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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.37 no.69 Belo Horizonte jun. 2015

 

ARTIGO

 

Como ler Além do princípio do prazer?1

 

 

Monique David-Ménard
Tradução: Bernardo Maranhão
Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello

I Escola Freudiana de Paris
II Centro de Formação e Pesquisa Psicanalítica
III Sociedade de Psicanálise Freudiana

Endereço para correspondência

 

 


O texto de Freud datado de 1920 é um objeto de leitura especialmente difícil de apreender, por diversas razões, que poderiam ser assim anunciadas:

1. Freud coloca em série, para definir o que ele denomina “pulsões de morte”, fenômenos tão heterogêneos que é difícil acreditar que um campo unificado se delineie nessas aproximações: pesadelos de neuroses de guerra, jogos de crianças, prazer de adultos em ir ao teatro, transposição para o tratamento analítico dos conflitos subjetivos, que impede a solução destes em lugar de torná-la possível, referência a textos filosóficos – Symposium, de Platão, ou teses de Schopenhauer – e “especulação biológica”, como ele mesmo diz, isto é, inscrição da vida sexual nas concepções embriológica e evolucionista de seu tempo. Essa heterogeneidade remete à questão: qual a relação entre o fenômeno clínico da repetição e a hipótese de uma pulsão de morte colocada como um princípio impossível de encontrar como tal na experiência das análises?

2. Em que a teoria dos traumas tumultua as relações a serem estabelecidas entre o que se denomina o interior e o exterior desse “aparelho da alma” (seelische Apparat) cujo modelo Freud construiu em 1895 e retrabalha aqui?

3. Como Freud descreve os paradoxos que regulam ao mesmo tempo a função do ego e as relações quase contraditórias, conforme os momentos do texto, entre Eros e Tânatos, relações que ele denomina um “jogo”.

4. Enfim, qual ganho é possível retirar dessas aproximações numerosas e heterogêneas demais para repensar a importância, na vida sexual, do sadismo e do masoquismo?

Na história da psicanálise, numerosas vozes se elevaram para pôr em causa a necessidade de introduzir esse princípio estranho de uma pulsão de morte que caracterizaria tanto o ser vivo quanto as pulsões sexuais. O “fato” da repetição não exigiria essa hipótese. E a que ela serve, já que o próprio Freud afirma que não adere a ela, que se trata somente de desenvolver uma ideia para ver aonde leva?

Fica-se tentado, ante a confusão dessa problemática, a “jogar a toalha” ou a dizer, como fez Jacques Derrida em La Carte postale, que o além do princípio do prazer não cessa de recuar nesse texto que não tem como “objeto” senão organizar uma sequência de deslizamentos retóricos por meio dos quais Freud, de maneira performativa, produz-se a si mesmo como escritor-fundador de uma instituição analítica. Com esse fim, ele utiliza os jogos de seus netos, fazendo crer que somente os psicanalistas sabem do que se trata na oposição demasiado simples da presença e da ausência. Toda a história da filosofia, contudo, se desenvolve nos múltiplos intervalos da escrita e do discurso que os psicanalistas não inventaram. Freud, pois, como um Sócrates ilusionista, faria crer por meio de seu texto que seria ele, e não Platão, o escritor e o fundador. Já que o próprio Freud produz no texto tantos curtos-circuitos entre dados heterogêneos, por que não fazer mais um e mostrar que o além do princípio do prazer, impossível de encontrar, instaura Freud como Pai e fundador?

A leitura que proponho hoje recorre mais uma vez a esse texto para colocar a questão das relações entre o campo da clínica, a escrita e a construção de conceitos.

 

1 O primeiro fio condutor: quais fatos obrigam a pôr um limite ao princípio do prazer como regulador da vida sexual?

Freud toma exemplos de repetição, que parecem inicialmente nada ter em comum em Além do princípio do prazer: os pesadelos das neuroses de guerra, os jogos das crianças, o prazer dos adultos em ir ao teatro, as neuroses de destino, a própria transferência, que, de instrumento de uma mudança pulsional, passa a ser regularmente o entrave a uma transformação.

O que reúne esses exemplos é a revisão que eles impõem ao tema freudiano, segundo o qual toda a vida anímica tem por objetivo um ganho de prazer. O “princípio do prazer” é uma noção que ganha sentido nos modelos do funcionamento do aparelho psíquico. O texto do Entwurf einer wissenschaftlichen Psychologie,2 como se sabe, desde os anos 1950, permanecera inédito entre os papéis de Wilhelm Fliess. Mas ele assombra toda a obra de Freud. Desde o início, desde 1895, o princípio do prazer tem uma ambiguidade dupla, que o modelo do aparelho psíquico permite explicitar: a estrutura desse aparelho possibilita armazenar energias ou representações, o que constitui um desprazer devido ao aumento das cargas nos circuitos, mas a repartição das energias nos circuitos múltiplos serve, ao mesmo tempo, para diminuir as cargas investidas em cada parte do aparelho. Primeira ambiguidade, portanto.

A segunda ambiguidade concerne à relação paradoxal entre a estrutura e o funcionamento desse aparelho: nesse modelo, o prazer é definido como a sensação de uma descarga, ou seja, um esvaziamento de circuitos investidos de quantidades. O horizonte ideal do aparelho seria que o sistema se esvaziasse completamente, o que seria um prazer máximo, mas essa experiência de excesso seria ao mesmo tempo a extinção do próprio sistema.

Se se combinam as duas ambiguidades, resulta que o aparelho visa à descarga das energias e, no entanto, o aumento e a repartição das cargas evita em geral que ele transborde, isto é, que sua estrutura – neuronal ou associativa – seja rompida por quantidades intensas demais para o aparelho. O fato de o prazer ser um princípio implica que ele é o objetivo do funcionamento do aparelho e, ao mesmo tempo, que seu excesso deve ser evitado para que o aparelho continue em funcionamento. O interesse do modelo freudiano – que pode sempre ser lido seja em termos de energias circulando nos neurônios, seja em termos de representações e afetos – está nisto: poder conferir uma figuração à ambiguidade do prazer tomado como princípio de funcionamento do aparelho.

Esse esquema de funcionamento do aparelho psíquico data de 1895. A questão do trauma e da extinção de todas as tensões com a função ambígua do prazer não é, portanto, em 1920, um tema novo em Freud (cf. p. 9 de Beyond the pleasure principle, Standard Edition).3

Qual é, pois, a novidade em 1920, com a hipótese de uma pulsão de morte? É que, até então, trata-se sempre, nos fenômenos clínicos aos quais o “princípio do prazer” remete, de uma mescla (Mischung) de prazer e desprazer: a função da descarga se combina com a estrutura do aparelho, que permite suportar a carga. Esse relativo desprazer barra a ruptura.

Em Além do princípio do prazer, o cenário muda: o além do princípio do prazer (e não mais apenas a extinção como limite do funcionamento do aparelho psíquico) é um princípio de ligação entre neurônios (ou representações), que seria uma experiência de puro desprazer tornada necessária no caso de a estrutura do aparelho ser posta em perigo.

Certos fatos clínicos conduzem a emitir essa hipótese: não só uma profunda ambiguidade da busca por prazer que anima o aparelho psíquico e arrisca provocar sua extinção, mas também uma independência do funcionamento do aparelho com relação à finalidade de produzir prazer. Ligar nem sempre é visar à descarga; pode ser também lutar penosamente contra o desligamento máximo que se chama morte.

É a demarcação dessa independência o que constitui a razão de ser da sucessão dos exemplos: Freud tenta tornar mais e mais inteligível a ideia dessa independência de uma tarefa de ligação que seria independente de toda mistura com a produção do prazer. Por que então ele fala em pulsão de morte? No plano da obra, é essa passagem da noção de independência à ideia de um princípio de funcionamento “mais original” o que leva à especulação biológica. Ela é anunciada desde o início como a radicalização do conceito, operatório na clínica, da independência. Em seguida, a hipótese de uma “pulsão de morte” parece desenvolvida por si mesma, em páginas nas quais não se sabe mais se Freud fala como biólogo que também era ou como psicanalista. Ele retoma certos pontos da clínica sem que essa retomada, poder-se-ia dizer, seja dirigida por um esquema, no sentido kantiano do termo, e sem que a heterogeneidade dos dois campos seja formulável. Tentarei, contudo, mostrar que a distinção dos dois campos é igualmente demarcável, justamente na medida em que se sabe o que ele toma de empréstimo à biologia e o que ele não chegava a conceber diretamente com as palavras da psicanálise. Em um sentido, assegurar uma ligação, ainda que muito penosa, é o contrário de se autodestruir. No entanto, Freud denomina “pulsão de morte” um horizonte original contra o qual lutariam não só todos os mistos de prazer e desprazer, mas ainda a ligação desprazerosa que se produz na proximidade, por pouco evitada, de um risco de morte do aparelho psíquico. Trata-se, nesse caso, de uma inconsequência, de uma falta de lógica no pensamento de Freud, ou de um processo próprio do sexual e próximo dos modos de determinação do ser vivo?

Mesmo se, desde o início do texto, o tema da pulsão de morte ligada à especulação biológica é anunciado, ele não é justificado logo em seguida: o além do princípio do prazer é inicialmente tomado como a independência de uma atividade de ligação em situação de catástrofe. Donde o privilégio do primeiro exemplo: Freud parte das neuroses de guerra, nas quais a maneira como a repetição de um sofrimento se produz parece impor uma nova concepção da repetição: na vida corrente, temos uma lembrança mais ou menos precisa de nossos sonhos; alguns continuam presentes para nós durante o dia, outros não. A vivacidade de sua lembrança varia com os períodos de nossa existência. Em todos os casos, a impressão que nos fica é a de uma variedade de cenários oníricos. Além disso, o fato de que esses sonhos nos escapem, que não saibamos onde estamos nesses pensamentos em imagens que contudo produzimos, é ligado a essa grande diversidade; ela é o que nos permite ter esses pensamentos sem nos darmos conta. Ora, após certas provações, como as guerras (tratava-se da guerra de 1914 para Freud, mas todos os estudos sobre as post-traumatic syndroms o ilustram), os sonhos dos soldados que retornam a sua casa têm outra feição: os antigos soldados revivem em sonho o evento real no curso do qual algum de seus camaradas teve o corpo amputado ou um outro perdeu a visão, etc. Ora, o que retém a atenção do clínico nas neuroses traumáticas é que desapareceu a diversidade dos sonhos, que habitualmente lhes dá seu caráter imaginário e que organiza o contraste com a coerência relativa da vida de vigília. Os pacientes produzem sempre o mesmo sonho-catástrofe, e esse sonho não mantém mais nenhuma distância em relação à realidade esmagadora e precisa que se abateu sobre eles. Ao mesmo tempo, Freud observa que a vida desses homens e mulheres se torna arrastada e mecânica, repetitiva no sentido de um estereótipo, de uma funcionalidade vazia. Essas pessoas sonham todas as noites com a mesma catástrofe e não mais inventam sua vida. Há muitas famílias nas quais se conta que, após a guerra da Argélia ou a do Vietnã, os soldados regressados não tinham mais gosto em nada, que se contentavam para o resto de suas vidas em conversar no café com os colegas. Isso permite compreender, por contraposição, que há uma relação entre o desenvolvimento imaginário e variado de nossos sonhos e a vivacidade de nossa existência, mesmo e principalmente se essa correlação nos escapa a maior parte do tempo.

Segundo tempo do raciocínio freudiano: Como temos também a experiência de sonhos que se tornam pesadelos, podemos compreender isso que aparece de modo exclusivo nas neuroses traumáticas. Esses pacientes vão direto ao ponto de pesadelo que apaga a possibilidade das fantasias multiformes que ordinariamente rodeiam, transformam e mascaram as nossas angústias mais radicais. Nas neuroses traumáticas, um evento aparentemente exterior cristalizou na sua realidade aquilo que é para nós o horror mesmo, e não podemos mais transformá-lo por meio de repetições inventivas. Não podemos mais lidar com o horror produzindo sonhos variados e atividades inventivas cuja própria variedade permite o esquecimento do ponto de pesadelo. Contudo, essa repetição aparentemente vã, isto é, incapaz de vivificar a vida de vigília graças ao jogo de esquecimento e lembrança que se instaura entre sonho e vigília, é ainda uma atividade de nossa “alma”. Freud diz: “O princípio do prazer é posto fora de funcionamento”. Todo mundo produz pesadelos que nos confrontam com aquilo que ele chamara, desde a Traumdeutung, o Unerkannt [desconhecido] e não o Urverdrängt [realçado originário]. “Dies ist dann der Nabel des Traumes, die Stelle an der er dem Unbekannten aufsitzt” (Gesammelte Werke Band II-III, S. 530), e em inglês “This is the dream’s navel, the spot where it’s reaches down into the unknown (Standart Edition v. 5, p. 525).4 E ele fazia notar desde 1900 que esse ponto é também aquele no qual se perde a possibilidade de interpretar o sonho: há demasiados fios associativos entrelaçados que fazem fracassar a possibilidade do discurso.

Depois do caso puro de repetição monótona e não mais variada, Freud retorna as outras situações em que, na ligação dos componentes de uma experiência traumática, a necessidade de repetir sem uma finalidade de prazer não se deixa isolar tão bem como nas neuroses de guerra ou de acidente, ou ainda no pesadelo. Foi talvez isso o que fez Derrida dizer que o além do princípio do prazer é impossível de encontrar nesse texto e que Freud se serve de seu neto para mascarar esse fato. Mas eu não creio que se trate de um impasse teórico.

A próxima questão é a seguinte: Se há sempre um ponto de pesadelo em nossos sonhos, a vizinhança entre o desprazer do pesadelo e o prazer do sonho permite dizer que há um gozo do pesadelo ou, ao contrário, a vertente do pesadelo e a vertente da realização prazerosa de desejo são misturadas mas distintas? Freud se pergunta se, em certas formas de repetição, o gozo se dá no momento (Moment em alemão) do sofrimento mesmo, o que seria uma outra forma de independência do princípio do prazer, diversa da forma-limite de repetição sem gozo.

O fort/da é apenas um entre outros exemplos desses fenômenos de repetição. Mais exatamente, é um exemplo que ainda não permite compreender, conceitualmente, como se mesclam compulsão à repetição e pulsões sexuais. No fio do texto freudiano e em dois momentos distintos de seu raciocínio,5 esse exemplo se avizinha daquele do prazer dos adultos no teatro e permite estabelecer dois pontos: da primeira vez, trata-se de que somente o prazer dos adultos no teatro permite precisar o que permanece indecidível no jogo das crianças: o prazer da repetição se apoia no fato de que a criança dominaria por meio do jogo aquilo que ela sofreu na dor da partida de sua mãe? Ou o gozo da repetição é mais intimamente ligado à provação desse sofrimento? Ou ainda: o carretel só dá prazer à criança porque ela pode, graças à mediação desse objeto que não é mais ele mesmo, infligir também a um companheiro de brincadeira o sofrimento da partida de sua mãe ou ainda o medo da visita ao médico que operou sua garganta? A propósito do jogo das crianças, é indecidível, diz Freud,6 e é por isso que ele vem se referir ao prazer do teatro trágico: aqui, pela primeira vez no texto, apreende-se por comparação e por diferença um exemplo em que o gozo advém do que ordinariamente faz sofrer.

Evitemos ainda esquecer que entre os adultos a atividade artística de jogo e de imitação, que, diferentemente do comportamento da criança, visa à pessoa do espectador, não poupa a este, na tragédia, por exemplo, as impressões mais dolorosas e pode, no entanto, ser sentida por ele como um deleite superior.

Freud era um leitor assíduo da Poética de Aristóteles, como demonstram os diversos empréstimos que ele toma desse texto, desde as cartas a Fliess de 18977 até os termos empregados na encenação teatral: as fantasias edificadas na histeria são adereços de teatro que reproduzem e escondem ao mesmo tempo as cenas traumáticas que se passam fora da cena. A repetição tem uma estrutura diferente no jogo das crianças e na emoção teatral adulta;

• primeiramente, entre as crianças, ela é mais próxima da repetição presente nas neuroses traumáticas: nunca uma criança deixa de retornar exatamente à mesma história, ao passo que entre os adultos sempre é preciso algo novo para que a repetição seja marcada de prazer. Reproduktion [reprodução] não é Wiederholung [repetição].

• segunda diferença: entre as crianças, se há prazer nas experiências penosas, é que, ao infligir aos parceiros de brincadeira o desagrado ou as angústias causadas, por exemplo, por uma intervenção médica sobre seu corpo, a criança coloca a distância seu próprio terror do médico. Já no teatro, os espectadores adultos infligem a si mesmos o espetáculo trágico. Isso será especialmente relevante quando se tratar de retornar ao masoquismo, bem ao final do texto. A sublimação teatral afasta então o trauma, coisa que uma neurose de destino não faz. A própria diferença no estatuto da repetição, seu grau e seus modos de independência com relação ao objetivo do prazer permitem a Freud formar uma cadeia com essas formas de repetição assubjetivas, nas quais uma morte retorna independentemente de qualquer intenção possível do sujeito, uma morte que, não obstante, convém referir a um desejo, mas a um desejo completamente extinto e visando a um outro, e não ao próprio sujeito.

O interessar-se pelas situações clínicas ou cotidianas nas quais são difíceis de decifrar os entrecruzamentos do excesso do prazer com o desprazer da ligação responde, pois, a isso que Freud caracteriza assim: a repetição pode ser independente do princípio do prazer sem contudo contradizê-lo. Há uma articulação possível das ligações que tentam transformar o traumático com o objetivo do prazer, mas a atividade de ligação não se reduz a isso.

 

2 A “especulação biológica” esclarece os processos paradoxais da repetição

Uma das dificuldades de Freud, antes mesmo de abordar o biológico, é o papel epistêmico desempenhado pelo exemplo da transferência. Esse é o último dos exemplos tomados por Freud para ilustrar o processo demoníaco por meio do qual um paciente resiste a uma transformação, mas é ao mesmo tempo a referência “experimental” constante que comanda as comparações entre diversos fatos de repetição. É da transferência negativa que se trata de dar conta, por meio da ideia de uma pura compulsão à repetição, independentemente do princípio do prazer. Essa experiência de sofrimento não “procura” se repetir como em uma finalidade consciente; ela se repete por compulsão, isto é, inconscientemente, no ato da transferência.

Os finais de análise levam então Freud a corrigir suas primeiras concepções que valorizavam indevidamente os conteúdos psíquicos e o tornar-se consciente das representações. Freud se exprime assim: as resistências não vêm do inconsciente, é o Ich que resiste a deixar que ressurjam as experiências dolorosas da infância, aquelas que surpreenderam a criança como traumas. Para nomear esse fato clínico, “inconsciente” não é uma boa palavra, porque mantém a confusão sobre aquilo de que se trata no ato da transposição da vida sexual para os tratamentos analíticos: esse ato não é a agency de um sujeito, ele tem o caráter do impessoal e do anônimo. É por isso que ele “parece” aquilo que descreveram, por exemplo, Foucault, Blanchot e Deleuze em seus escritos. É disso ainda que falava Lacan ao retomar o termo aristotélico de automaton: existe ato e existe trauma, antes de qualquer possibilidade de subjetivação, em todos os sentidos desse termo. É tanto a capacidade de um sujeito de responder pelo que faz quanto a submissão desse “assujeitado” a encadeamentos de atos dos quais ele é o operador e o ponto de passagem. O masoquismo será uma maneira pela qual a ameaça de extinção, ainda assim, tenta se subjetivar.

Esse paradoxo se desenvolve inicialmente pela vizinhança, no texto freudiano, entre a transferência negativa e as neuroses de destino, nas quais há esse paradoxo de um ato sem sujeito (fora de sentido, aleatório no sentido aristotélico do termo) e que delineia, no entanto, como se fosse do exterior, a coerência catastrófica de uma existência. A retomada do questionamento das primeiras concepções de Freud deveria conduzir a um abandono do próprio termo “inconsciente”, solidário demais de uma concepção da análise que privilegia as representações. Ora, Freud não o abandona, mas afirma, contra aquilo que indicara em seus escritos anteriores, que o inconsciente não é o recalcado, que é o Ich, o Ego, que resiste à mudança, ao passo que o que é objeto de atuação é aquilo que fez mal na infância, e que a transferência reproduz. Isso que se chama de inconsciente é essa própria resistência, e o tratamento favoreceu, “por meio da sugestão”, escreve Freud, o retorno dessa potência demoníaca. É certo que, quando lemos esses textos depois de haver lido ao mesmo tempo Ferenczi e Rank, que discutiam com Freud em 1923 sobre o que se passa na transferência, Winnicott sobre o que se repete no tratamento porque isso nunca foi vivido (The fair of Breakdown) e Lacan, que diz em 1973 que “o inconsciente não é o desreal nem o irreal, ele é o não realizado” (Seminário 11), temos algumas referências para situar aquilo com que Freud se debate em 1920.

Contudo, visto que se trata de uma leitura de Além do princípio do prazer, devemos compreender melhor em que medida a “especulação biológica” traz mais clareza à análise dos paradoxos da repetição. Em nenhum dos exemplos tomados até então por Freud, a repetição disso que é unicamente sofrimento se produz em estado puro. É a repetição caricatural desses sofrimentos nos finais de análise o que mais favorece a hipótese de uma repetição do desprazer. A ligação indissolúvel com o médico dispensa o paciente das repetições catastróficas da existência, nas quais ele/ela revive seus sofrimentos de criança, em particular na vida amorosa. A aproximação com as neuroses de destino que pertencem a certas vidas cotidianas permite, como é sempre o caso em Freud, utilizar o filtro do tratamento para compreender também o que se produz fora dele.

A especulação biológica se desenvolve em dois tempos:

1. Inicialmente, Freud, que desde 1895 já propusera o modelo de funcionamento desse aparelho movido a prazer e desprazer em que consiste nossa “alma”, reinscreve seu funcionamento na embriologia e na teoria da evolução. Ele toma então de empréstimo a linguagem dos biólogos “evo-devo,”8 isto é, dos neurobiologistas do cérebro que não mais separam a embriologia da teoria da evolução. Ao fazê-lo, refere-se mais a Haeckel que a Darwin, pois é Hackel quem enuncia a lei de recapitulação: o desenvolvimento de um ser vivo repassa por certos momentos-chave da evolução, a qual teve por resultado a transformação das espécies. O aparelho psíquico não mais é, portanto, um indivíduo isolado. Essa imersão do indivíduo nas leis da evolução serve para repensar as relações disso que se deve chamar de o interior e o exterior do aparelho, bem como a possibilidade do trauma, que, vindo como um acidente do exterior, não é, contudo, sem relação com a maneira como o ser vivo é construído desde o interior. Tal é o alcance de sua referência à formação do córtex cerebral, o qual, na evolução, advém da passagem, no interior do cérebro, do ectoderma, inicialmente em relação direta com os estímulos externos:

Indeed embryology, in its capacity of recapitulation of development history, actually shows us that the central nervous system originates from the ectoderm; the grey matter of the cortex remains a derivative of the primitive superficial layer of the organism and may have inherited some of its essential properties. It would be easy to suppose, then, that as a result of the ceaseless impact of external stimuli on the surface of the vesicle, its substance to a certain depth may have become permanently modified, so that excitatory processes run a different course in it from what they run in the deeper layers9 (p. 27).

Essa primeira aproximação permite formular a hipótese de que a camada superficial da vesícula viva se torna inanimada e perde sua capacidade de ser modificada, guardando, contudo, alguma coisa de sua ligação com o ectoderma passado nas camadas interiores do cérebro. Na Evolução, há um intercâmbio persistente entre o interior e as funções que organizam a relação com o exterior do ser vivo, a saber, os órgãos dos sentido. Freud já dissera que o funcionamento do aparelho é de dupla face, e são os paradoxos dessa dupla face que lhe interessam. Em 1895, já se tratava de um sistema de filtros sucessivos no aparelho movido a prazer/desprazer. A questão era então: como esse aparelho pode fazer a diferenciação entre os estímulos externos e os internos, ou seja, como podemos não alucinar constantemente os objetos que desejamos reencontrar? Presentemente, no entanto, trata-se, para esse argumento “evo-devo”, de conceber uma outra ambiguidade: os órgãos dos sentidos servem de peneira; eles “saboreiam” as informações que captam do mundo e, ao mesmo tempo, diminuem a grandeza dos estímulos que agem sobre a superfície da vesícula. Esses estímulos podem então ser postos em relação com as zonas cerebrais especializadas nas emoções e nos afetos no ectoderma, ou seja, no cérebro límbico, como dizem os biólogos contemporâneos. Trata-se aqui de uma tese decisiva: do ponto de vista da psicanálise, os órgãos dos sentidos, que estão em todo caso (isto é, para a abordagem neurofisiológica) em relação com o exterior, servem de índice para processos que se desenrolam no interior do aparelho, ou seja, com os sistemas prazer/desprazer. Freud não diz que no psiquismo existem apenas processos de prazer/desprazer. Ele diz, mais exatamente, que as funções cognitivas são encaradas pela psicanálise unicamente do ponto de vista do engajamento do sistema prazer/desprazer nessas mesmas funções. O fato biológico de que os órgãos dos sentidos tenham se formado na evolução a partir do ectoderma serve para estabelecer essas relações sempre ativas entre órgãos dos sentidos e modulações internas do prazer/desprazer. Ora, é essa relação que não funciona nos traumas, ou seja, quando a superfície tornada inanimada e que ordinariamente faz barreira aos estímulos excessivos é rompida. O relacionamento entre o interno e o externo é então destruído. Disso resulta esse aspecto de atividade de ligação girando no vazio do pesadelo das neuroses de guerra ou esse aspecto monótono após os acidentes externos ou os danos neurológicos.

Vem então essa frase frequentemente mal compreendida: a atividade representativa que procura reconstituir ligações se serve disso que sobrevém no exterior para neutralizar o excesso de sofrimento da ruptura:

[…] and secondly a particular way is adopted of dealing with any internal excitations which produce too great and increase of unpleasure: there is a tendency to treat them as though they were acting not from the inside, but from the outside, so that it may be possible to bring the shield against stimuli into operation as a defense against them. This is the origin of projection, which is destined to play such a major part in the causation of pathological processes10 (p. 29).

Projetar é tentar fabricar o pensamento com o insuportável. Esse pensamento é então como se fosse cortado das mesclas múltiplas de prazer/desprazer que constituem nossa singularidade graças ao distanciamento dos pontos de trauma que se encontram regularmente em nossas existências como se encontra um umbigo de pesadelo, desafiando toda interpretação, em nossos sonhos. É aqui que convém discutir a tese de Catherine Malabou em Les nouveaux blessés. Segundo ela, Freud teria querido reconduzir o exterior ao interior; ele teria ignorado, nesse passo, que as feridas traumáticas vêm verdadeiramente de um exterior – exterior traumático como nas violências impostas, nas lesões orgânicas, nas guerras. Freud teria superestimado o papel de uma complacência que faria desejar inconscientemente isso que tem aparência de sobrevir do exterior. E por essa via se seria privado de compreender como as feridas destroem o antigo indivíduo por meio de mecanismos que é preciso não reduzir. Mas Freud não diz isso: ele afirma somente que, do ponto de vista dos processos de prazer e desprazer, a realidade, mesmo quando traumática, pode servir como meio para ligar isso que causa sofrimento demais graças a representações; tal é a função, por exemplo, da projeção: afastar o maligno. Essa tese freudiana não é redutora. A bem dizer, ela define o ponto de vista bastante particular da psicanálise: assim como agir nunca é decidir, em função de informações, por uma conduta a adotar no mundo, e sim colocar um fim na demora que as associações acarretam, afastando sofrimento e gozo, também a compulsão à repetição consiste em tentar (se) representar um trauma como exterior a fim de constituir, minimamente, um “se” que foi destruído.11

2. O segundo momento da “especulação biológica” é mais conhecido e talvez mais bem compreendido: haveria na vida anímica uma tendência à morte que apenas provisoriamente seria impedida por meio dos desvios aos quais obrigam os encontros com os outros seres desejantes. Freud seria, pois, pessimista ao dizer que a finalidade primeira da vida é a morte, que as pulsões sexuais, que devido à sua plasticidade ele caracteriza como agentes de transformação dos impasses da vida sexual, teriam finalmente como meta retornar à época em que, assim como os organismos elementares na evolução, “ainda tinham a morte fácil”.

No entanto, como de costume, o que interessa a Freud nesse desenvolvimento sobre as pulsões que seriam sempre, enfim, pulsões de morte, é a dupla face das pulsões. Através de todas as suas referências a autores da biologia – dessa vez não mais Haeckel, mas Weismann, Fliess, Hartmann, Woodruff – a “especulação” de Freud, que examina com cuidado as pesquisas biológicas de seu tempo, conduz a um ponto preciso: em biologia, as forças que acarretam a morte de organismos primitivos por destruição espontânea das células se encontram contrariadas, no curso da evolução, por uniões aleatórias com outras células de organismos elementares que rejuvenescem as células dos primeiros e retardam sua morte. Esse “rejuvenescimento” dos organismos elementares pela perturbação de seu curso rumo à morte se opõe a uma perspectiva estritamente determinista, a de Fliess. Cada vez que, no texto, Freud insiste no “caráter conservador” das pulsões sexuais, ele se serve da analogia biológica para afirmar que, nesse curso, muito longamente reproduzido identicamente, dos organismos rumo à morte, encontraram-se fatores aleatórios que fizeram desviar isso que, para uma inteligência ainda finalista, ainda se afigura como um propósito primeiro.

Mas principalmente o intrincamento dos processos de destruição e de construção sob a condição das perturbações construtivas é um processo que o pesquisador é levado a conceber de uma maneira quase semelhante na sexualidade humana e na evolução dos seres vivos. Dito de outro modo, em biologia, jamais se raciocina diretamente sobre um progresso dos seres vivos e é isso que interessa a Freud. A aparição de novas formas de vida é o resultado da inibição, surgida por acaso, das forças de autodestruição anteriormente em ação no interior da matéria viva.12 Transposta para o domínio das pulsões sexuais e das pulsões de morte, essa hipótese é, com efeito, bem interessante: primeiramente, não há, na vida sexual, pulsão de perfectibilidade, e Freud afirma isso fortemente, opondo-se aos psicólogos de seu tempo. Aqui, ele é darwiniano. Em seguida, trata-se de distinguir as reproduções que não servem para nada – ou, mais propriamente, que fabricam indefinidamente a morte – dessas repetições nas quais a tendência à destruição é desviada de sua finalidade por meio de encontros. Como as células podem rejuvenescer? Essa é a questão. Aqui Freud explicita que essa questão é, em psicanálise, distinta daquela da reprodução de outros seres vivos e da procriação humana. A especulação biológica de Freud em Além do princípio do prazer serve para formular um conceito original da repetição que dá conta de casos nos quais a repetição chega a não produzir o idêntico, isto é, a destruição. A reprodução é o fracasso da repetição; a repetição só se distingue da reprodução graças a fatores contingentes que se tornam criadores uma vez que, após muitas tentativas infrutíferas, os próprios materiais da reprodução são transformados pela criação de circuitos novos.

Uma vez formulada a hipótese de uma evolução dos seres vivos por desvio inicialmente contingente dos processos de destruição, Freud retorna à diferença entre o jogo das crianças e o prazer teatral13 a fim de apreender o que a compulsão à repetição tem de diferente nesses ritos culturais e no tratamento analítico: todos os exemplos freudianos servem, com efeito, para conceber a dupla face da repetição na transferência e a diferença entre o sonho e o pesadelo durante as análises.

Um dito espirituoso ouvido pela segunda vez será quase sem efeito, uma representação teatral jamais atingirá da segunda vez a impressão que havia deixado da primeira... Sempre, a novidade será a condição de gozo. Mas a criança, por sua vez, nunca se cansará de pedir ao adulto que repita um jogo que lhe foi mostrado ou que foi jogado com ela, até que, exausto, esse adulto recuse.14

Essa primeira diferença nas formas culturais da repetição, ou seja, nos entrelaçamentos entre a compulsão à repetição e o gozo, permite detalhar o que está em jogo na transferência:

No paciente em análise, por outro lado, aparece claramente que a compulsão à repetição, na transferência, dos eventos do período infantil de sua vida ultrapassa, de todas as maneiras, o princípio do prazer. O doente tem nesse caso uma conduta completamente infantil e nos mostra assim que os traços mnêmicos recalcados de suas vivências dos tempos originários não estão presentes nele em estado de ligação e, de fato, em certa medida, não são aptos ao processo secundário. É também a essa não ligação que eles devem sua capacidade de formar, por vinculação com os restos diurnos, uma fantasia de desejo que deverá estar presente no sonho. Essa mesma compulsão à repetição se opõe bem frequentemente a nós como obstáculo terapêutico quando, no final da análise, queremos impor o completo desligamento com relação ao médico [...].15

Esse texto é um convite a reavaliar a importância dos restos diurnos em decorrência dos quais se forma um sonho e que têm a mesma função dos detalhes insignificantes que os pacientes levam para o espaço do tratamento: fazer do contingente o motor de uma transformação subjetiva.

No fundo, a única afirmação contestável nesse texto de Freud é a ideia de que o aparelho psíquico “procuraria” a morte. Para um darwiniano consequente, essa formulação é inadequada. O fato de que a solução da morte seja mais direta que a da vida não significa que a morte seja exatamente procurada como tal, mas principalmente que uma parte de nós mesmos à qual resistimos o quanto podemos permanece, contudo, sempre confrontada com essa prova.

Igualmente, é necessário dizer, o princípio do prazer não faz do prazer uma meta do aparelho psíquico, como afirma Freud desde 1895, mas uma possibilidade de seu funcionamento devida à sua estrutura. O fato de que o prazer seja um princípio não faz dele um propósito desse aparelho, mas um dos modos de seu funcionamento desde que as condições o permitam.

O fato de que os nós do prazer e do desprazer não governem toda a nossa vida, de que haja sempre uma camada prévia que permanece independente dessa captura pelo prazer/desprazer, não significa que nós procuremos esse ponto de ruptura. Tal fato significa somente que, por uma parte de nossa existência, essa que aparece como a mais razoável ou a mais racional enquanto funcione, nós nos defendemos contra o excesso de sofrimento por meio da projeção.

 

Epílogo epistemológico

Esse trabalho conceitual de diferenciação que permite dar um conteúdo clínico à noção de morte provém, ao que me parece, do trabalho ordinário da inteligência científica. É verdade que Freud se engaja em um duplo movimento: de uma parte, ele não renuncia a inscrever as pulsões na evolução da vida; de outra parte, ele diz desconfiar disso que seria aqui mais do que uma analogia. Trata-se, nesse caso, em Freud, de um equilíbrio constante entre um empirismo de método e uma tendência a uma especulação sobre as origens da qual ele se defende.16 Não seria mais interessante, em vez de se deixar levar imaginando o ponto onde a biologia e a psicanálise se reencontrariam, afirmar que se concebe da mesma maneira o intrincamento da morte e da vida em biologia e o intrincamento, em psicanálise, da destruição e da reinvenção nos destinos das pulsões? Não é necessário buscar, no ser ou em uma origem impossível de encontrar, esse momento comum que pertence somente ao pensamento. Com efeito, conceitualmente, o momento de especulação biológica em Além do princípio do prazer é menos exitoso em inscrever as pulsões nos processos evolutivos do que em precisar o conceito de pulsão de morte, que unifica, para o pensamento, as formas múltiplas da compulsão à repetição, as quais entretêm com o gozo uma relação que é, a cada vez, específica.

Leio, portanto, Além do princípio do prazer como leio os Diálogos entre Galileu e Sagredo discutindo interminavelmente sobre “[...] o aumento do grau de rapidez de um objeto móvel quando se lança uma pedra do alto do mastro de um navio”. Alexandre Koyré17 havia mostrado que as experiências de Galileu eram todas variadas porque nenhuma era capaz de isolar o fator da aceleração de um movimento uniforme, já que não se sabia fazer o vazio, sendo que ele raciocinava em um espaço concebido como vazio. Tampouco se sabia como construir relógios precisos, uma vez que se raciocinava sobre graus sutis de aumento da velocidade na queda dos corpos. Não é esse, exatamente, o raciocínio de Freud quando examina múltiplas situações repetitivas nas quais a pulsão de morte não é isolável, situações cuja série só é compreensível como homogênea a partir dessa hipótese? Lançar pedras do alto do mastro de um navio em movimento aparentemente nada tem a ver com as experimentações a que se dedicavam incansavelmente os engenheiros do Renascimento, mesmo na ausência de técnicas satisfatórias: qual força e qual direção é preciso dar a uma bala de canhão para que ela atinja uma alvo cuja posição é conhecida? Por que os engenheiros hidráulicos de Florença não podem fazer subir a água das fontes acima de certa altura? Por que os relojoeiros devem pôr um freio no pêndulo de seus relógios se eles querem que o tempo dos relógios não seja indefinidamente acelerado? O próprio termo “aceleração” não existe ainda nesses Diálogos, mas a referência neles feita ao “grau de rapidez” que um objeto móvel adquire uniformemente a cada instante de seu movimento de queda é precisamente o conceito que se define permitindo reunir esses fenômenos heterogêneos. A afirmação, por Freud, de uma pulsão de morte em Além do princípio do prazer não tem o mesmo estatuto que o enunciado do princípio da inércia por Descartes? Mas onde o Galileu experimentador e o Descartes filósofo repartem, de certo modo, seu trabalho, enunciando o primeiro a lei da queda dos corpos, enunciando o segundo o “princípio de inércia” que essa lei supõe, Freud faz sozinho o trabalho inteiro: o do mais filósofo, Descartes, que enuncia que não há mais diferença ontológica entre o movimento e o repouso, e o do experimentador, Galileu, que isola o fator tempo realizando experiências que jamais isolam efetivamente tal fator, mas que, graças à variedade de sua mistura com outros fatores, permitem conceber o efeito correspondente. Freud formula o princípio graças aos modos de raciocínio dos evolucionistas sobre a morte e a vida, e ele toma por objeto as formas empíricas da repetição concebendo-as como as relações variáveis do princípio do prazer e da pulsão de morte na clínica. O que é preciso respeitar é, pois, a heterogeneidade dos fenômenos que o novo conceito de repetição permite reunir. Nesse sentido, convém não isolar o jogo das crianças dos outros fenômenos clínicos que permitem conceber de modo inédito a ambiguidade da repetição, que é a mesma dos destinos da pulsão: somos compelidos a inventar. Os jogos das crianças mas também o prazer dos adultos no teatro têm o mesmo estatuto epistêmico que a prática dos engenheiros hidráulicos ou dos relojoeiros no Renascimento: são fatos que pertencem à experiência comum, mas que mudam de sentido porque entram em relações novas que os colocam em comunicação com fatos construídos.

A leitura de Além do princípio do prazer que proponho resulta de uma estratégia discursiva que é também uma aposta na fecundidade das “ciências regionais”. É certo que a psicanálise não é uma ciência no sentido galileano do termo, já que ela não é, até hoje, matematizada. No entanto, ela compartilha com as ciências desde Galileu a ideia de uma inventividade conceitual que supõe rupturas epistêmicas ou mudanças de paradigmas (segundo se faça mais referência ao vocabulário de Foucault ou ao de Kuhn). A necessidade dessas rupturas é solidária do caráter regional dessa ciência, já que se trata de constituir conceitos para um campo específico afastando-se de noções antes tidas como pertinentes. Por essa razão, o texto de Freud não se reduz a um “impasse teórico” que reconduziria sempre a uma pulsão de morte que é, contudo, impossível de encontrar. Se se pode fazer uma crítica a esse texto freudiano é que a questão de partida – o que é o prazer, o que é o desprazer e como eles estão ligados no aparelho psíquico? – se perde momentaneamente quando Freud procura a origem suposta das pulsões sexuais na evolução dos seres vivos. Essa origem é que é impossível de encontrar. Freud retorna, contudo, ao final, à questão do prazer e do desprazer, graças aos exemplos e aos seus desenvolvimentos sobre o masoquismo e o sadismo, os quais ele determina como os primeiros êxitos – muito custosos – do aparelho psíquico para inventar ligações entre as pulsões de morte e as pulsões sexuais.

 

Referências

FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900-1901). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 5).         [ Links ]

FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). In: ______. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977. p. 12-85. (Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, 18).         [ Links ]

FREUD, S. Au-delà du principe du plaisir (1920). In: ______. Œuvres Complètes, t. XV. Paris: PUF, 1996.         [ Links ]

KOYRE, A. Études d’histoire de la pensée scientifique. Paris: PUF, 1966.         [ Links ]

KOYRE, A. Études Galiléenne. Paris: Hermann Editions, 1966.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Place du Marché St.- Honoré
75001 Paris França
E-mail: mdm01paris@aol.com

Recebido em: 10/12/2014
Aprovado em: 17/02/2015

 

 

Sobre a Autora

Monique David-Ménard
Psicanalista, com formação conjunta em filosofia e psicanálise.
Doutora em psicopatologia clínica e psicanálise, sob a orientação de Pierre Fédida (1978), Universidade de Paris 7.
Doutora em filosofia, sob a orientação de Jean-Marie Beyssade (1990), Universidade de Paris 4/Sorbonne-nouvelle.
Membro da Escola Freudiana de Paris (1979-1980), do Centro de Formação e Pesquisa Psicanalítica (1982-1994) e da Sociedade de Psicanálise Freudiana desde 1994.
Títulos e funções atuais: psicanalista, membro associado da Sociedade de Psicanálise Freudiana; professora emérita de cadeiras superiores; orientadora de pesquisa da Universidade Paris-Diderot, Escola de Pós-Graduação.
Membro da Rede Internacional de Mulheres Filósofas, da UNESCO. <winmail.dat>.

 

 

1Conferência pronunciada em 15/04/2014, na Columbia University (Heyman Center), NY, em seminário promovido por Judith Butler.
2Projeto para uma psicologia científica (1950 [1895]). (N.T.).
3Na ESB, v. XVIII, 1977, p. 16.
4Na ESB, v. V, 1977, p. 482: “Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido”.
5A segunda vez será, após uma primeira reaproximação com a biologia, para afirmar que os pacientes em análise, assim como as crianças, repetem de maneira demoníaca, além, do princípio do prazer (cf. infra, seção II, in fine).
6p. 287; S. 15 [Na ESB, v. XVIII, 1977, p. 28.]
7Briefe an Wilhelm Fliess, Fischer Verlag 1986, Brief n. 126, 2 ten Mai 1897, S. 253. O vocabulário de Freud concernente à formação das fantasias e dos sintomas é tomado de empréstimo às traduções alemãs da Poética, de Aristóteles: as cenas são “construções psíquicas” montadas como os adereços de teatro (vorgelegte Phantasien, Schutzbauten, psychische Vorbau). E o importante nas fantasias são as coisas ouvidas, como no teatro trágico, segundo Aristóteles. É isso mesmo o que faz com que o filósofo prefira Édipo rei, como tragédia completa, porque nela as coisas ouvidas são mais importantes do que o espetáculo. Agradeço a Marcus Coelen, filólogo e psicanalista, por haver me apontado essa anterioridade das referências de Freud a Aristóteles. A referência que se encontra em Jenseits... [Além do princípio do prazer] é, portanto, um recordatório.
8A expressão “evo-devo” refere-se ao campo da biologia denominado biologia evolutiva do desenvolvimento. (N.T.).
9Com efeito, a embriologia, em sua capacidade de recapitulação da história do desenvolvimento, nos mostra, na verdade, que o sistema nervoso central se origina do ectoderma; a matéria cinzenta do córtex permanece um derivado da primitiva camada superficial do organismo, da qual pode ter herdado algumas de suas propriedades essenciais. Seria fácil supor então que, como um resultado do incessante impacto de estímulos externos na superfície da vesícula, sua substância pode, em alguma profundidade, ter se tornado permanentemente modificada, de modo que os processos excitatórios sigam um curso diferente daquele que eles seguem nas camadas mais profundas. (N. T.).
10E, em segundo lugar, uma maneira peculiar é adotada para lidar com quaisquer excitações internas que produzam um aumento muito grande de desprazer: há uma tendência a tratá-las como se estivessem agindo não do interior, mas do exterior, de modo que seja possível fazer funcionar o escudo contra estímulos como uma defesa contra elas. Essa é a origem da projeção, que se destina a desempenhar um papel tão grande na causação dos processos patológicos. (N.T.).
11No original: “[…] un ‘se’ qui a été détruit”. (N.T.).
12Œuvres complètes tome XV, p. 310, Gesammelte Werke Band XIII S. 41; et p. 323, S .54. [Na ESB, v. XVIII, 1977, p. 70].
13É esse segundo momento que eu anunciava. Vide nota 1 supra.
14p. 307; S. 37 [Na ESB, v. XVIII, p. 52-53: “Se um chiste é escutado pela segunda vez, quase não produz efeito […]. A novidade é sempre a condição do deleite, mas as crianças nunca se cansam de pedir a um adulto que repita um jogo que lhes ensinou ou que com elas jogou, até ele ficar exausto demais para prosseguir”.]
15Ibidem [Na ESB, v. XVIII, 1977, p. 53: “No caso de uma pessoa em análise, pelo contrário, a compulsão à repetição na transferência dos acontecimentos da infância evidentemente despreza o princípio do prazer sob todos os modos. O paciente se comporta de modo puramente infantil e, assim, nos mostra que os traços de memória reprimidos de suas experiências primevas não se encontram presentes nele em estado de sujeição, mostrando-se, na verdade, em certo sentido, incapazes de obedecer ao processo secundário. Além disso, é ao fato de não se acharem sujeitas, que se deve sua capacidade de formar, em conjunção com os resíduos do dia anterior, uma fantasia de desejo que surge num sonho. A mesma compulsão à repetição frequentemente se nos defronta como um obstáculo ao tratamento, quando, ao fim da análise, tentamos induzir o paciente a se desligar completamente do médico”.].
16Por exemplo: “A especulação pretende que esse Eros esteja em ação desde os primórdios da vida e que ele entre como ‘pulsão de vida’ em oposição à ‘pulsão de morte’ que apareceu com o fato de que o inorgânico ganhou vida” Op. cit., p. 335, nota 1 e S. 66.
7KOYRE, A. Études Galiléenne (1966) e Études d’histoire de la pensée scientifique (1966). (Em particular os capítulos “Le De motu graviul de Galilée. De l’expérience imaginaire et de son abus” e “Une expérience de mesure”).

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