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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.41 no.77 Belo Horizonte jan./jun. 2019
TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA
O ódio em três textos de Freud: reflexões sobre ambiguidade, hostilidade e identificação1
Hate in three works of Freud: reflections on ambiguity, hostility and identification
Alexandre Fernandes Corrêa
I Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO
Um estudo sobre a abordagem freudiana acerca do ódio em três textos clássicos. Reflexão acerca do pensamento freudiano sobre as bases da hostilidade, a ambivalência e identificação na constituição do sujeito. Tema candente diante da ascensão do discurso do ódio na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Ódio, Ambiguidade, Hostilidade, Identificação.
ABSTRACT
A study on the Freudian approach to hatred in three classic texts. Reflection on Freudian thought on the basis of hostility, ambivalence and identification in the constitution of the subject. Hot topic facing the rising of hate speech in contemporary society.
Keywords: Hate, Ambiguity, Hostility, Identification.
Testemunhamos a recente ativação do discurso do ódio na sociedade contemporânea. Diante dessa realidade, consideramos oportuno recuperar textos clássicos de Sigmund Freud a fim de encontrar pistas seguras ao aprofundar reflexões acerca de tema candente na atualidade.2
Com esse propósito, elegemos três textos considerados fundamentais no estudo do laço social numa perspectiva psicanalítica. São textos que nos colocam diante dos desafios reflexivos de Freud para além de suas análises de casos clínicos. Muito embora haja esse foco específico, alguns casos clássicos serão referidos ocasionalmente para dar sustentação a aspectos teóricos estruturais. As três obras escolhidas são reconhecidas como reflexões que avançam sobre a cultura, a sociedade e a história, oferecendo ferramentas de análise fecundas para o estudo do ódio no laço social.
Ao optar por seguir uma trajetória cronológica, começaremos pela análise da obra Totem e tabu (1913), na qual Freud pretende desvendar as relações entre o ódio e a identificação na filogênese da espécie, desde a pré-história. Em seguida, tomaremos o texto O mal-estar na cultura (1930), no qual alcançamos o pensamento de Freud sobre as bases da hostilidade humana, considerando o processo civilizatório e a ascensão da modernidade. Por fim, o ensaio escrito no final de sua existência, Moisés e o monoteísmo (1939), quando acompanhamos suas reflexões sobre os fundamentos do ódio direcionado mais especificamente aos judeus.
Convidamos o leitor para a retomada de um dos grandes mestres da modernidade, acreditando que ainda é possível com essas obras fundadoras iluminar lacunas obscuras dos estudos sobre o ódio. É possível que dessa análise se saia com novo entusiasmo pela pesquisa do tema, na busca da compreensão dos desafios do momento histórico e cultural dramático testemunhado na contemporaneidade.
Começamos com o texto Totem e tabu, de 1913. Como se sabe, nessa obra Freud aplica a psicanálise aos campos da arqueologia, da antropologia e dos estudos da religião.3 A obra consiste basicamente de uma coleção de quatro artigos críticos contra as formulações apresentadas na mesma época por Wilhelm Wundt4 e Carl Jung,5 no campo da psicologia científica. Esse conjunto de textos freudianos foi publicado no jornal Imago (1912). Totem e Tabu, desde cedo, tornou-se um dos clássicos da antropologia e da etnologia moderna, comparável a obras como Cultura primitiva, de Edward B. Tylor (1871) e O ramo de ouro, de James Frazer (1890).
Logo de início destaca-se na obra a defesa da ideia de que a ambivalência é marca indelével e remonta aos primeiros laços da relação entre sujeito e objeto, pois reúne em si impulsos e moções ao mesmo tempo ternas e hostis, inerentes igualmente nas formações culturais. Freud aponta para a coexistência do amor e do ódio na relação com o mesmo objeto de afeto. Na sua visão, o ódio, e não somente o amor, participa tanto do processo de identificação como compõe a própria constituição do sujeito, inserindo-se nas bases que instituem os laços e as leis regentes não só do psiquismo, mas também das relações socioculturais.
Além disso, Totem e tabu contém a hipótese freudiana do assassinato do pai da horda primitiva na origem da linguagem, da cultura, do sujeito e da sociedade revelando a dinâmica nuclear e fundamental do psiquismo humano. Como é descrito na obra, o primeiro pai, violento e ciumento, tomava todas as mulheres para si, expulsando os filhos quando cresciam. Até que:
Um dia, os irmãos expulsos se aliaram, mataram e devoraram o pai e acabaram com a horda paterna. Unidos ousaram fazer e realizaram o que individualmente teria sido impossível. (Talvez um progresso cultural, o manuseio de uma nova arma, tenha lhes dado a sensação de sua superioridade.) Que eles devorassem os mortos era uma coisa natural para os canibais selvagens. O violento pai primordial era certamente o arquétipo invejado e temido de cada membro do bando de irmãos. E agora, no ato da devoração, consumavam a identificação com ele, cada qual se apropriava de uma parte de sua força. O banquete totêmico, talvez a primeira celebração da humanidade, seria a repetição e celebração daquele feito memorável e criminoso com o qual tantas coisas começaram: organizações sociais, limitações éticas e religião (FREUD, [1913] 2007, p. 143-144).6
Diante do parricídio e do assassinato do primeiro objeto de identificação, temos a conjugação da primeira polaridade do psiquismo apontada por Freud. Matar e devorar o pai identificando-se com ele instaura com o primeiro crime um pai ainda mais forte. Pois o ódio endereçado ao pai primordial (gozador todo-poderoso) no ato violento, a partir da incorporação e identificação, permite a entrada em cena do amor, um movimento de ternura capaz de erigir o arrependimento e, por conseguinte, o sentimento de culpa em direção à reconciliação.
Ao longo de todo o conjunto de textos contidos em Totem e Tabu, há a reiteração das noções de hostilidade e de ambivalência referidas às fundações do processo identificatório. Os mecanismos de representação do chefe, do inimigo e do pai são imbricados na mesma operação lógica de instituição da Lei, na qual a instituição do tabu revela o proibido e o impossível tal qual na tragédia de Sófocles sobre Édipo se revela o desejo incestuoso.
A instituição do tabu é intrinsecamente ambivalente. O tabu contém em sua dinâmica a contradição de um “horror sagrado”, revela proibições e limitações, faz menção tanto ao sagrado quanto ao impuro, fundamenta atos e cerimônias de purificação, possui a função de proteger de demônios, mas ao mesmo tempo pode ser o ponto de contágio daquilo que desemboca no destino funesto, quando há uma violação. Conclui-se que os crimes de Édipo estão no núcleo do chamado totemismo, qual seja, “não matar o totem e não usar sexualmente nenhuma mulher que pertença a ele”, bem como os mecanismos de identificação que preservam a ambivalência.
Para Freud, o tabu é uma “formação social”, uma “criação cultural” (FREUD, [1913] 2007, p. 72-76) que se originou de proibições muito antigas, impostas desde fora por meio da violência. Se o fundamento do tabu está no ato proibido, e a ambivalência, na tentação de violar a proibição (FREUD, [1913] 2007, p. 39-40), tais afetos correspondem ao desejo inconsciente de violar, dando livre circulação às pulsões, em conflito com as formações culturais que garantem proteção a partir dos lugares representativos do chefe e do pai em oposição às representações do inimigo e dos mortos, preservando a ambivalência e encenando a identificação.
Freud alcança a análise de que o tabu nos povos primitivos é o “sintoma de compromisso do conflito de ambivalência” e seu estudo tenta lançar esclarecimentos sobre a natureza e a gênese da consciência moral [Gewissen]. Do sentimento ambivalente ao sentimento de culpa temos a construção dos ideais e do supereu, que cobra do eu que este pague uma dívida. Se na neurose a culpa martiriza o sujeito, na psicose essa culpa vem como perseguição, como destaca Colette Soler (2007, p. 11-22) na obra O inconsciente a céu aberto da psicose.
Aspectos da questão da culpa são enunciados por Freud quando analisa os tabus erigidos pelos primitivos em suas relações com chefes, reis e governantes. Nesse caso, a ambivalência vigora no campo da proteção e do contágio, pois o mesmo que protege infringe a maldição. O rei venerado pode ser tomado como criminoso. Portanto, a hostilidade fica recoberta pela ternura, mas o desamparo e a angústia diante do mal sinalizam para o jogo de forças em questão, jogo esse sustentado para manter inconsciente o desejo inconfesso.
Freud, quando se volta para o estudo da religião cristã em particular, observa o complexo paterno localizado na “culpa trágica”, muito bem encenada na eucaristia, momento em que, na perspectiva freudiana, reanima o antigo banquete totêmico com o selo da comunhão. No mito cristão, como se sabe, Jesus se dá em sacrifício para redimir o pecado original do homem, “um pecado contra Deus-Pai”, demonstrando como na religião se engendra a formação substitutiva do pai, na medida em que “deus no fundo não é mais que um pai enaltecido” (FREUD, [1913] 2007, p. 149-155).
Em Totem e tabu percebemos se iniciar uma perspectiva progressiva de ampliação das reflexões e conceituações acerca da ambivalência do amor e do ódio em Freud, entre os anos 1909 e 1915.7 A evolução no trato dessas inquietações vem dar mais substância e abrangência às considerações destacadas da obra, cristalizando a concepção freudiana na teorização que abarca o laço social, a fundação da ordem simbólica e da própria linguagem humana.
Assim, dando sequência à nossa trajetória, nos introduzimos nas reflexões sobre as bases da hostilidade. É o momento de uma mirada na obra O mal-estar na cultura (1930).
Freud começa o ensaio retomando O futuro de uma ilusão, de 1927. E não é circunstancial que em O mal-estar na cultura inicie aludindo o “sentimento oceânico”, aquele consolo religioso capaz de produzir no sujeito a sensação de “ser-Um com o Todo”. Se há uma pulsão que se esforça por retornar ao inanimado, há também aquela que se esforça em ligar e fazer Um. Sigamos sua reflexão, para só depois retomar essa questão nuclear.
Logo na abertura são colocados em pauta os limites do eu – que não são fixos, vale notar a conceituação do eu (1923) como instância e sua dimensão alteritária – e o reconhecimento de um mundo externo a partir de um objeto percebido como algo de fora, um primeiro objeto, o seio materno. O primeiro inimigo, então, é o mundo externo, a realidade que impõe limites, dor e desprazer (FREUD, [1930] 2007, p. 68). A fantasia vem para mediar essa relação entre o sujeito e o objeto. Entretanto, existem aqueles para os quais “a realidade é demasiado forte”, então recriam uma nova realidade pela via do delírio.
Nesse sentido, Freud chama atenção para o fato de que essa “transformação delirante da realidade efetiva”, se levarmos em conta algumas nuanças,
[...] cada um de nós se comporta em algum ponto como o paranoico, corrige algum aspecto insuportável do mundo por uma formação de desejo e introduz este delírio no objetivo (a realidade) (FREUD, [1930] 2007, p. 81).
Contudo, nesse preço a pagar pela cultura, uma economia libidinal em prol do prazer denominado felicidade é erguida, o que endereça o sujeito a uma busca sublimatória pela via religiosa, pelas artes e ciências, ou, no refúgio na neurose ou na psicose – essa “desesperada rebelião” como afirma Freud.
Três fontes principais de sofrimento estão em jogo nesse enlace:
• a hiperpotência da natureza;
• a fragilidade do corpo;
• a insuficiência das normas que regulam os vínculos recíprocos entre os homens na família, no Estado e na sociedade.
A partir dessa constatação, Freud ([1930] 2007, p. 86) questiona:
Por quais caminhos tantos seres humanos chegam a esse ponto de vista de surpreendente hostilidade à cultura?
Lembremos que Freud ([1930] 2007, p. 88) enfatiza:
A palavra “cultura” designa toda a soma de operações e normas que distanciam nossa vida da de nossos ancestrais animais, servindo a dois propósitos: a proteção do ser humano contra a natureza e a regulação das relações recíprocas entre homens.
A cultura exige uma renúncia pulsional, renúncia que cobrará sua parte no mal-estar instituído no laço social pela limitação dada pelos ideais culturais. Um conflito entre a liberdade do sujeito e os anseios coletivos fará surgir em algum momento reivindicações e/ou rebeliões contra o instituído. Desse “resto não dominado pela cultura” se produz a “base para a hostilidade contra esta última”. Base essa que, então, se fundamenta nessa dupla operação na qual a cultura se edifica na renúncia do pulsional, na não satisfação das pulsões mediante o recurso à “sufocação, repressão”.
Freud ([1930] 2007, p. 94-96) avança se perguntando o que ainda pode ser capaz de promover a “denegação cultural” que, para ele,
[...] governa o vasto domínio dos laços sociais entre os homens; nós já sabemos que esta é a causa da hostilidade contra a qual eles são forçados a lutar contra todas as culturas.
Se, de um lado, a base da hostilidade e do endereçamento do ódio repousa na renúncia pulsional cobrada pela cultura, de outro lado, uma das bases da cultura se funda na função de ligação do amor. Entretanto, esse mesmo amor que na origem reúne Eros e Ananké, também se contrapõe à cultura, pois “[...] o amor de meta inibida foi em sua origem plenamente sensual e o segue sendo no inconsciente dos seres humanos”, e disso se conclui que a cultura, ao cobrar do amor suas limitações, faz dela também fonte de hostilidade (FREUD, [1930] 2007, p. 100).
Freud atesta a existência de uma hostilidade primária e recíproca, da “inclinação inata do ser humano ao ‘mal’, à agressão, à destruição e, com elas, também à crueldade” (FREUD, [1930] 2007, p. 116).
Aqui, estamos diante de um aprofundamento daquilo que foi tratado em Além do princípio do prazer (1920), qual seja, a pulsão de morte. No entanto, estamos diante também de um enfrentamento teórico-político de Freud contra a noção de libido defendida por C. G. Jung, que coloca em xeque a dualidade pulsional, defendida por Freud até os seus últimos textos.
Neste momento, após realizar essa breve análise sobre a base da hostilidade e do endereçamento do ódio na instituição do laço social regrado pela cultura e pela ordem simbólica, passamos a trabalhar sobre um escrito publicado no final da vida de Freud. Trata-se de um ensaio complexo que nos remete às reflexões freudianas desenvolvidas em pleno processo de ascensão do nazismo e do fascismo na Europa, exílio em Londres e perda de familiares.
É nesse contexto de dilacerações e suplícios em relação à saúde pessoal e à realidade da iminência da II Guerra Mundial que nos deparamos com uma obra densa e desafiadora.
No ensaio Moisés e a religião monoteísta (1939) inquieta como e por que Freud precisou colocar em cena o assassinato de Moisés. O mito do assassinato do pai, analisado em Totem e tabu (1913), reaparece ocupando um ponto central, numa operação estrutural que alia em seu núcleo o ódio e a identificação. Na pena do próprio Freud temos a confissão de que as questões sobre Moisés desde sempre rondavam seu pensamento.
No entanto, como nos revela em dois momentos, a demora na publicação do texto se deu por questões políticas relacionadas à iminência da guerra. Assim, são duas as hipóteses fundamentais que o atraem com insistência ao assunto:
• Moisés era egípcio (um estranho);
• havia sido assassinado pelo povo que o elegeu como profeta.
Duas hipóteses aparentemente sem ligação, mas que encenam o lugar e a função do estranho e do ódio na fundação do sujeito e de suas identificações.
Na longa história do monoteísmo, Freud se detém na doutrina que pregava um Deus Universal. Nota que tal crença era acompanhada de uma exigência de exclusividade oriunda de um processo desenvolvido desde o governo egípcio de Amenhotep, passando pela mudança do nome para Ikhnatón, até a morte desse faraó. A hostilidade e a violência com que fazia valer sua lei fizeram de seu deus universal um deus odioso. A morte de Ikhnatón foi celebrada pelo povo, sua casa saqueada, sua religião suprimida e sua memória inscrita no quadro dos criminosos.
A hipótese de Freud sobre o assassinato de Moises associa sua rigorosa doutrina com seu agir violento e lança mão da ideia de que seu povo se rebelou contra ele e o matou, assim como fizeram os irmãos com o pai da horda primitiva descrita na obra Totem e tabu (1913).
Lacan salienta que a “feroz ignorância de Yahvé” o coloca no discurso do mestre no qual ele não abre mão das três paixões fundamentais:
O que mais chama a atenção nessa manifestação religiosa única é que Yahvé não está desprovido de nenhuma delas. Amor, ódio e ignorância, eis, em todo caso, paixões que não estão ausentes de seu discurso (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 128).
Na tradição que reedita o passado, Freud sustenta sua interpretação sobre o monoteísmo ao fazer uma analogia entre a vida psíquica e a memória coletiva. Freud afirma que na construção histórica o fenômeno da latência, do recalcamento e da formação de lembranças encobridoras, fusionou duas religiões e dois Moisés. Sua analogia prossegue ao desenhar uma arquitetura do sintoma no qual a ambivalência descortina o mito e revela a estrutura. Ódio e identificação se organizam no parricídio em busca da herança paterna.
Freud é bastante claro a esse respeito quando diz que os filhos
[...] não apenas odiavam e temiam o pai, mas o veneravam como um arquétipo e, na realidade, cada um deles queria seu lugar (FREUD, [1939] 2007, p. 78).
Freud, ao aprofundar esse tema, lembra do ensaio de J. W. Goethe intitulado Israel no deserto8 para pensar a lógica inconsciente do assassinato do pai primordial e no retorno dele, na figura de Moisés. A partir da citação do ensaio goethiano, Freud coloca em discussão a questão dos possíveis fundamentos do ódio ao povo judeu.
Nessa direção, encontramos em Betty Fuks, no seu livro Freud e a judeidade (2000), uma análise importante sobre o tema do ódio no que se refere aos judeus. Fuks, em resumo, apresenta três argumentos centrais.
• “[...] ler o Moisés, de Freud é sempre uma passagem por um desfiladeiro enigmático, uma interpelação do Estranho [...]”.
• Freud denuncia “[...] a estrutura religiosa do totalitarismo antissemita que, sob o signo do ódio, fomentava uma cultura de hostilidade mortal ao outro” (FUKS, 2000, p. 87-88).
• Ao contrário do pensamento difundido de que os judeus nutriam um profundo ódio de si, o ódio é algo que se desenvolve a partir da relação dos homens com a diferença do outro e, no caso específico do povo judeu, o paradigma judeu revela “o ancestral Unheimlich das massas”.
Justifica-se, então, que Freud tenha se debruçado sobre o tema ao tomar o ódio como “um dos motores da escrita de Moisés e o monoteísmo” (FREUD, [1939] 2007, p. 91).
Mas, de qual diferença a autora nos fala? Da diferença capaz de produzir angústia, que se funda no ódio ao outro. Portanto, o racismo e os mais diferentes tipos de segregação se relacionam com aquilo que Freud soube nomear como “narcisismo das pequenas diferenças”.9
Fuks (2000, p. 91) é clara:
Diferença ex-tima: o horror ao que é mais íntimo e que, tomado pelo eu como um objeto externo, constitui-se em objeto de ódio na segregação e no extermínio.
Ao longo de Moisés e a religião monoteísta, Freud ([1939] 2007) argumenta que os judeus são minorias estrangeiras entre outros povos e, por isso, recebem, invariavelmente, um montante considerável de hostilidade. Além disso, aponta que a prática da circuncisão produz nos outros uma impressão desagradável e estranha por lembrar
[...] a castração temida e, assim, tocar um fragmento do passado dos tempos primordiais, que de bom grado deseja-se esquecer (FREUD, [1939] 2007, p. 88).
Fuks insere uma questão importante sobre o ódio à feminilização embutida no sentimento de estranhamento e repulsa à prática da circuncisão. A autora concentra sua análise no ódio ao estranho pela via do feminino. Ao recorrer ao trabalho de Gilman (1994), fica claro que “[...] o corpo do judeu era visto em termos absolutamente depreciativos e paranoicos”, denunciando um imaginário horrendo diante da circuncisão, o que era “correlata à sua feminilização”, pois havia na cultura europeia do final do século XIX um “pânico da feminilização da cultura” o que correspondia “ao horror de sua judeização” (FUKS, 2000, p. 93).
Com essa obra escrita no final da vida, Freud nos deixa um legado teórico de valor incomensurável, constituindo manancial fecundo para novas interpretações sempre instigantes. Em nosso trabalho observamos que o complexo articulado pela ambiguidade, pela hostilidade e pela identificação está na base fundamental da instituição do laço social humano.
A intensificação do processo de globalização e de mundialização nos aproxima de cenários críticos e dramáticos na relação com o estranho, o diferente, o feminino, etc., no momento em que assistimos simultaneamente à derrocada do patriarcalismo.
Recuperar Freud é retomar os princípios de uma reflexão inaugural a fim de buscar formas de ultrapassar os impasses dos cânones modernos, no tratamento dos novos desafios da contemporaneidade.
Referências
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LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]
SOLER, C. O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. [ Links ]
Endereço para correspondência:
E-mail: alexfcorrea@gmail.com
Recebido em: 23/04/2018
Aprovado em: 15/04/2019
Sobre o autor
Alexandre Fernandes Corrêa
Doutor em ciências sociais (PUC-SP).
Professor Associado da UFRJ - Campus Macaé.
1 Texto elaborado em homenagem póstuma à psicanalista Adriana Cajado Costa (1973-2012).
2 O presente artigo se aproxima de percepções comuns a diferentes autores em diferentes áreas do conhecimento. Podemos observar ressonâncias tanto no contexto mais amplo de um panorama civilizacional (GLUCKSMANN, 2007), como no contexto nacional testemunhado por diferentes psicanalistas. Destacamos de um texto recente de Tales Ab’Saber: “[...] observamos a ativação do ódio no processo político brasileiro. Não que sua aparição seja exatamente uma novidade na vida política do país, uma vez que a violência está no conjunto dos princípios primeiros, fundadores do Brasil”. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/tales-absaber-o-estado-nao-esta-sendo-favoravel-a-vida-no-brasil/#.WkwJS3y8s0w.facebook>. Acesso em: 9 jan. 2018.
3 Peter Gay, em O cultivo do ódio, destaca: “O altamente criticável exercício de Freud sobre a pré-história especulativa, Totem e tabu, publicado pouco antes da Primeira Guerra Mundial, acentua a mensagem de que os gregos e os cristãos foram domesticados pela civilização ocidental” (GAY, 2001, p. 139).
4 WUNDT, W. La psicología de los pueblos: bosquejo de una historia de la evolución psicológica de la humanidad (1900). Barcelona: s/l, 1963.
5 Em 1911, C. G. Jung publica Psicologia do inconsciente. Com essa obra inicia-se o distanciamento de Freud e Jung. Em 1912, Jung publica Símbolos e transformações da libido, quando se consolida o rompimento entre os dois pensadores.
6 Nas citações traduzimos livremente do espanhol utilizando como fonte bibliográfica a publicação da editora Amorrortu. Sigmund Freud, Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2007. Traducción directa del alemán de José Luis Etcheverry, cotejada con la edición inglesa bajo la dirección de James Strachey - The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
7 Destaque para o artigo Os instintos e suas vicissitudes [A pulsão e seus destinos] publicado em 1915, no qual Freud admite que o “termo bem adequado” foi “introduzido por Bleuler – ‘ambivalência’” (FREUD, [1915] 1974, p. 152). Foi nesse artigo também que Freud ([1915] 1974, p. 187) concluiu que “o ódio, enquanto relação com objetos, é mais antigo que o amor”.
8 GOETHE, J. W. Obras completas. Tomo 1. Recopilación, traducción, estudio preliminar, preámbulos y notas de Rafael Cansinos Assens. Madrid: Aguilar, 1987. [‘Divan de Occidente y Oriente”: p. 1645-1866].
9 Data de 1918 o primeiro uso da noção ‘narcisismo das pequenas diferenças’ no texto O tabu da virgindade (FREUD, [1918] 2006, p. 195).