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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.39 no.74 Belo Horizonte dez. 2017

 

Teoria e Clínica Psicanalítica

 

O inerente mal-estar na psicopatologia freudiana

 

The inherent malaise in freudian psychopathology

 

 

Maíra Marcondes Moreira;I Álvaro OliveiraI

I Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com o advento da psicanálise é possível afirmar que Freud desenvolve uma nova concepção de psicopatologia; porém, ao fazê-lo, ele parte de um viés não segregativo, justamente por ultrapassar a distinção entre o normal e o patológico, por patologizar a vida sexual e por demarcar o mal-estar como inerente à cultura.

Palavras-chave: Psicopatologia, Normal, Patológico, Mal-estar, Sexual.


ABSTRACT

With the advent of psychoanalysis, it is possible to affirm that Freud develops a new conception of psychopathology, but in doing so he starts from a non-segregative bias, precisely by overcoming the distinction between normal and pathological, by pathologizing the sexual life and by pointing out the malaise as inherent in culture.

Keywords: Psychopathology, Normal, Pathological, Malaise, Sexual.


 

A história da psiquiatria sempre flertou com a noção segregativa do normal e do patológico. Laing (1978) apontava que, na Grã-Bretanha, já em 1967, havia cerca de 60.000 homens e mulheres internados em manicômios, e fora deles ainda havia aqueles que eram considerados esquizofrênicos ou com algum outro transtorno mental, alguma patologia que os afastava da realidade.

Isso o leva a concluir que

Uma criança nascida hoje na Grã-Bretanha tem dez vezes mais oportunidades de ingressar num manicômio que numa universidade, e cerca de um quinto dos admitidos nos nosocômios recebem o diagnóstico de esquizofrênicos. Isto pode ser considerado um sinal de que estamos enlouquecendo nossos filhos com muito mais eficácia do que os estamos educando. Talvez seja a nossa própria maneira de educá-los que os enlouqueça (LAING, [1967] 1978, p. 78-79).

Também Kraepelin apud Lacan ([1955-1956] 2002) afirmava que o trabalho do psiquiatra envolve saber o limiar obscuro, quase inexistente, entre aquilo que é normal e aquilo que é patológico. Isso é o que torna difícil o trabalho do psiquiatra, em suas palavras.

Freud, a partir da criação da psicanálise, seria o primeiro teórico a questionar a segregação desse paradigma psiquiátrico. Não que Freud tivesse avançado o suficiente para enfrentar a noção de patologia ou doença, mas avançou a ponto de dizer, ao menos, que todos nós somos, de fato, patológicos.

É possível afirmar que Freud desenvolveu uma nova concepção de psicopatologia a partir da psicanálise; porém, ao fazê-lo, ele parte de um viés não segregativo. Talvez seja possível destacar três momentos de uma psicopatologia freudiana a partir do desenvolvimento da noção de pulsão.

Ao propor uma divisão na obra de um autor, é preciso ter em mente que, ainda que ele se paute em uma temporalidade linear, há sempre a persistência, e os indícios anteriores, dos conteúdos que o levam às suas formulações finais – inclusive dos conteúdos que foram ‘abandonados’.

Em um primeiro momento pode-se destacar um Freud interessado em estudar os fenômenos de adoecimento psíquico numa perspectiva patoanalítica, ou seja, um Freud em que as distinções entre normal e patológico caem por terra, e os adoecimentos são compreendidos como excesso de investimento libidinal em um órgão ou conteúdo.

À medida que a teoria avança em relação aos desenvolvimentos sobre a sexualidade e as pulsões, Freud realiza outro giro dentro de sua própria psicopatologia justamente por ‘patologizar’ o que é da ordem do sexual, de modo que uma concepção sobre uma sexualidade normal cai por terra.

O terceiro momento da psicopatologia freudiana se daria através da introdução do mito edípico e totêmico na teoria psicanalítica, em que o analista se serve da mitologia para dizer de algo que organize as pulsões e possibilite a vida em sociedade. Ao mesmo tempo, é por viver em sociedade que o homem se vale não do instinto, mas da pulsão. Dada a renúncia pulsional necessária para fundar um corpo social, a civilização é acometida por um mal-estar, ou seja, há uma ligação direta entre a patologia e a cultura.

Essa noção de patologia generalizada talvez se formalize de fato em O mal-estar na civilização ([1930] 2012), mas já no início de sua obra, Freud insinuava esse argumento. Todos sonham, e os sonhos escondem desejos recalcados e “patológicos”, têm significado, sentido, são construções do inconsciente (FREUD, [1899] 2001); todos vivem uma psicopatologia cotidiana, entre atos falhos, chistes, esquecimentos significativos, entre outros (FREUD, [1900] 1969).

Por fim, a sexualidade, tema talvez que mais polemizou a teoria freudiana em seu tempo (e ainda hoje), em que Freud diz de uma sexualidade infantil e da predisposição à bissexualidade, e que, na verdade, nenhuma prática sexual é normal, ou seja, não segue como único objetivo a reprodução e a perpetuação da espécie. A relação sexual é sempre cercada de fantasias e práticas que a medicina consideraria perversa. Perversão polimorfa: assim Freud ([1905] 2016) nomeia a sexualidade infantil. E indo contra a corrente segregativa da época, Freud ([1905] 2016) chega a afirmar que mesmo a homossexualidade não deveria ser separada de uma sexualidade heterossexual “normal”. A heterossexualidade não é evidente em si, não se trata de algo natural.

A investigação psicanalítica se opõe decididamente à tentativa de separar os homossexuais das outras pessoas, como um grupo especial de seres humanos. Estudando outras excitações sexuais além daquelas manifestadas abertamente, ela sabe que todas as pessoas são capazes de uma escolha homossexual de objeto e que também a fizeram no inconsciente. De fato, ligações afetivas libidinosas com pessoas do mesmo sexo não têm, como fatores da vida psíquica normal, papel menor – e, como motores do adoecimento, têm papel maior – do que aquelas que dizem respeito a pessoas do outro sexo. Para a psicanálise, isto sim, a escolha objetal independente do sexo do objeto, a possibilidade de dispor livremente do objeto masculino e feminino, tal como se observa na infância, em estados primitivos e épocas antigas, parece ser uma atitude original, a partir da qual se desenvolvem, mediante restrição por um lado ou por outro, tanto o tipo normal como o invertido. Na concepção da psicanálise, portanto, também o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é um problema que requer explicação, não é algo evidente em si [...] (FREUD, [1905] 2016, p. 34-35)

Freud ([1905] 2016), em Três ensaios sobre a sexualidade, elabora uma espécie de lista das sexualidades aberrantes não para classificar e tipificar condutas desviantes, mas para demonstrar que a sexualidade é perversamente orientada. A sexualidade humana, longe das definições biologicistas e instintuais cuja finalidade é a reprodução, é perversa e polimorfa. Perversa por desviar do objetivo da autopreservação da espécie; polimorfa pela diversidade de práticas, objetos e desejos que ela pode assumir.

Freud ([1905] 2016) desenvolve em seus primeiros escritos o funcionamento da sexualidade humana, para depois pensar no modo como essa sexualidade se organiza minimamente, viabilizando a construção de um corpo social. A interdição do incesto assume na teoria freudiana um papel estruturante, pois, para se estabelecer o laço social, se faz necessário que os homens renunciem à mãe como objeto sexual. O próprio complexo de Édipo freudiano, de certa forma, atua como algo que procura dar alguma forma à desordem própria do campo da sexualidade, criando também lugares diferenciados para os corpos sexuados através de processos identificatórios.

Van Haute e Geyskens (2016) tomam a posição de que há uma tensão entre um Freud que se apoiava na perspectiva patoanalítica dos adoecimentos psíquicos e um Freud que cedeu aos encantos da psicologia desenvolvimentista, assumindo uma posição psicogênica em relação às patologias. Esse conflito marca, de certo modo, uma passagem da disposição bissexual para o caráter estruturante do complexo de Édipo na teoria psicanalítica, ainda que Freud não tenha abandonado sua premissa anterior.

Segundo os autores, uma visão patoanalítica das psicopatologias concebe os adoecimentos psíquicos como resultado de certo excesso das tendências libidinais assumidas por um sujeito, de modo que não se trata de procurar a origem fundadora do adoecimento psíquico ou uma estrutura específica que justifique o quadro clínico.

As diferentes formas de distúrbio psicológico não se posicionam contra a normalidade psicológica; ao contrário, elas mostram uma disposição específica que está ativa na vida interna normal, apesar de ser expressa de maneira expressiva na patologia (VAN HAUTE; GEYSKENS, 2016, p. 23).

Na perspectiva patoanalítica o normal e o patológico não são esferas delimitadas e opostas. O distúrbio psicológico é compreendido como a exacerbação de uma tendência que é comum a outros sujeitos, independentemente de eles padecerem ou não do mesmo adoecimento. Desse modo, as psicopatologias são pensadas como tendências assumidas por um sujeito.

É a introdução do complexo de Édipo na teoria e o seu caráter estruturante no desenvolvimento do sujeito neurótico que reintroduz uma tendência normalizadora e psicologizante na psicanálise (VAN HAUTE; GEYSKENS, 2016).

É esse também o momento em que Freud deixa de lado seus estudos iniciais sobre a disposição generalizada à bissexualidade para focar suas análises e seus textos nas bases edipianas dos conflitos experimentados por seus pacientes. Dito de outro modo, após as elaborações sobre o complexo de Édipo, Freud começa a traçar o que seria um desenvolvimento psicossexual saudável, o que foi duramente criticado pelos movimentos feministas, LGBTS e queer:

Ele, cada vez mais, passa a acreditar que o complexo de Édipo é um momento constitutivo e essencial (por conta de seus fundamentos biológicos). A nossa relação com a lei e com a cultura estaria nele alicerçada. Em outras palavras, Freud defende uma interpretação psicogênica do complexo de Édipo (VAN HAUTE; GEYSKENS, 2016, p. 27).

De fato, Freud coloca o complexo de Édipo como estruturante da psicogênese. Numa carta a Edoardo Weiss, de 30 set. 1926, sobre a afirmação de que há casos de neurose em que o complexo de castração não desempenha nenhum papel patogênico, Freud retifica essa colocação, mantendo-se reticente em tomar uma posição definitiva, apesar de reforçar a tese de que toda neurose tem gênese nesse complexo.

Sua pergunta referente à minha afirmação na Introdução do narcisismo, sobre se existem neuroses nas quais o complexo de castração não exerce nenhum papel, me deixa embaraçado. Já não sei em que pensava naquela época. Hoje eu não saberia citar nenhuma neurose da qual esse complexo não participasse, e, de qualquer forma, não teria escrito essa frase hoje. Mas, como ainda temos uma visão muito pouco ampla nesse campo, não gostaria de me posicionar em favor de nenhum lado (FREUD, [1915] 2004, p. 128).

Não devemos nos enganar: Freud mantinha noções de normalidade difíceis de desvencilhar para um homem de seu tempo. Ainda seguia a máxima da anatomia como destino e usava da biologia para explicações de natureza humana e normalidade, além de uma antropologia ultrapassada até para a época (FREUD, [1912-1913] 2012). No entanto, isso não anula a tese de uma patoanálise ou da sexualidade enquanto perversa e polimorfa. Todos estão submetidos a uma patologia atravessada pelo complexo de Édipo, pela cultura.

O que inaugura uma psicopatologia, de fato, é não uma condição natural humana, mas sim uma condição cultural (FREUD, [1930] 2007). A partir da cultura, que será um limitador para o exercício pleno das pulsões, se constituem as neuroses. A natureza do ser humano, para Freud, ([1930] 2007), é destrutiva. O ser humano, em estado de natureza, vive num estado de constante guerra, tentando o tempo todo satisfazer suas pulsões (que podem ter caráter destrutivo).

[...] o ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender, quando atacado, mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade. Em consequência disso, para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus [O homem é o lobo do homem]; quem, depois de tudo que aprendeu com a vida e a história, tem coragem de discutir essa frase? Via de regra essa cruel agressividade aguarda uma provocação, ou se coloca a serviço de um propósito diferente, que poderia ser atingido por meios mais suaves. Em circunstâncias favoráveis, quando as forças psíquicas que normalmente a inibem estão ausentes, ela se expressa também de modo espontâneo, e revela o ser humano como uma besta selvagem que não poupa os de sua própria espécie. Quem chamar a lembrança os horrores da migração dos povos hunos, dos mongóis de Gengis Khan e Tamerlão, da conquista de Jerusalém pelos impiedosos cruzados, e ainda as atrocidades recentes da Guerra mundial, terá de se curvar humildemente à verdade dessa concepção (FREUD, [1930] 2010, p. 76-77).

A cultura é a soma de todas as realizações e instituições que afastam a vida humana daquela dos antepassados animais e serve para dois fins: a proteção contra a natureza e a mediação dos próprios vínculos humanos (FREUD, [1930] 2010). É em prol da segurança que o ser humano primitivo renuncia às suas pulsões agressivas e destrutivas e adere à cultura. Renunciar a essas pulsões agressivas não é algo fácil para o ser humano.

O homem primitivo estava em situação melhor: não conhecia restrições às suas pulsões; exercia sua pulsão sexual e agressiva sem limitações. O homem civilizado, por outro lado, sacrificou essa felicidade e essa “liberdade” por um tanto de segurança e, sacrificando-a, deu vazão a uma neurose generalizada.

Se hoje há uma explosão de diagnósticos que procuram classificar os modos singulares com os quais os sujeitos irão se haver com o próprio mal-estar, a psicanálise é uma alternativa aos modos segregativos de tratamento da psicopatologia tradicional. Em tempos de proliferação de nomes no campo da sexualidade, Freud ainda nos serve como uma referência contemporânea para se pensar a psicopatologia, uma patologia geral.

Ao tomar as tendências libidinais como ponto de partida para seus desenvolvimentos sobre a patoanálise, Freud, talvez inadvertidamente, propõe uma psicopatologia não mais apoiada na distinção médica e psicológica do normal e do patológico, como se estes se tratassem de esferas distantes, independentes e bem delimitadas. Em suas investigações sobre a sexualidade infantil e sobre a sintomatologia histérica de sua época, o psicanalista conceitua uma psicopatologia do sexual, que é de outra ordem.

Desse modo, ao considerar a própria sexualidade como patológica, não há cura para a sexualidade ou um modo ideal (ou prévio) de identificação e/ou de escolha de objeto, ou seja, não há sexualidade ‘normal’. Todas as possibilidades de existência e de experiência no campo da sexualidade são marcadas pelo patológico. E, finalmente, ao dizer das renúncias libidinais que os sujeitos fazem para fundar a civilização, Freud localiza o patológico na forma do mal-estar, como condição e como resultado da cultura, da vida social.

Enquanto a psiquiatria tradicional objetiva a reinserção do sujeito às normas sociais vigentes, a uma normalidade da cultura e da sociedade, a psicanálise toma um caminho inverso: não se trata de reinserir o sujeito, não se trata de formatá-lo a uma norma, esse não é o interesse de sua prática. Seu interesse está em possibilitar novos laços sociais, novas formas de sociabilidade e de existência. Se é possível atribuir a Freud uma psicopatologia, esta se difere radicalmente da psicopatologia médica, por se propor a ser, antes de qualquer coisa, um dispositivo contrário à segregação.

A psicanálise não opera como um campo de saber que descreve, qualifica e oferta ao mercado diretrizes diagnósticas e de tratamento. Nem é, diferentemente da psicologia, veículo de ‘promoção de bem-estar social’. O mal-estar é inerente à civilização, porém o adoecimento dos sujeitos ocorre de modo particularizado.

Não há cura para o mal-estar, mas há a possibilidade de soluções singulares, não cambiáveis, para que os sujeitos construam modos vivificados de fazer o laço social.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Maíra Marcondes Moreira
E-mail: mairamoreirapsi@gmail.com

Alvaro Oliveira
alvo.oliveira@gmail.com

Recebido em: 09/08/2017
Aprovado em: 01/09/2017

 

Sobre os autores

Maíra Marcondes Moreira
Psicanalista. Especialista em Clínica Lacaniana da Atualidade (PUC Minas).
Mestre em Psicologia: Estudos Psicanalíticos (UFMG).

Álvaro Oliveira
Psicólogo. Psicanalista. Mestre em Psicologia: Estudos Psicanalíticos (UFMG).

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