, vestígio. Assim, no lugar da nomeação – “uma flor” – tem-se, agora, uma sugestão – “a ausente de todos os buquês”. Inicia-se uma passagem de um primeiro a um segundo desparecimento na língua. Blanchot, por sua vez, dirá sobre “a ausente de todos os buquês”:
A palavra afasta o objeto: ‘Eu digo uma flor!’ e não tenho diante dos olhos uma flor nem uma imagem de flor ou uma recordação de flor, e sim uma ausência de flor. ‘Objeto emudecido’ (BLANCHOT, 1997, p. 37).
Frente ao impossível, seguindo a lógica de Badiou, dois passos, portanto. No primeiro, a descoberta de vestígios de um desaparecimento real; no segundo, fazendo desaparecer os vestígios, o poema se faz “objeto emudecido”, em desaparecimento. Entretanto, se Badiou afirma a existência de um primeiro e de um segundo desaparecimento, pensamos ser preciso um terceiro passo. É preciso notar que, na escrita do impossível, o desaparecimento do objeto é contínuo, é uma prática permanente, para não retornarmos ao campo da rigidez plástica e significativa da metáfora. É preciso, para que se dê a transposição, um movimento rumo ao passo de sentido, que é também não sentido: pas-de-sens (CASTELLO BRANCO, 2011, p. 156).2 É preciso silenciar a metáfora no poema, torná-la literal, até o tênue limiar em que se esgarçam o simbólico e o imaginário, sem os destruir, para que a noção pura emerja no lugar do objeto, desaparecendo.
Para Badiou, dessa operação de escrita sobre a direção da estética da cura analítica, resulta um sujeito de pensamento:
Pode-se então dizer que algo é criado como um sujeito sobrenatural, eu digo sobrenatural justamente no sentido de que a situação é artificial e formal, o que quer dizer um sujeito que atravessou a perda e que não é simplesmente a presa, a vítima dessa perda. Isso pode ser chamado de um ‘sujeito de pensamento’ (BADIOU, 2004, p. 242).
Mas sabemos a partir da psicanálise, um sujeito não é fixo nem permanente. Pensamos, assim, que na prática de escrita não há cura definitiva, há contínuo acurar-se da escrita, em que o sujeito pode aparecer, para então desaparecer. O escrito, que se vai depurando na prática de escrita, atinge a precisão, a exatidão do dizer. Se Badiou afirma que possa pensar em um sujeito eterno, pensamos que tal eternidade só se dará no ato contínuo da escrita e talvez no espaço cerrado de um livro, que guarda em si o infinitivo gesto de acurar-se da escrita. Há aí o eterno? Se não há desaparecimento completo do objeto, há contínuo desaparecimento de um “objeto emudecido”, há uma “fração real dos dedos juntos”, onde pulsa, na língua do poema, o “terror da beleza”:
[...] até cada objeto se encher de luz e ser apanhado
por todos os lados hábeis, e ser ímpar,
ser escolhido,
e lampejando do ar à volta
na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos
como para escrever cada palavra:
pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
um copo de água,
tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima
tão súbito e implacável na vida administrativa.
(HELDER, 2013, p. 45)
Há, em transposição, contínua afirmação da impossibilidade, há a palavra concisa desdobrando-se ao infinito, entretanto suportada, delimitada na (des)medida do livro.
Poema e matema
Na teoria lacaniana, o conceito de letra vai-se depurando pouco a pouco. Inicialmente, é suporte material, significante vazio de significado. Posteriormente, como litoral entre o que na língua é símbolo e ao que nele não se registra, será pensada como limiar entre o imaginário, o simbólico e o real,3 compondo um nó escritural capaz de dar suporte ao corpo, ao discurso e à realidade, isto é, conferir sustentação ao objeto vazio que estrutura o mundo de um sujeito – o objeto a (MANDIL, 2003, p. 256).4 A letra, objeto manipulável, é o que se transmite no texto, para além da significação.
O poeta Herberto Helder, em Estilo, demonstra o método de redução da linguagem ao seu caráter matemático, equacional, literal, visando a dar tratamento, por meio da operação com as letras, isto é, com o poema, às experiências vividas:
O estilo é um modo sutil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte (HELDER, 2005, p. 11-12).
O estilo a que se faz referência é, de certo modo, a transposição da experiência – excessiva – à linguagem. Transposição da desordem estuporada da vida em dois ou três tópicos que se equacionam. No mesmo texto, o poeta afirma ter criado seu estilo, que se pode tomar como método para pensar o que é a prática da letra no poema, a partir da aproximação da linguagem poética à equação matemática:
Arranjei meu estilo estudando matemática e ouvindo um pouco de música. [...] Conhece com certeza essa coisa tão simples, tão harmoniosa e definitiva que é um sistema de três equações e três incógnitas. Primário. Rudimentar. Resolvi milhares de equações (HELDER, 2005, p. 12-13).
Essa indicação de um poeta, a de que poesia e a literalidade máxima de uma equação se encontram em procedimento, em técnica, é de grande valor para se pensar a teoria da letra. O psicanalista Jacques Lacan ([1957] 1998), em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, percebe que o texto poético leva a linguagem a sua máxima literalidade e, por essa via, transmite o que tem a dizer integralmente: não a sua significação, mas a sua letra, o seu efeito poético de afetar os que leem ou escrevem por meio da letra:
[...] o texto mais carregado de sentido desfaz-se nessa análise, em bagatelas insignificantes, só resistindo a ela os algoritmos matemáticos, os quais, como seria de se esperar, são sem sentido algum (LACAN, ([1957] 1998, p. 301).
Na linguagem da poesia, o mal-entendido gerado pela deriva do significante prosaico tende à redução, chegando-se à exatidão do dizer. Assim, o poema aproxima-se do matema, de uma fórmula que se transmite integralmente, não pela via do sentido, mas pela via literal.
Referências
BADIOU, A. Por uma estética da cura analítica. Tradução de Analúcia Teixeira Ribeiro. A psicanálise & os discursos, Rio de Janeiro, n. 34/35, ano XXIII, p. 237-242, 2004. Publicação da Escola Letra Freudiana. [ Links ]
BLANCHOT, M. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. [ Links ]
CASTELLO BRANCO, L. Chão de letras - as literaturas e a experiência de escrita. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011. [ Links ]
DURAS, M. Écrire. Paris: Gallimard, 1993. [ Links ]
HELDER, H. Os passos em volta. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. [ Links ]
HELDER, H. Servidões. Lisboa: Assírio e Alvim, 2013. [ Links ]
LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. [ Links ]
MALLARMÉ, S. Divagações. Santa Catarina: Ed. UFSC, 2010. [ Links ]
MANDIL, R. Os efeitos da letra - Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Contra Capa; Faculdade de Letras da UFMG, 2003. [ Links ]
MANDIL, R. Para que serve a escrita? In: ALMEIDA, M. I. (Org.). Para que serve a escrita? São Paulo: Educ, 1997. [ Links ]
PESSANHA, J. Como fracassar em literatura. Pausa. Belo Horizonte, n. 100, p. 16-20, jun. 2013. Disponível em: http://issuu.com/pausa/docs/pausacem. Acesso em: 16 ago. 2013.
Endereço para correspondência:
Rua Bernardo Guimarães, 1845/702 - Lourdes
30140-082 - Belo Horizonte - MG
E-mail: erickgcosta@gmail.com
Recebido em: 05/05/2014
Aprovado em: 15/09/2014
SOBRE O AUTOR
Erick Gontijo Costa
Doutor em teoria da literatura e literatura comparada – UFMG .
1A tradução que propusemos parte do francês, em que se lê: “Écrire / Je ne peux pas. / Personne ne peut. / Il faut dire: on ne peut pas. / Et on écrit. / C’est l’inconnu qu’on porte en soi: écrire, c’est / ça qui est attaint. C’est ça ou rien” (DURAS, 1993, p. 51-52).
2 Tal elaboração é derivada do texto Um passo de letra, de Lucia Castello Branco (2011, p. 156), em que se pode ler: “O que pretendemos aqui, neste breve passo, não é nos determos nas diversas nuances que os conceitos de letra e de escrita foram tomando ao longo do ensino de Lacan, mas o de apurarmos, a partir de uma formulação de Lacan acerca da escrita, a noção de letra como pas-de-sens: como o não sentido que confina justamente com o passo de sentido”.
3 Ao longo de seu ensino, o psicanalista Jacques Lacan formula três instâncias linguísticas interdependentes que compõem o funcionamento psíquico e corporal: o real, que aparecerá no registro imaginário como estranheza, opacidade, perda de contorno, falta de delimitação de um ponto faltante na imagem, ou, no registro simbólico, esgarçamento do sentido, falta de significado, falha lógica na ordem significante.
4 Ram Mandil assim apresenta o conceito lacaniano de objeto a: “Impregnado pela leitura de Joyce, Lacan chega a dar uma definição do que entende por artesão, ou seja, ‘aquele que, pela conjugação de dois significantes, é capaz de produzir o objeto a’ (LACAN [1957-1956], p. 10). Esse objeto a, como vimos, é um elemento precioso da elaboração lacaniana. No que nos interessa, o objeto a pode ser tomado como o que responde ao vazio, ao furo com o qual aquele que fala inevitavelmente se depara em sua relação com a língua”.