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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.40 no.75 Belo Horizonte jan./jun. 2018
TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA
A morte de Deus, o pai da horda primeva e o interdito
The death of God, the father of the primal horde and the interdict
Bernardo Sollar Godoi;I Sidnei Vilmar NoéI
I Universidade Federal de Juiz de Fora
RESUMO
O presente artigo apresenta uma trajetória explicativa para a inversão lacaniana de uma frase atribuída a Dostoiévski: “Se Deus está morto, então tudo é permitido”. A inversão se pauta na não permissividade advinda da morte de Deus, tendo o mito freudiano do pai da horda primeva como base para a interpretação. Lacan não acredita que a morte de Deus tem como consequência um espaço para liberação dos prazeres sem freios ou um mundo sem lei. O que Lacan demonstra é justamente o contrário: a morte de Deus reforça ainda mais o interdito.
Palavras-chave: Lacan, Morte de Deus, Pai, Psicanálise, Religião.
ABSTRACT
The purpose of this article is to present an explanatory path for the lacanian inversion of the proposition attributed to Dostoyevsky, “if God is dead then everything is permitted”. The inversion refers to a lack of permissiveness succeeded from God's death, which has its interpretation based on the freudian’s myth of the father of the primal horde. Lacan don’t believe in the death of God as a discharge of pleasures or a world without any law. What Lacan shows is just the opposite: the death of God reinforces the interdict.
Keywords: Death of God, Father, Lacan, Psychoanalysis, Religion.
O presente artigo parte do problema denunciado por Lacan ([1955] 1985, p. 165; [1960] 2005, p. 30; [1969-1970] 1992, p. 112-113) acerca de a morte de Deus não pertencer, necessariamente, a um mundo no qual a permissividade reina sem impedimento. Ao contrário, Lacan inverte a fórmula atribuída a Dostoiévski a respeito da máxima liberdade advinda com o Deus morto. Trata-se da frase vulgarmente difundida: “Se Deus está morto, então tudo é permitido”.
É importante, entretanto, levantar uma ressalva quanto à propriedade da sentença. Slavoj iek (2015, p. 37) destaca o curioso fato de essa frase não ter sido proferida por Dostoiévski em Os irmãos Karamazov, como costumeiramente lhe é atribuída.
No romance, encontramos:
Mas então, que se tornará o homem, sem Deus e sem imortalidade? Tudo é permitido, por consequência, tudo é lícito? (DOSTOIÉVSKI, 1973, p. 411).
Embora haja moções de compatibilidade, a fala destacada não corresponde integralmente à forma como é amplamente utilizada para expressar uma liberação concernente a um mundo sem Deus.
A sentença, contudo, perdura até os dias de hoje, o que demonstra o quanto ela se faz importante para se pensar nossa estrutura ideológica (IEK, 2015, p. 37). Nesse sentido, o fato de ter sido ele quem a emitiu ou não, ou mesmo o modo como a formulou acaba não importando; a atenção recai sobre a maneira como foi escutada e amplamente reproduzida por quem dela se apropriou. iek (2015, p. 37) atesta que foi Sartre quem a popularizou naquele formato.
É possível duvidar se se trata efetivamente de uma condição como aquela que se liga à inexistência de Deus. A sentença em questão pode ter sua legitimidade abalada se explorarmos o trajeto explicativo que levou Lacan a subvertê-la.
Tendo como material de análise a escuta de seus analisantes, Lacan ([1955] 1985; [1960] 2005; [1970] 1992) considera que um mundo no qual a morte de Deus se faz presente implicaria não em uma permissividade exacerbada, mas em um imperativo de proibição.
Nesse sentido, o escopo do presente artigo é traçar uma explicação para a inversão que Lacan realiza na fórmula atribuída a Dostoiévski, seguindo as pistas que encontramos nas menções a tal inversão. Sem embargo, apresentaremos os excertos em que constam essa tese de Lacan.
A primeira aparição acerca da inversão se localiza no Seminário 2:
Como vocês sabem, seu filho Ivan o conduz pelas avenidas audaciosas por onde envereda o pensamento de um homem culto, e em particular, ele diz, se Deus não existir... – Se Deus não existir, diz o pai, então tudo é permitido. Noção evidentemente ingênua, pois nós, analistas, sabemos muito bem que, se Deus não existir, então absolutamente mais nada é permitido. Os neuróticos nos demonstram isto todos os dias (LACAN, [1955] 1985, p. 165, grifo do autor).
Nesse trecho, Lacan aponta para o funcionamento neurótico como aquele que denuncia o erro da referida frase atribuída a Dostoiévski. O contexto do excerto merece ser trazido à tona. Refere-se a uma tentativa de discernir a censura da resistência, na obra freudiana.
A primeira é marcada por um não entendimento do que se refere ao discurso da lei, isto é, da proibição introjetada pelo sujeito, enquanto a segunda é caracterizada pelo impasse ao trabalho de interpretação na situação de análise. O que nos interessa para o presente traçado é o primeiro desses componentes: a censura, que retomaremos mais adiante.
A segunda aparição se encontra na primeira das duas conferências que Lacan proferiu em Bruxelas, denominada Discurso aos católicos:
O que Totem e tabu nos ensina é que o pai só proíbe o desejo com eficácia porque está morto, e, eu acrescentaria, porque nem ele próprio sabe disso – ou seja, que está morto. Tal é o mito que Freud propõe ao homem moderno, considerando que o homem moderno é aquele para quem Deus está morto – isto é, que julga sabê-lo.
Por que Freud envereda por esse paradoxo? Para explicar que o desejo, com isso, será mais ameaçador, e, logo, a interdição mais necessária e mais dura. Deus está morto, nada mais é permitido. O declínio do complexo de Édipo é o luto do Pai, mas ele se conclui por uma sequela duradoura: a identificação se chama supereu. O Pai não amado torna-se a identificação que cumulamos de críticas sobre nós mesmos. Eis o que Freud introduz, compilando com as mil redes de seu testemunho um mito muito antigo, aquele que, de algo ferido, perdido, castrado num rei de mistério, faz depender a terra completamente deteriorada (LACAN, [1960] 2005, p. 30, grifo nosso).
Nesse excerto, nos deparamos com o lócus por onde Lacan trafega para evocar tal inversão. Primeiro, indica estar falando a partir de Freud ([1913] 1974), acerca do mito do pai da horda primeva. Além do mais, percebemos uma alteração em relação à citação anterior: em vez de se tratar da inexistência de Deus puramente, estamos diante de sua morte. Temos ainda outros elementos que são inseridos com esse recorte, quais sejam, a proporção a ser considerada entre desejo e proibição, a estreita relação entre pai e Deus, e a herança deixada ao filho acerca da sua identificação com o pai não amado, o supereu.
No Seminário 17, encontramos o seguinte:
A ponta de lança da psicanálise é justamente o ateísmo, desde que se dê a este termo um outro sentido, diverso daquele de Deus está morto, sobre o qual tudo indica que longe de questionar o que está em jogo, a saber, a lei, ele antes a consolida. Indiquei há tempos que diante da frase do velho pai Karamazov, Se Deus está morto, então tudo é permitido, a conclusão que se impõe ao texto da nossa experiência é que Deus está morto tem como resposta nada mais é permitido (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 112-113, grifos do autor).
Já nesse fragmento identificamos que a afirmativa de que Deus está morto é correlata à instalação da lei, ou melhor, à sua consolidação. Aliás, surge outro componente: a marca ateísta da psicanálise deriva não de um questionamento da lei, impelindo os analisantes a se livrarem dela como uma interpretação superficial da morte de Deus sugeriria, mas de um conhecimento acerca do assentamento da proibição que cada um carrega consigo.
Afinal, é a lei que funda a cultura e distancia o ser humano da natureza. O mito da horda primordial (FREUD, [1913] 1974) deixa isso evidente, como verificaremos a seguir.
Lacan ([1959] 2008, p. 84) sublinha, “[...] a lei fundamental é a lei da interdição do incesto”, sem a qual seria impossível pensar nas formas instituídas hoje de interrelação humana e a partir da qual deriva todo o desenvolvimento moral posterior.
Totem e tabu (FREUD, [1913] 1974) é a obra que Lacan aponta como pista para entender a não permissividade em um mundo sem Deus. No seu ensaio Freud cria o mito do pai da horda primeva para explicar o surgimento da cultura e sua organização, marcada pela religião, pela exogamia e pela moral (VIDAL, 2005, p. 12). Lacan ([1960] 2008, p. 212) afirma que talvez esse seja o único mito que a modernidade foi capaz de criar e que nasce no berço da psicanálise.
O contexto do mito se refere a uma horda primitiva controlada pelo pai ancestral, que mantém a posse das mulheres do clã, impedindo que seus filhos se relacionem com qualquer um dos membros. Eles são expulsos da horda quando crescem, no intuito de evitar conflitos com o pai primordial. Acontece que, ‘certo dia’ esses mesmos irmãos se juntam e voltam ao clã com o objetivo de matar o pai primitivo. Após executar o parricídio do pai invejado, os filhos o devoram, com a finalidade de absorver o que admiravam nele.
O segundo ato evidencia que os filhos não só o odiavam como também se identificavam com ele (FREUD, [1913] 1974, p. 170). Trata-se, evidentemente, da ambivalência que existia na relação entre eles. O ódio foi satisfeito com o parricídio, por conseguinte, a afeição reprimida pelo ódio pôde advir – depois do assassínio – em forma de amor. Com a ascensão desse elemento, o sentimento de culpa também surge pelo remorso do ato (FREUD, [1913] 1974, p. 171).
Com efeito, a identificação – ilustrada pelo ato de devorar o pai – não foi digerida como se esperava, a saber, com o poder em mãos e com os desejos sexuais plenamente satisfeitos, como imaginavam que acontecesse em relação ao pai primordial.
A identificação saiu, como declara Lacan ([1960] 2005, p. 30), em formato de supereu: “[o] pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo” (FREUD, [1913] 1974, p. 171). Em outras palavras, as limitações que apenas a presença do pai impunha sobre os filhos, doravante se tornaram ainda mais impetuosas com a sua ausência física, mas onipresença psíquica.
De acordo com Guimarães (2008b), Lacan acha no mínimo curioso o fato de Freud criar um mito que parece contradizer o que vinha exprimindo ou pretendia exprimir com o Édipo. Neste, a morte do pai é condição para satisfação.
Entretanto, no mito da horda primitiva, depois da morte do pai, a questão sobre quem lideraria a horda – ou seja, que obteria a plena satisfação – ficou em aberto, uma vez que todos se encontravam na mesma posição hierárquica. Assim, para evitar o fratricídio, estabeleceram a lei da exogamia e elevaram o pai morto à condição de totem – como forma de satisfazer a culpa consequente do assassinato.
Seria essa a base para o surgimento do totemismo, primeiro estágio de religião considerada por Freud ([1913] 1974). O que foi interdito pelo pai com sua presença é, posteriormente, reforçado pelos próprios filhos, depois de sua morte. Tendo em vista que o caminho do gozo estava aberto, necessitou-se de uma intensificação para preencher o lugar de uma interdição, que se materializa nos ritos do ritual totêmico, análogos aos rituais do neurótico obsessivo (GUIMARÃES, 2008a, p. 4-5).
No Seminário 7, Lacan ([1959-1960] 2008, p. 211) afirma que, para entendermos a instauração da lei, é necessário seguir o caminho traçado por Freud em Totem e tabu, no qual a lei se institui por consentimento e se correlaciona com o retorno do amor após o parricídio ter acontecido.
No texto de Freud, encontramos o seguinte:
O sistema totêmico foi, por assim dizer, um pacto com o pai, no qual este prometia-lhes tudo o que uma imaginação infantil pode esperar de um pai – proteção, cuidado e indulgência – enquanto que, por seu lado, comprometiam-se a respeitar-lhe a vida, isto é, não repetir o ato que causaram a destruição do pai real. O totemismo, além disso, continha uma tentativa de autojustificação: ‘Se nosso pai nos houvesse tratado da maneira que o totem nos trata, nunca nos teríamos sentido tentados a matá-lo’. Desta maneira, o totemismo ajudou a amenizar a situação e tornou possível esquecer o acontecimento a que devia sua origem.Foram assim criadas características que daí por diante continuaram a ter uma influência determinante sobre a natureza da religião. A religião totêmica surgiu do sentimento filial de culpa, num esforço para mitigar esse sentimento e apaziguar o pai por uma obediência a ele que fora adiada. Todas as religiões posteriores são vistas como tentativas de solucionar o mesmo problema (FREUD, [1913] 1974, p. 173).
As considerações até então delineadas, demonstram uma confluência existente entre a origem da religião, a lei moral e a relação com o pai, na trama mítica elaborada por Freud. A origem da lei está presente no mito, assim como no seu substrato – o totem – para se pensar um Deus único (LACAN, [1960] 2008, p. 213). É a nostalgia do pai ancestral assassinado que o eleva à condição de deus, perdendo, assim, o caráter totêmico (VIDAL, 2005, p. 16).
Além disso, não é novidade a semelhança que Freud estabelece entre Deus e o pai do sujeito: o segundo é uma exaltação do primeiro. tese que Freud ([1927] 1974) desenvolve em seu ensaio mais famoso sobre a religião, O futuro de uma ilusão.
Nesse texto, Freud, além de acreditar que o progresso científico e a primazia da razão desmantelariam a religião de seu espaço, julgava ser Deus uma ilusão derivada do desejo infantil de ser amado e protegido, por um Pai todo-poderoso, das circunstâncias angustiantes de viver desamparado no mundo, quais sejam, os acasos incontroláveis da natureza, o destino inevitável da morte e os impulsos destrutivos provenientes dos semelhantes e as renúncias pulsionais exigidas pela cultura.
Contudo, a relação estreita entre Deus e pai já era evidente em Totem e tabu:
A psicanálise dos seres humanos de per si, contudo, ensina-nos com insistência muito especial que o deus de cada um deles é formado à semelhança do pai, que a relação pessoal com Deus depende da relação com o pai em carne e osso e oscila e se modifica de acordo com essa relação e que, no fundo, Deus nada mais é que um pai glorificado (FREUD, [1913] 1974, p. 175-176).
Esse trecho justifica o uso que Lacan faz do mito do pai primitivo como aquilo que se anuncia em nossa época como a morte de Deus (LACAN, [1960] 2008, p. 174; [1960] 2005, p. 30; [1969-1970] 1992, p. 112-113). Acontece que Deus, todavia, sempre esteve morto, e só existe como pai na mitologia do filho, na medida em que o pai primevo é assassinado e ressuscitado por meio do mandamento que ordena amar a Deus.
Mas se Deus está morto para nós, é porque o está desde sempre, e é justamente isso que nos diz Freud. Ele nunca foi o pai a não ser na mitologia do filho, isto é, na do mandamento que ordena amá-lo, ele o pai, e no drama da paixão que nos mostra que há uma ressurreição para além da morte. Quer dizer que o homem que encarnou a morte de Deus continua existindo. Continua existindo com esse mandamento que ordena amar a Deus (LACAN, [1960] 2008, p. 213).
Em Totem e tabu, Freud ([1913] 1974) tenta deixar clara a relação que a vida dos primitivos tem em comum com a dos neuróticos. Nesse sentido, a leitura que Lacan empreende do mito freudiano se refere ao nível da estrutura, removendo a noção trágica e épica do mito;1 em outras palavras, Lacan espera dos leitores de Freud que o mito seja entendido não como algo decorrente da história efetiva, mas como interpretação estrutural (LACAN, [1969-1970] 1992; 1974/1993, p. 55; GUIMARÃES, 2008b, p. 137).
A dinâmica do mito da horda primeva concede, portanto, chaves de leitura para interpretar a estrutura do neurótico, principalmente, no que diz respeito à relação que estabelece com o pai.
De acordo com Lacan ([1960] 2008, p. 212), Freud demonstra, em O mal-estar na civilização ([1930] 1974), a ideia de que aquilo que passa do gozo à interdição sempre é reforçado por um impedimento ainda mais acentuado. Em outras palavras, o sujeito que tem a sua satisfação condenada depois de já tê-la realizado alguma vez, quando se submete à lei, reforça as exigências de limitação, aumentando as minúcias e a crueldade do interdito. A isto isso se atribui o papel sádico do supereu.
O curioso é que mesmo aqueles que se colocam diante do caminho do gozo sem freios, servem-se da lei como referência para seus atos. O gozo é, nesse sentido, como assinala Guimarães (2008b, p. 137), um ponto paradoxal no surgimento da lei.
Geralmente pensa-se no pai da horda como uma figura castradora. Contudo, o que Lacan ([1969-1970] 1992, p. 118) tenta ratificar é que nada garante que, se os filhos avançassem em uma investida sobre as mulheres do clã, isso teria como resultado a castração deles.
A interdição só é possível como enunciado após o assassinato ter ocorrido. A interdição só decorre, aliás, de um acordo comum entre os filhos, que só se descobrem irmanados precisamente nesse instante (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 107). Dessa forma, o gozo absoluto é colocado em um lugar impossível, a partir do qual surge a lei que regulamenta as relações (GUIMARÃES, 2008b, p. 137).
Não é estranho o fato de Lacan ([1955] 1985) estar comentando justamente sobre a censura na primeira aparição da inversão que propõe à frase atribuída a Dostoiévski. A censura que o sujeito coloca para si está sob a ordem de uma não compreensão total do discurso da lei.
Nenhuma lei é entendida em sua totalidade, o que demonstra o caráter deslizante que a proibição pode ter em relação aos atos que julga limitar, pois a simples alusão ao cerne do que está proibido pode se tornar um problema, principalmente quando se proíbe uma ação que tem a morte como consequência punitiva.
Lacan ([1955] 1985, p. 165-168) ilustra esse problema com o seguinte caso: imaginemos que exista uma proibição para aquele que diz que o rei da Inglaterra é “babaca”, cuja transgressão implica ter a cabeça decapitada. O problema está no fato de não compreendermos a lei no discurso, pois não dizer que o rei da Inglaterra é “babaca”, exige também que deixemos de dizer uma porção de outras coisas que possam fazer alusão a esta. Por mais que não se diga exatamente a palavra “babaca” ao se referir ao rei, existem outras palavras, sentenças e até encenações que podem fazer referência à “babaca” – nisso persiste a lógica do significante, isto é, de convocar outros quando um entra em cena. O problema é ainda maior quando a realidade comprova a verdade acerca da babaquice do rei, pois ninguém acha justo o fato de não poder dizer a verdade.
Resulta, pois, que tudo o que no discurso é coerente com esta realidade de que o rei da Inglaterra é babaca, fica suspenso. O sujeito é retomado pela necessidade de dever eliminar, extrair do discurso tudo o que tem relação com o que a lei proíbe dizer. Ora, esta proibição como tal fica totalmente incompreendida. No nível da realidade, ninguém pode entender por que é que se teria a cabeça decepada ao dizer a verdade, ninguém apreende onde se situa o próprio fato da proibição. A partir de então, não se pode mais supor que alguém que diga o que não deve ser dito e que tem ideia de que tudo é permitido poderá anular, pura e simplesmente, a lei como tal (LACAN, [1955] 1985, p. 166).
Nesse sentido, identificamos o caráter problemático da lei como apenas apreendida de forma parcial no discurso; o que encontra consonância com o “nada mais é permitido”, de uma lei que se reforça devido ao seu caráter escorregadio dentro do discurso.
Esse terreno nos prepara para compreender o quanto o pai encena a função de estabelecer a lei para o filho, como habitualmente é assimilada na psicanálise. O pai morto é, assim, fonte de ordenação simbólica para as relações intersubjetivas. Aquilo que em outra estrutura discursiva teria estatuto subjetivo quanto à regra e ao sentido, na função encarnada pelo pai, o significante ganha status de objetividade e é apreciado como verdade. E é isso que constitui a avaliação simbólica herdada pelo sujeito da identificação com o pai (LACAN, [1969-1970] 1992).
Lacan ([1969-1970] 1992, p. 93-94) exibe o fato de Freud nos apresentar a religião como sustentada pelo pai da infância, que protege a criança do desamparo e dos terrores da vida, além de ser digno de amor. Em certa medida, existe uma discrepância nessa visão com a função castradora que Freud também parece nos oferecer acerca do pai.
Conforme pronuncia Lacan, o que Freud preserva do pai é, na verdade, que ele é todo amor – depois de ter sido vítima do parricídio. Isso estaria na primeira fonte de identificação também apontada por Freud. É do amor ao pai morto que surge a regulação dos laços. O que Lacan estranha é o fato de Freud prever o fim da religião ao mesmo tempo que salva o pai, o mesmo pai todo amor que a religião (ao menos, a religião conhecida por Freud) tem como substância basilar.
Retomemos a interpretação da inversão lacaniana acerca da imperiosidade do interdito derivada da morte de Deus. Tudo sugere que o “nada mais é permitido”, advindo do assassinato de Deus-Pai, está amparado na culpa e no amor sentidos após sua morte. Desse modo, esses dois elementos fazem com que uma organização simbólica surja: a lei.
Nesse sentido, iek (2015, p. 38) fornece uma roupagem contemporânea à inversão lacaniana. O autor atesta que os hedonistas liberais ateus, após terem renunciado à autoridade externa, acabam se colocando em uma rede de proibições e armadilhas politicamente corretas mais severas do que a moral tradicional impunha aos indivíduos, o que tem como consequência a reafirmação de um supereu ainda mais impetuoso.
Eles se tornam obcecados com a ideia de que, ao buscar seus prazeres, eles podem humilhar ou violar o espaço dos outros, por isso regulam seu comportamento em regras detalhadas de como evitar ‘assediar’ os outros, isso sem mencionar regras menos complexas relacionadas ao cuidado de si (ginástica, alimentação saudável, relaxamento espiritual...) (IEK, 2015, p. 38).
O que iek (2015) sugere é que, ao rejeitar uma lei externa compartilhada pela comunidade, os sujeitos passam a definir leis mais violentas no próprio mundo interno, regulamentando o cotidiano individual de forma ainda mais legalista. Essa leitura nos abre espaço para pensar outra proposição lacaniana que se conjuga com o “nada mais é permitido”.
No Seminário 11, Lacan ([1964] 1988, p. 60) nos lega o seguinte pronunciado:
Pois a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto – mesmo fundando a origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai – a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente (grifo do autor).
Apesar de o discurso público, manifesto, dos sujeitos apontar para uma sociedade sem lei e sem crença, o que demonstra o foro íntimo de cada um é que a crença existe e se reafirma na organização à qual o sujeito se submete diante do mundo (IEK, 2012, p. 11-12).
Assim, longe de pensar a morte de Deus como efeito de uma modernidade livre de proibições ou de restrições fragilizadas, temos no horizonte sujeitos que se apresentam extremamente livres; porém, com o inconsciente como lugar de imposições (supostamente) precisas – pois temos que levar em conta o caráter escorregadio de apreensão da lei – e altamente severas (IEK, 2015, p. 24).
Agora, invertendo a inversão: se Deus existe, tudo é permitido?
iek (2015) indica para uma sentença afirmativa nesse aspecto. O aumento da violência provocada por fundamentalistas religiosos teria sustento naqueles sujeitos que usam o nome de Deus para executar suas atrocidades. Tais sujeitos se colocam como instrumentos da vontade divina para ter uma redenção antecipada diante da violência que estão para provocar – “[...] hoje em dia, tudo é permitido para aqueles que se referem a Deus de uma maneira brutalmente direta” (IEK, 2015, p. 38).
Como as grandes Causas coletivas não se sustentam no mundo contemporâneo, uma Causa “sagrada” justifica e redime os indivíduos de uma responsabilidade com o ato (IEK, 2015, p. 38-39).
Referências
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Endereço para correspondência:
Bernardo Sollar Godoi
E-mail: bernardosollar@hotmail.com
Sidnei Vilmar Noé
E-mail: sidnoe@gmail.com
Recebido em: 13/11/2017
Aprovado em: 16/03/2018
Sobre os autores
Bernardo Sollar Godoi
Psicólogo. Mestrando em Filosofia da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Sidnei Vilmar Noé
Teólogo. Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
1 Em Televisão, lemos: “Mesmo que as recordações da repressão familiar não fossem verdadeiras, seria preciso inventá-las, e não se deixa de fazê-lo. O mito é isso, a tentativa de dar forma épica ao que se opera pela estrutura” (LACAN, [1974] 2003, p. 531).