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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.37 no.69 Belo Horizonte jun. 2015

 

ARTIGO

 

Trauma e identidade brasileira

 

Trauma and brazilian identity

 

 

Eliana Rodrigues Pereira Mendes

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora faz um rastreamento das origens da sociedade brasileira, salientando os traumas que, como uma herança arcaica, constituíram nossa identidade. Aborda mais especificamente o povoamento desordenado do território brasileiro, com deserdados da sorte e posteriormente a instituição da escravidão, com suas marcas indeléveis. Relembra a história do primeiro e segundo reinados e da república, as ditaduras da era Vargas e do golpe militar de 1964, além da morte de Tancredo Neves na retomada da democracia. A corrupção atual parece ser um legado de um estado onde prevalece a lei do pai primevo, na qual o pacto social é pouco respeitado. Após analisar alguns traços da identidade brasileira, questiona se é possível ressignificar o pai faltante e se essas retificações podem atingir o inconsciente coletivo.

Palavras-chave: Trauma, Pai primevo, Herança arcaica, Identidade, Pacto social, Ressignificação.


ABSTRACT

The author traces the origins of Brazilian society, stressing the traumas that, as an archaic heritage have constituted our identity. Deals more specifically with the disorderly settlement of the Brazilian territory, with disinherited people, and later the constitution of slavery, with its indelible mark. Recalls the history of the first and the second Kingdom, and the establishment of the Republic and also the dictatorship of era Vargas and the military coup of 1964, and the death of Tancredo Neves, in the return to democracy. The current corruption appears to be a legacy of a state where the prevailing law is that of the primal father, in which the social pact is little respected. After analyzing some aspects of Brazilian identity, questions whether it is possible to reframe the missing father and whether these corrections can achieve the collective unconscious.

Keywords: Trauma, Primal Father, Archaic Inheritage, Identity, Social Pact, Reframing.


 

Deus é abordado por alguém que o questiona
por que favoreceu tanto o Brasil,
dotando-o de uma rica natureza
e poupando-o de desastres naturais,
como ciclones, terremotos, vulcões.
E ele responde:
“É verdade, mas você precisa ver o povinho
que vou pôr lá!”.

 

O trauma pode ser definido como

[...] um incremento de excitação no sistema nervoso, que este é incapaz de fazer dissipar-se adequadamente pela reação motora (FREUD, [1892] 1974, p. 197).

Dessa forma,

[...] toda impressão que o sistema nervoso tem dificuldades em abolir por meio do pensamento associativo ou da reação motora transforma-se em trauma psíquico (FREUD, [1892] 1974, p. 216).

O trauma tem sempre origem no sexual. Ao longo de sua experiência clínica, Freud foi deixando de lado o estatuto de verdade factual do relato de suas pacientes em relação ao abuso sexual causador do trauma. Verificou, para sua surpresa, que esses relatos quase sempre eram ficcionais, sendo, na verdade, um fruto da fantasia das histéricas.<

Embora se associe sempre o trauma à neurose, ele se apresenta no ato da fundação do sujeito falante, sendo que a entrada na linguagem já é traumatizante para o ser humano (FONSECA, 2006, p. 36).

O trauma caracteriza-se pela intensidade de afetos que, vindo de fora (fora do aparelho psíquico) de forma surpreendente e avassaladora, tomam conta do sujeito, que nada pode fazer com isso nessa ocasião, o que vai deixar marcas indeléveis ao longo da sua vida.

Alguns autores como Stolorow e Atwood (1993 apud FIGUEIREDO, no prelo), que desenvolveram uma teoria contextualista do trauma, acham que “[...] o traumático decorre da impossibilidade do contexto social acolher, legitimizar e autorizar afetos muito intensos”. A ênfase não seria só na quantidade dos afetos, mas na ausência de sintonia do ambiente (acolhimento, continência, simbolização e expressão social) dos afetos. Trata-se de não encontrar uma resposta social capaz de conter e processar simbolicamente as intensidades afetivas. São esses afetos não suportados e por isso insuportáveis os que podem produzir efeitos traumatizantes.

O que quero salientar neste pequeno texto, porém, é a importância do trauma como uma lembrança arcaica, que vai abranger não só um indivíduo da espécie humana, mas uma totalidade que se encontre sob as mesmas condições físicas e psíquicas, num determinado momento.

Rastreando na obra freudiana esses momentos míticos, vamos encontrar em Totem e tabu (1913) a apresentação da fundação da sociedade humana, através do assassínio do pai da horda, na disputa e rivalidade pela posse das mulheres do grupo, às quais o pai primevo tinha todo o direito e acesso.

Um acontecimento como esse da eliminação do pai primevo pelo grupo de filhos deve inevitavelmente ter deixado traços indeléveis na história da humanidade e, quanto menos ele próprio tenha sido lembrado, mais numerosos devem ter sido os substitutos a que deu origem (FREUD, [1913] 1974, p. 184).

Freud vai falar que as origens da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo, e esse mesmo complexo constitui o núcleo das neuroses.

Parece-me ser uma descoberta muito surpreendente que também os problemas da psicologia social se mostrem solúveis com base num único ponto concreto: a relação do homem com o pai (FREUD, [1913] 1974, p. 186).

Na consideração dessas ideias, Freud esclarece que tomou por base de sua posição a existência de uma mente coletiva, em que ocorrem processos mentais exatamente como acontece na mente de um indivíduo. Supõe-se que o sentimento de culpa por uma ação persistiu por milhares de anos e continuou operante para gerações que não podiam ter conhecimento dessa ação. Sem o pressuposto de uma mente coletiva a psicologia social não pode existir. Os homens de então sentiram remorso por seu crime e decidiram que ele não poderia se repetir. Esse sentimento de culpa criativo ainda persiste entre os humanos.

Um quarto de século depois desse artigo, Freud traz à luz o livro Moisés e o monoteísmo (1939), em que retorna ao problema da importância da tradição para os homens e de que modo ela pode se ter feito presente. Sendo assim, vai dizer que:

[...] em minha opinião, existe, a esse respeito, uma conformidade quase completa entre o indivíduo e o grupo: também no grupo uma impressão do passado é retida em traços mnêmicos inconscientes (FREUD, [1939] 1974, p. 115).

Quanto à herança arcaica, Freud diz:

Quando estudamos as reações a traumas precoces, ficamos amiúde bastante surpresos por descobrir que elas não se limitam estritamente ao que o indivíduo experimentou, mas dele divergem de uma maneira que se ajusta muito melhor ao modelo de um evento filogenético, e em geral, só podem ser explicadas por tal influência. O comportamento de crianças neuróticas para com os pais no complexo de Édipo e de castração abunda em tais reações, que parecem injustificadas no caso individual e só se tornam inteligíveis filogeneticamente – por sua vinculação com a experiência com as gerações anteriores. [...] a herança arcaica dos seres humanos abrange não apenas disposições, mas também um tema geral: traços de memória da experiência das gerações anteriores. Dessa maneira, tanto a extensão quanto a importância da herança arcaica seriam significativamente ampliadas. Pressupondo a sobrevivência de vestígios de memória na herança arcaica, se elimina a separação entre psicologia individual e de grupo: podemos abordar os povos da mesma maneira como encaramos um indivíduo neurótico (FREUD, [1939] 1974, p. 120).

Trazendo essas considerações para o assunto que nos interessa neste momento – a formação da identidade brasileira –, tentarei abordar alguns itens que julgo serem traumas constitutivos do povo brasileiro, lembrando que este é um tema amplo de debate, multifacetado, interdisciplinar e que estas considerações visam apenas trazer um foco de atenção para o tema.

Que traumas constitutivos aparecem em nossa herança arcaica? Como nos formamos como povo e cidadãos?

 

As fundações

A começar, o descobrimento do Brasil aconteceu de um erro de rota. Os navegadores portugueses estavam preocupados com o caminho das Índias, que lhes daria acesso às especiarias tão cobiçadas no mundo ocidental de então. Mas foram dar com os costados numa terra diferente, que lhes causa estranhamento pela sua extravagância e um deslumbre diante de uma natureza tanto fantástica quanto indomável. Podemos dizer que nascemos como país de um equívoco que nos tornaria, talvez para sempre, um entreposto comercial.

As primeiras populações que foram trazidas para o novo mundo não vieram de bom grado nem planejavam ficar. Eram, na sua maioria, deserdados da sorte, indesejáveis na sociedade da qual partiram. Na busca de esposas para esses primeiros povoadores, foram recrutadas órfãs que se casavam sem considerar sua vontade. Podemos imaginar daí o complexo enredo do romance familiar dos primeiros brasileiros dessa época.

Segundo a historiadora Laura de Mello e Souza (2013, p. 23-24) no princípio da colonização não havia nenhuma preocupação consistente com o povoamento, e Portugal, que só tinha olhos para o Oriente, considerou a terra, ainda um território fragmentado, que nada tinha da unidade de hoje, uma espécie de “espaço – reserva” para atividades posteriores.

O início da colonização não criou a unidade, e foram abertas várias frentes colonizadoras, mais ou menos independentes, isoladas, comunicando-se preferencialmente com a Corte do que umas com as outras. As próprias capitanias hereditárias, cedidas pela Coroa a particulares, com uma configuração espacial fragmentada e isolada, persistiram por séculos, sendo uma das feições dominantes do território brasileiro até praticamente o século XX. Chamada de Vera Cruz, Terra dos Papagaios, Terra de Santa Cruz, o nome que prevaleceu foi o de Brasil, que designava o pau-brasil, madeira que tingia panos e que alimentava o mercado da terra recém-descoberta. Esse nome foi mais importante do que o nome Santa Cruz, “[...] daquele pau que deu tintura a todos os sacramentos por que somos salvos, pelo sangue de Cristo que nele foi derramado”, segundo críticos do nosso nascente mercantilismo. Ponto para o mercado.

Quando se faz uma comparação com a colonização dos Estados Unidos da América do Norte e a nossa, temos que concordar com o historiador brasileiro Vianna Moog, que faz no livro Bandeirantes e pioneiros (1954) um cotejamento das condições de uma e de outra colonização. Enquanto nos Estados Unidos os colonizadores eram peregrinos que vinham se estabelecer com suas famílias no novo mundo, para seguir a sua fé e cultivar seu pedaço de terra, em nosso país tivemos as bandeiras, que se embrenhavam nas matas para capturar os nativos para trabalho escravo e conseguir riquezas para o comércio com a Europa. É bem verdade que dessa temerosa aventura muitas cidades foram se formando, com o recuo e a desistência de prosseguimento de muitos de seus integrantes. Mas isso aconteceu ao acaso e sem nenhuma intencionalidade. Novamente predominou a mentalidade extrativista.

Nas palavras de Calligaris (1991, p. 16-17),

[...] o colonizador foi aquele que veio impor a sua língua a uma nova terra, ou seja, ao mesmo tempo demonstrar a potência paterna (a língua do pai saberá fazer gozar um outro corpo do que o corpo materno) e a vai exercer longe do pai. Pois talvez o pai interdite só o corpo da mãe pátria, e aqui, longe dele, a sua potência herdada e exportada abra-me o acesso a um corpo que ele não proibiu.

Considera um equívoco fantástico, que só existe na língua portuguesa, o fato de a palavra “explorar” a terra querer dizer não só ser o primeiro a conhecê-la, mas também arrancar seus recursos.

Ele maneja a nova terra como se pode sacudir o corpo de uma mulher possuída, gritando: Goza Brasil, e esperando o próprio gozo do momento no qual a mulher esgotada se apagará em suas mãos – prova definitiva da potência do estuprador (CALLIGARIS, 1991, p. 17-18).

As piadas de portugueses, embora sejam frequentes as piadas de colonizados em relação aos colonizadores (belgas versus franceses, p. ex.), pensa Calligaris terem sido inventadas pelos que vieram para cá. Os portugueses que ficaram foram aqueles que não vindo, não saberão gozar e nunca vão saber gozar direito, pois renunciaram ao gozo de um corpo que não lhes fosse talvez proibido.

Mas, seguindo ainda seu raciocínio, o colonizador também é triste, pois saberá que não é bem esse o corpo que ele queria, e sim o que ficou para trás. A meu ver, isso leva os que vieram a sempre alimentar a fantasia de um retorno. A potência da língua paterna da qual se apropriou não impede que ele constate o fracasso dessa apropriação, pois para exercer a potência paterna como se fosse a sua, teve que deixar o corpo da mãe pátria.

O colonizador veio então gozar a América, por isso deve esgotá-la, mas sabe que não era a América que ele queria fazer gozar (CALLIGARIS, 1991, p. 18-19).

Quando o brasileiro diz que “o Brasil não presta”, frase que Calligaris ouviu de muitos quando se decidiu a permanecer aqui, pensa ele que o colonizador tem com o País enquanto corpo uma cobrança que lhe permite dizer isso, seja porque esse corpo deveria ser outro (aquele que foi deixado), seja porque não goza como deveria.

Outro grande trauma coletivo nosso foi a escravidão, que entre nós durou muitos e muitos anos e deixou uma ferida difícil de cicatrizar. Se hoje não temos um racismo mais declarado, ele continua de forma dissimulada, sob a capa de um fosso de diferença econômica e social, bastante intransponível, explodindo na atual violência generalizada do País. Quem tem nada a perder, só vai poder ganhar.

Se compararmos novamente nossa história com a dos Estados Unidos, vemos que para eles a libertação dos negros deflagrou uma guerra ferrenha, com uma quase cisão dos estados do Norte, mais progressistas, e os do Sul, agrários e dependentes da mão de obra escrava.

Nossa lei áurea, libertando definitivamente a grande massa negra de escravos, só se deu em 1888, trazendo em seu rastro a proclamação da República, em 1889, sendo que, com essa medida, os grandes proprietários de terra deixaram de apoiar a monarquia, que já vinha claudicante.

Nosso racismo também é diferente. Se nos EUA a luta foi grande, o que vemos aqui é um racismo muito mais dissimulado e uma intensa miscigenação, que trata de “branquear” os traços negros, a ponto de a mulata ser considerada uma instituição nacional. No Brasil valem mais as aparências do que as origens propriamente ditas.

Para entendermos nossa formação, seria interessante voltar para os primeiros tempos de nossa história e analisar as vicissitudes pelas quais passamos.

Se a colonização correu solta nos primeiros anos do Brasil, chegou um dado momento, por volta de 1540, no qual, por necessidade econômico-financeira, começou a haver, por parte da Corte, um controle mais rígido nas províncias ultramarinas e no próprio território português. Para cobrar e controlar, vigiar e punir, submeter e exigir de seus súditos o cumprimento de uma série de novas obrigações, foi necessário criar vastos e complexos aparelhos burocráticos. E essa burocracia tentacular passou a fazer parte do aparelho do Estado, do que nos ressentimos até hoje, tantos séculos depois.

Além disso, a política do nepotismo e do compadrio ficou evidenciada por parte do funcionalismo. Detentores de cargos tais como desembargadores, cobradores de impostos, juízes, escrivães, meirinhos, administradores e burocratas em geral,

[...] encontravam-se em posição sólida o suficiente para instituir uma espécie de ‘poder paralelo’, um quase Estado que, de certo modo, conseguia arrebatar das mãos do rei as funções administrativas.

Esse mesmo funcionalismo

[...] articulou também fórmulas legais e informais que lhes permitiram se transformar num grupo autoperpetuador: os cargos eram passados de pai para filho ou então para parentes e amigos próximos (BUENO, 2013, p. 254-256).

Já havia notícia de superfaturamento, naqueles tempos, nos pesos e nas medidas dos mantimentos, por exemplo, frequentemente fraudados. O historiador Teodoro Sampaio já fala que a construção da cidade de Salvador foi feita com preços superfaturados, após licitações fraudulentas.

O que hoje chamamos de peculato, apropriação de dinheiro público em proveito próprio, não chegava a ser uma irregularidade; era institucionalizado, o que o jurista Raimundo Faoro ([1925] 2003) chamou de Estado Patrimonial, no qual a esfera pública e a privada se confundem. A Coroa arrendava a particulares o direito de cobrar impostos assim como de explorar produtos monopolizados pelo Estado (FAORO [1925] 2003 apud VAINFAS, 2013, p, 261).

A arte de furtar foi um livro escrito em 1652, no qual ironicamente o autor chegava à conclusão de que o furto era algo nobre, e à moda barroca, caracterizava dezenas de fórmulas dessa arte. A obra foi atribuída ao padre Antonio Vieira, mais tarde ao jesuíta Manoel da Costa e a outro diplomata de D. João IV. “Só foi publicada em 1744, mas, sem dúvida, ainda tem total atualidade” (VAINFAS, 2013, p. 261-262 ).

Poucas revoltas contra esse estado de coisas, como a Inconfidência Mineira, foram levadas a termo, mas com uma repressão brutal por parte da Coroa portuguesa.

 

Os reinados

Apenas em 1808, com a perseguição de Napoleão a Portugal e a consequente fuga de D. João VI para o Brasil, que se deu de forma também improvisada e caótica, conforme atestam os dados históricos, foi que tivemos um regente entre nós. Se até aqui era-nos proibido desenvolver qualquer tipo de indústria e nossa economia dependia estritamente de Portugal, pudemos então articular uma economia própria.

D. João VI somente ascendeu à condição de herdeiro da Coroa portuguesa por causa da morte do irmão mais velho, por isso não se beneficiou de uma educação esmerada, nem tinha inclinação para tal.

Apesar disso, assim como seu filho Pedro, futuro imperador do Brasil, não era o ignorante que se costuma julgar. Embora fosse avesso aos feitos militares e às festas brilhantes da Corte, apreciava cavalgar e amava a música, como a maioria dos Bragança. Espírito retraído, indeciso por natureza, seu reinado ocorreu num período de intensa turbulência econômica, política e social, que deu origem ao mundo contemporâneo, obrigando-o a tomar decisões importantes e evitar consideráveis obstáculos (NEVES; NEVES, 2013, p. 19-20).

Sua esposa, a infanta espanhola Carlota Joaquina teve com ele um relacionamento conflituoso, que os levou a uma separação de corpos e a um antagonismo crescente, sobretudo após a chegada ao Brasil, para onde ela não queria vir definitivamente e de onde saiu sacudindo a terra brasileira dos sapatos, pois não queria levá-la consigo para a Europa. Na verdade, seu sonho era o trono da Espanha. D. João ascende à regência em Portugal, com o adoecimento mental de sua mãe, Dona Maria, a louca. Segundo os historiadores, se D. João não foi um grande soberano, com proezas militares e golpes audaciosos de administração, foi um rei que soube combinar traços de bondade e senso prático de governar. Já seu filho, D. Pedro, apelidado de Demonão (DEL PRIORE, 2013, p. 231), era mais audacioso e decidido, com temperamento fogoso, como o da mãe, o que o levou a muitas aventuras extraconjugais, sendo a mais famosa aquela com a Marquesa de Santos. Tal fato penalizou muito a esposa, a imperatriz Leopoldina, herdeira dos poderosos Habsburgo da corte vienense, que chegou a amar o Brasil, de fato, mas morreu cedo e amargurada pela traição conjugal.

D. Pedro I, depois de declarar a Independência do Brasil, um tanto intempestivamente também, é chamado a Portugal e deixa em seu lugar um filho menor, também Pedro, que fica aos cuidados de um tutor, e que assume a regência aos 14 anos, em 1840. D. Pedro II, na iconografia oficial visto como um velho protagonizou um longuíssimo reinado, até 1889, com a chegada da república.

Segundo o historiador José Murilo de Carvalho (2013, p. 244-245) o imperador criou um governo orientado pelos bons valores republicanos, como o cumprimento das leis, o respeito pelo dinheiro público e a liberdade de expressão, mas uma das falhas de seu governo foi a incapacidade de, depois de garantir a sobrevivência do Estado Nacional, promover a expansão da cidadania política. A elite política se manteve limitada e fechada, e o povo só foi entrar de fato no sistema político depois do Estado Novo. Segundo a historiadora Mary Del Priore (2013) no fim da vida D. Pedro II demonstrava tal lentidão para tomar decisões, que foi apelidado de Pedro Banana, numa irreverência típica dos brasileiros. A princesa herdeira do terceiro reinado, Dona Isabel, também era profundamente arredia ao poder. Quando acontecia de substituir seu pai, clamava para que ele viesse logo “arredá-la de suas responsabilidades”. Não tinha nenhuma ambição política, e essa palavra, em sua correspondência, era sinônimo de coisa entediante, desconhecida, cansativa. Na vida real, ela foi a mulher que não queria ser imperatriz (DEL PRIORE, 2013, p. 297).

Embora a abolição tivesse acontecido num desses períodos em que substituía o pai sem nenhum planejamento e os negros tivessem ficado sem condições de se sustentar, o que os jogou na rua, praticamente, a figura da princesa se revestiu, entre os africanos e seus descendentes, de um significado muito especial, incompreendido até mesmo pelos monarquistas destronados. O republicano Rui Barbosa comentava indignado o fenômeno das manifestações de gratidão que os negros devotavam à princesa. Para ele, os negros não sabiam desfrutar da liberdade alcançada.

Mas na verdade, ao enaltecer a Princesa, ao comemorar a Abolição, estavam expressando a sua concepção de realeza, tal como a entendiam, na África: “[...] alguém que cuida e é responsável por eles, para o bem e para o mal” (DAIBERT JR., 2013, p. 247-248). Vemos, assim, que de fato a princesa, apesar de suas limitações, teve um papel para eles: a Redentora. Como diz Freud, é melhor ter um pai tirânico do que sofrer a ausência de um pai.

A abolição trouxe mais rapidamente a proclamação da República, sendo que o último ato público da monarquia foi o célebre baile da Ilha Fiscal, a 9 de novembro de 1889. Foi um banquete para duas mil pessoas e “[...] a ilha foi transformada numa ilha de fadas, uma maravilha, um paraíso perdido no oceano [...]”, segundo notícia da época (DEL PRIORE, 2013, p. 263). Seis dias depois, o imperador parte para o exílio com toda a família.

 

A República

Na República, os vícios e cacoetes da monarquia continuaram praticamente os mesmos: estado moroso, letárgico, nepotismo, falta de pensar o País. Assim se forma uma cultura brasileira de submissão, acomodação e fatalismo, a não ser por revoltas eventuais, em geral marcadas por misticismo religioso, como em Canudos.

A distância entre a lei e a realidade sempre esteve presente no cotidiano da maioria dos brasileiros. Até a metade do século XX, para quase toda a população rural, que era majoritária, a lei do Estado era algo distante e obscuro. O que a população conhecia bem era a lei do proprietário. Até delegados e juízes eram controlados pelas facções dominantes nos municípios. Havia ‘o juiz nosso’, o ‘delegado nosso’. O problema da transgressão da lei não se colocava para essa população. Nas cidades maiores, a situação variava pouco. Mas também, como pedir ao povo que respeite a lei se ele toma conhecimento todos os dias de exemplos de políticos, empresários e ricos burlando a lei? (CARVALHO, 2013, p. 267-268).

A classe média é a que está em melhor posição para perceber a transgressão e reagir contra ela. Está mais cercada pela lei em função de sua inserção profissional e é sobre ela que recai grande parcela dos impostos. É ela também que menos se beneficia das políticas sociais. Cabe a ela reagir e formar a opinião pública do país (CARVALHO, 2013, p. 267).

Foi principalmente a classe média que saiu às ruas nas manifestações de 2013, em movimento pacífico e espontâneo (o gigante acordou), até ser confrontada com os Black Blocs, vandalismo encomendado por quem interessa ver o circo pegar fogo.

Entre outros traumas sociais que vivemos na República, tivemos as duas ditaduras explícitas: a da era Vargas e a militar de 1964, nas quais o arbítrio da atuação dos governantes foi protegido, tendo sido interrompida a formação de uma nova sociedade mais crítica e ética, dentro dos padrões republicanos e democráticos.

Uma palavra sobre Brasília: seu isolamento geográfico permite uma ampliação da sensação de impunidade, tornando-a uma corte corrupta e corruptora.

Vivemos também como traumas coletivos o suicídio de Getúlio Vargas (considerado um dos pais da pátria), a interrupção dos anos JK, pela falta de um herdeiro político, a renúncia de Jânio Quadros ‘por forças ocultas’, em 1961, quando tudo se encaminhava para a valorização do Estado de direito, o golpe militar, já mencionado, em 1964, e a morte de Tancredo Neves na retomada da democracia.

E agora vivemos um governo que foi eleito como de oposição a um status quo, mas que pouco se diferencia dos outros. Ao contrário, pratica os mesmos vícios, só que mais abertamente, para decepção de tantos que dele esperavam outros rumos.

O que isso forjou na identidade brasileira? Não podemos contar com a cobertura de um Estado mais ético, que não seja a fonte da lei, como no caso do pai da horda, mas que a represente para seus cidadãos. Não podemos contar com um bom pacto social, que é a Lei do Pai.

Nesse pacto, através do trabalho, pede-se ao ser humano que confirme sua renúncia pulsional primária, aceitando o princípio de realidade. O trabalho é a inserção no tecido social, por mediação de uma práxis, aceitando a ordem simbólica que o constitui. Trabalhar é poder assumir os valores da cultura com a qual nos articulamos organicamente. O pacto com a lei do pai prepara e torna possível o pacto social. Se essa lei falha, o pacto fica esgarçado (PELLEGRINO, 1983).

A configuração da nossa sociedade nos leva a alguns estereótipos sociais como: brasileiro gosta de levar vantagem em tudo, é o rei do jeitinho, para o bem e para o mal, é superficial, improvisador, bom de bola, ruim de grana, e por aí vai. Mas é também sociável, versátil, musical, bom de lábia. Sem poder contar com uma boa formação de base, aposta em seu corpo e em seus dotes pessoais.

Aí entram os jogadores de futebol milionários e sem preparo psíquico, os artistas e ídolos que aparecem e somem com a mesma rapidez. Para as mulheres o culto ao corpo e a nudez abrem portas que não lhe seriam granjeadas de outra maneira. Se “não existe pecado do lado de baixo do Equador”.1 qualquer gozo é permitido. O Brasil exporta corpos para o mundo (é grande o número de prostitutas e prostitutos brasileiros no mercado internacional do sexo), como já exportou o pau-brasil, ou vende corpos no varejo, para o turismo sexual, muitas vezes pedófilo.

Sem a religiosidade que foi característica de outras épocas, em que tudo se colocava nas mãos de Deus, e com o esgarçamento do simbólico do pacto social, não há dívida simbólica a ser quitada. Todos querem o seu quinhão. A violência explode, detonada por novas formas de gozo, nas toxicomanias e na corrida do consumo como fonte prioritária de prazer. Recentemente, a população tem tido mais acesso a bens de consumo, embora de baixa qualidade, sem que tenha tido acesso a uma educação mais aprimorada. O carro passa na frente dos bois.

Nosso empolado hino nacional termina com a frase: “[...] dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada, Brasil”. Ao que nosso filósofo amigo Arlindo Pimenta acrescenta: “[...] a pátria (a natureza) é gentil, mas o estado é o pai primevo: exclusivista, vingativo, ávido por lucro”.

Podemos sair dessa? Se a impunidade for combatida, principalmente a do colarinho branco, se a legislação penal for reformada, assim como as instituições, sobretudo a polícia e o funcionamento judiciário, pode haver ganhos. A democracia política tem que ser usada para produzir a democracia civil, com igualdade perante a lei e menos desigualdade de renda.

Como pontos positivos, na ausência de um pai fonte de identificação, que preencha o ideal do eu coletivo, as fratrias são levadas a buscar soluções. A sociedade civil tem de se mobilizar nas organizações não governamentais para criar saídas viáveis para os problemas. Sem um grande Outro em nosso passado, no qual possamos nos espelhar, um sentimento de orfandade latente nos acompanha. Não temos um Nome-do-Pai que nos garanta suas insígnias e um pertencimento sólido ao nosso grupo cultural. Saímos pela tangente criando, inventando, numa disposição cordial, às vezes quase histérica de valorização do estrangeiro, como se ele sempre tivesse e pudesse nos prover com o que nos falta.

Nosso autoconceito é volátil: varia da maior euforia (Deus é brasileiro, somos campeões disso e daquilo) ao maior desalento (o último a sair apague a luz), o que indica um narcisismo cambiável. Aliás, se existem muitas piadas de português, o brasileiro também é pródigo em rir de si mesmo, com um vasto anedotário que sempre salienta a esperteza e o jeitinho brasileiros, numa fuga pelo humor, que é o que nos resta, diante da angústia de nos confrontarmos com situações traumatizantes que superam nossa capacidade de resolvê-las.

Sim, “aquela aquarela mudou”, como nos diz Chico Buarque em Bye, bye, Brasil.2 Mas mesmo assim, ou até por causa disso,

[...] temos de enfrentar as velhas fontes de mal-estar que nos traz a modernidade, e que são a ambivalência, a irresolução, a incerteza, com um pouco mais de tolerância e “jogo de cintura” (FIGUEIREDO, 2013, p. 25).

O “jogo de cintura” e a tolerância sempre fizeram parte da nossa mitologia como povo. Mas tais metas não são alcançadas individualmente. Tem que haver um esforço coletivo.

Muitos brasileiros, traumatizados com o Brasil, têm procurado outros países onde possam viver sem tantos conflitos e enfrentamentos. Mas há também o inverso. Alguns estrangeiros e alguns brasileiros persistentes, que encontram aqui exatamente o que temos para oferecer: muitas coisas a construir e uma realidade, apesar de tudo, mais plástica e renovável.

Enfim, seria possível e em quanto tempo haver uma ressignificação de nossa herança arcaica, reconstruindo essa figura do pai morto? As retificações também poderiam funcionar no inconsciente coletivo?

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rua Araguari, 1541, 7º andar - Santo Agostinho
30190-111 - Belo Horizonte - MG
E-mail: elianarpmendes@hotmail.com

Recebido em: 02/03/2015
Aprovado em: 10/03/2015

 

 

Sobre a Autora

Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Psicanalista.
Presidente do CPMG no biênio 1997-1999 e no triênio 2011-2014.

 

 

1 Primeiro verso da canção Não existe pecado ao sul do Equador, do repertório da peça teatral Calabar, o elogio da traição (1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra.
2 Canção de Chico Buarque e Roberto Menescal. Ed. Warner Chappel; Cara Nova. (P) 1980, 60995335.

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