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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.41 no.78 Belo Horizonte jul./dez. 2019
PSICANÁLISE E CULTURA
Mitos e representatividades: a expressão da sexualidade em culturas africanas
Myths and representativeness: the expression of sexuality in african cultures
Robenilson Moura BarretoI, II; Paulo Roberto CeccarelliII, III, IV
I Faculdade Católica Dom Orine
II Univerdidade Federal de Minas Gerais
III Universidade Federal do Pará
IV Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
O mito de criação da nação Iorubá, traz à psicanálise reflexões da prática clínica no contexto cultural de origem africana. A sexualidade em algumas nações africanas faz parte das suas histórias de criação. Igbá-odu (cabaça da criação) é representado pelo Orixá Odudua, princípio feminino, a metade inferior da cabaça, e Obatalá ou Oxalá, princípio masculino, a metade superior da cabeça. Diferentemente da cultura ocidental, o artigo aponta inflexões na direção da cultura Iorubá em que a sexualidade humana ocupa a parte central da vida desses povos.
Palavras-chave: Sexualidade, Mito, Nações africanas.
ABSTRACT
The creation myth of the Yoruba nation brings to psychoanalysis reflections of clinical practice in the cultural context of African origin. Sexuality in some African nations are part of their creation stories. Igbá-odu (gourd of creation) is represented by Orixá Odudua, female principle, the lower half of the gourd, and Obatalá or Oxalá, male principle, the upper half of the head. Unlike Western culture, the article points to inflections in the direction of Yoruba culture in which human sexuality occupies the central part of the life of these peoples.
Keywords: Sexuality, Myth, African Nation.
Oduduá briga com Obatalá, e o Céu e a Terra se separam
O princípio de tudo, quando não havia separação entre o céu e a terra, Obatalá e Oduduwá viviam juntos dentro de uma cabaça. Viviam extremamente apertados um contra o outro, Oduduwá embaixo e Obatalá em cima. Eles tinham sete anéis que pertenciam aos dois. À noite, eles colocavam os anéis: aquele que dormia por cima sempre colocava quatro anéis e o que ficava embaixo sempre colocava os três restantes. Um dia, Oduduwá Deusa da terra, quis dormir por cima para poder usar nos dedos quatro anéis. Obatalá o Deus do céu não aceitou. Tal foi a luta que travaram os dois lá dentro, que a cabaça acabou por se romper em duas metades.A parte inferior da cabaça com
Oduduwá permaneceu embaixo, a parte superior da cabaça ficou com Obatalá, separando-se, assim, o céu da terra. No início de tudo, Obatalá Deus do céu e Oduduwá Deusa da terra viviam juntos. A briga pelos anéis os separou e separou o céu da terra. Por isso a distância entre o céu e a terra (PRANDI, 2001, p. 424).
I
Oduduwa é uma das divindades primordiais iorubás.1 Ela representa a divinização da terra e é considerada, ao lado de Obatalá (a representação divinizada do céu), como o casal primordial e propulsor da criação. Cada um foi incumbido de determinadas funções no papel da criação do Aiyê,2 o universo, incluindo o mundo em que vivemos. O universo é visto dentro do culto aos orixás como uma grande cabaça. Essa cabaça é representada por Oduduwa e Obatalá.
O nome Oduduwa pode ser traduzido como “a cabaça de onde jorrou a vida”. Para o berço religioso dos Iorubás, Oduduwa é um Orixá sobre o qual existe muita discordância entre os adeptos do culto. Alguns autores (PARRINDER, 1969; WOORTMANN, 1978; VERGER, 1997; PRANDI, 2001; FROBENIUS, 1949) afirmam que Oduduwa seria um Orixá masculino ao invés de feminino, mas, o que ocorre é uma confusão entre a divindade feminina Oduduwa com o ancestral iorubano divinizado Oduduwa, que na verdade é considerado em território africano como sendo uma forma humana da deusa Oduduwa. Ou seja, o guerreiro legendário e a deusa Oduduwa seriam as mesmas pessoas. Essa é uma visão muito ampla no que concerne à essência divina. Se Oxalá representa o princípio masculino-ativo da criação, Oduduwa é a representação do princípio feminino passivo, do qual surge a vida após o processo de “fecundação”. Oduduwa é um Orixá Funfun3 absolutamente diferente dos demais, embora semelhante em essência; é feminina e cultuada em diversas regiões como esposa de Oxalá, embora seja, em princípio, sua irmã.
No seu livro Os nagôs e a morte, Santos (1976, p. 59) traz à baila uma construção representativa e coletiva de mães ancestrais, em que funda a matriz da origem na condição feminina de Oduduwa:
[...] Obàtálá e Odùdúwà, respectivamente princípio masculino e feminino do grupo de òrìsàfunfun, do branco, disputam-se o título de òrìsà da criação. A luta pela supremacia entre os sexos é um fator constante em todos os mitos, Odùdúwà, também chamada Odùa, é a representação deificada das Iyá-Mi, a representação coletiva das mães ancestrais e o princípio feminino de onde tudo se origina [...]. Esses conceitos e seres divinos são representados simbolicamente pela cabaça ritual – igbàodù – que representa o universo sendo a metade inferior Odùa e a parte superior Obàtálá.
Essa ideia nos remete ao feminino como referência na construção de uma civilização. Os estudos de Marins (2013) indicam Oduduwa como a grande deusa negra. Oduduwa, como a mulher primordial, também denominada EléyinjúEgé, a dona dos olhos delicados. Ela recebe o poder da fertilidade para a sustentação do mundo recém-criado. E Recebe os títulos de Ìyánlá – a grande mãe, e Ìyáwon – a mãe de todos. Essa visão de grande mãe detentora da fertilidade do mundo não propiciou à sua descendência feminina o status diante do mito apresentado na sociedade contemporânea.
Nesse contexto mitológico, a nação Iorubá se funda como matriz e cultura na África Ocidental, hoje localizado no país da Nigéria. Desde o século XIX, a nação iorubana destacou-se sobre todas as demais, sendo proeminente em riqueza, grandeza e prestígio internacional. Mais do que qualquer outra nação, ela é estudada, escreve-se a seu respeito e ela é imitada – não apenas por seus seguidores, mas por antropólogos, historiadores da arte, escritores, psicólogos e críticos literários. Entre as maiores metrópoles dessa nação transatlântica, estão Lagos, Ibadan e Oyo na Nigéria; Havana, em Cuba; Oyotunji (na Carolina do Sul), Nova Iorque, Chicago, Los Angeles e Miami nos Estados Unidos; e, no Brasil, Salvador, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.
Devido a uma introdução tardia e à numerosa concentração dos seus falantes no Brasil, os aportes dos iorubás são mais aparentes, especialmente porque são facilmente identificados pelos aspectos religiosos de sua cultura e pela popularidade dos seus orixás no Brasil (Iemanjá, Xangô, Oxum, Oxóssi, Oxalá e outros deuses do panteão de matriz africana). Por isso mesmo, a investigação sobre culturas africanas no Brasil tem sido baseada nos mais proeminentes candomblés de tradição Jeje-Queto-Nagô em alguns estados do Brasil, uma abordagem metodológica que vem sendo observada desde Nina Rodrigues (1945) e que terminou por desenvolver a tendência de interpretar os aportes africanos no Brasil através de uma óptica Iorubá, mesmo quando não o são.
Com isso, neste trabalho, apresentamos uma configuração de valores culturais trazidos para a diáspora ocidental, a partir de uma ordem mitológica, subjetivada por aqueles (as) que trazem consigo a história de alguns mitos africanos e o imaginário identitário de sua realidade nos cultos religiosos de tradição iorubana por meio das relações de gênero e da sexualidade (BARRETO, 2017).
II
Ao refletir sobre esse contexto mitológico, percebemos que os mitos sempre estiveram no cerne das construções teóricas psicanalíticas. Podemos iniciar aqui, para exemplificar, com o grande mito de Édipo Rei, de Sófocles, que representa importante papel no processo de edificação da psicanálise. Assim, como o conflito edipiano para Freud é universal, presente em todo e qualquer grupo humano, ou melhor, a dinâmica desse conflito pode ser reconhecida onde quer que se encontre o sujeito em sociedade, o mito de Odudua e Obatalá pode estabelecer certa universalidade entre povos africanos na diáspora, que apresentam elementos substanciais da fundamental importância das relações de gêneros nos cultos iorubanos, em especial no Brasil.
Os povos de origem iorubana que se estabeleceram no Brasil por um processo de escravização constituíram de forma concreta novas estratégias de consolidação e sobrevivência que fortificaram sua leitura de mundo, baseando-se numa relação direta com a natureza e com sua sexualidade. Nesse sentido, o contexto da natureza como parte do ser humano dentro de uma cultura africana Iorubá, revela que natural é também tudo que vem da natureza humana, principalmente a sexualidade, que é o caminho do renascimento e da fertilização. Mas essa “iorubanização” de parte significativa dos povos africanos é apenas um recorte dessa relação entre o feminino e o masculino.
O papel da sexualidade como construto relacional entre os gêneros ocupa parte central da vida humana em algumas culturas na África, uma vez que a sexualidade é o fluxo da vida humana, portanto é percebida por grande parte dos africanos como a pulsação da sociedade. A base que constitui os valores culturais e o imaginário social é mitológica. Os mitos de origem oferecem um ordenamento fantasmático e elaboram um estatuto identitário que legitima as representações na sociedade (CECCARELLI, 2015). Representações mitológicas, a partir de um referencial, construídas historicamente no mundo ocidental judaico-cristão, em especial no Brasil, perpassam pelo ideal identificatório de um modelo universal; um ideal de modelo branco e eurocêntrico.
O eurocentrismo está impregnado em nosso cotidiano de tal forma que mal percebemos sua presença e o quanto ele orienta nossa organização simbólica. Não se trata de atacar ou desprezar a diversidade cultural europeia, mas sim o eurocentrismo que, não raro, reduz diversidades culturais com sua riqueza simbólica a uma perspectiva paradigmática que vê a Europa como origem única dos significados.
O conjunto de noções e ideias sobre o universal, a partir da construção eurocêntrica, bifurcou o mundo em “Ocidente e o resto” e organizou a linguagem do dia a dia em hierarquias binárias que implicitamente favorecem a Europa.
[...] nossas nações, as tribos deles; nossas religiões, as superstições deles; nossa cultura, o folclore deles; nossa arte, o artesanato deles; nossas manifestações, os tumultos deles; nossa defesa, o terrorismo deles (SHOHA; STAM, 2006, p. 21).
Em determinadas culturas de origem africana, os mitos são vozes polifônicas que presentificam as ações de um povo em sua vivência, sua espiritualidade, sua representação social e sua cultura. Uma organização simbólica que, por se diferenciar, por vezes radicalmente, da maneira ocidental de ler o mundo, muitas vezes dificulta sua apreensão, podendo produzir o que chamamos de “contratransferência cultural” (CECCARELLI, 2016). São importantes porque transmitem conhecimento, fornecendo a interpretação da realidade negra, sua forma de lidar com a vida, a morte, a sexualidade, o medo, as diferenças e as deficiências.
No universo religioso de matriz africana, os diversos mitos que se apresentam e se personificam na vida dos sujeitos descrevem a “vida” dos deuses e recordam seus feitos heroicos. Esses relatos sagrados desempenham papel relevante na vida dos religiosos na diáspora, pois apresentam nesse contexto uma leitura de mundo e de realidade na qual ressignificam suas relações com o mundo.
Segundo Freud (1912-1913), os mitos são narrativas úteis e importantes; valiosos recursos psíquicos dos quais o homem lança mão na tentativa de compreender e explicar o mundo. Essas narrativas mitológicas se apresentam ao sujeito como um caminho possível para a relação consigo mesmo e com o mundo.
Através da identificação, se propagam nos conteúdos psíquicos individuais, pois ele cunha suas representações identitárias a partir desses ideais; são expedientes para dar conta dos afetos. Os mitos oferecem ao homem a condição de aprumar-se e dar ordenamento ao mundo. Ao conferir um simbolismo, inauguram uma cosmologia, na qual o homem se insere e toma como sua quando recolhe para si os ideais oferecidos pela alteridade:
[...] os mitos representam o patrimônio fantasmático de uma cultura. Suas origens confundem-se com a do homem (CECCARELLI, 2009, p. 292).
Ou seja:
[...] o mito fundador esta´ para a cultura assim como o mito individual esta´ para o sujeito: uma palavra fundadora de identidade. Sua perda pode ser experimentada, tanto pelo sujeito quanto pela cultura, com uma perda das referências identificatórias, pois ela desfaz a circulação pulsional, provocando o colapso da função imaginaria e simbólica, fazendo emergir o real produtor de estados de angústia que podem chegar aos chamados “ataque de pânico”, a` desorganização psíquica ou, nos casos mais drásticos, a episódios psicóticos (CECCARELLI, 2012, p. 32).
III
Os mitos fundadores da cultura judaico-cristã apresentam a mulher como inferior e submissa: Eva é feita a partir de uma costela de Adão, suprindo, porém, sua necessidade de homem, que não deve ficar sozinho. No entanto, ela encarna a tentação, o pecado da carne, o desejo de sexo, responsável pela perda da paz e da tranquilidade do homem, representada pela perda do paraíso terrestre. Diferentemente dessa concepção, o mito iorubano da “criação do mundo” anuncia uma relação particular e diferenciada na construção da criação do mundo, e responsabilidades compartilhadas entre a figura feminina e a masculina.
As mulheres são portadoras de muito axé e viabilizam sua expansão e preservação através de rituais. O ritual é o simbólico e a força da mulher nos cultos de base africana; aparece e sobressai-se pelo princípio de equilíbrio de forças e pelo respeito aos papéis que desempenha. O ritual e o espaço de axé fazem de cada sujeito parte de um espaço que abriga a todos. Por meio de palavras, gestos, sons, objetos, cânticos e movimentos, representam as reconstruções do simbólico, recriação do mundo, libertação do ser humano, integrando-o a seu universo.
Através das danças rituais, as mulheres incorporam a força cósmica, criando possibilidades de realização e mudança, fazendo de seu corpo um território livre, próprio do ritmo, liberto de correntes. Sem o poder da mulher, sem o princípio de criação, não brotam plantas, os animais não se reproduzem, e a humanidade não tem continuidade. Logo, o princípio feminino é o princípio da criação e da preservação do mundo: sem a mulher não existe vida. Por isso, a mulher deve ser reverenciada, e a relação com a reverência que os homens têm para com as mulheres deve ser representada, já que somente elas criam, transformam, modificam as coisas.
A sexualidade da mulher negra faz parte da sua essência de princípio feminino, e muitos são os mitos que representam a função e o papel da mulher vista como útero fecundado, cabaça que contém e é contida, responsável pela continuidade da espécie e pela sobrevivência da comunidade. Não existe pecado na sexualidade, já que é indispensável à preservação e à continuidade do grupo.
A noção de pecado, de diabo, de condenação, de penitência, é uma herança cristã, em que o sujeito pauta suas ações mediante o ritual de regras que precisam ser seguidas à risca para “ir ao céu”. A mitologia africana vem na contramão dessa dinâmica e nos mostra que precisamos estabelecer uma relação de ação e reação com o nosso semelhante (independentemente da sua identidade sexual) e com a natureza, de forma que as pessoas não sejam julgadas e condenadas.
Outro fator de extrema relevância a ser considerado é a padronização dos aspectos morais judaico-cristãos heteronormativos. Essa proposição de uma relação marginal aos que vivenciam as homoafetividades viola um princípio que permite a sexualidade apenas para procriação, fazendo alusão ao princípio criativo que lhe restasse, sugerindo ainda um caráter transgressivo a essas construções possíveis entre pessoas do mesmo gênero.
Dessa forma, essa relação nos convoca a refletir sobre os aspectos da relação presente em certas culturas africana, em que, do ponto de vista dos acordos e das normas mais restritas, não há impedimento ou negação do orixá a tais homoafetivos. O que de fato ocorre nos convoca a uma compreensão sobre o outro que, atravessado pelos afetos de outrem, se permite o envolvimento como expressão da sua sexualidade, que se manifesta como pulsão de vida, como todo envolvimento da economia psíquica, uma vez que esses afetos fazem parte das necessidades biológicas de muitos (SANTOS, 2013).
Portanto, imaginar a sexualidade no âmbito dos espaços em que se pratica e se preserva a cultura africana iorubana requer mais que uma dominação apenas teórica, antes, que nos permitamos às ressignificações sobre masculino e feminino, a reconhecer mulheres e homens num universo de possibilidades, sem que essa relação de fato venha a elevar o campo das neuroses. Ainda que pese o desconhecimento das bases inconscientes desses afetos, haverá um investimento dessa energia que permitirá novos representantes ideativos das pulsões, podendo ser da vida ou da morte da sexualidade (BERNARDES, 2008).
IV
Torna-se relevante intensificar um estudo reflexivo da abordagem psicanalítica para a construção de novas configurações sociais na medida em que a diversidade cultural produz tanto novos modelos sintagmáticos de leitura do mundo quanto processos identificatórios na relação do sujeito com o objeto.
Em diversos momentos, Freud recorreu aos mitos e às referências e metáforas mitológicas para abordar e explicar as origens. Totem e tabu é um texto de Freud ([1912-1913] 2006) que versa sobre as concepções psicanalíticas em torno da etnologia e os surgimentos das religiões, bem como a organização social e hierárquica das sociedades primitivas que influenciaram a nossa atual configuração de sociedade.
Os argumentos de Freud configuram sua opinião sobre a formação da cultura atual que, segundo ele, se baseou nos antigos sistemas totêmicos que, atualmente, podem ser encontrados somente em algumas localidades da Austrália e da África.
A psicanálise pode ser entendida como o método terapêutico criado pelo médico Sigmund Freud (1856-1939), que consiste na interpretação por um psicanalista dos conteúdos inconscientes que vêm à tona por meio das palavras e ações de uma pessoa. Isso ocorre por meio da chamada “escuta psicanalítica”, realizada dentro de um consultório.
E nas sessões de psicanálise, ao ouvir uma mulher negra ou um homem negro, o psicanalista deve considerar todo o apagamento dessa memória mitológica vivenciado pelo povo negro, a invisibilidade e o desaparecimento social, o genocídio e o encarceramento de jovens negros, heranças da articulação entre racismo e servidão na diáspora. Essa especificidade da população negra foi ignorada por muitas décadas como reflexo da herança racista violenta, sexista e homofóbica. As diversas áreas que se ocupam da saúde física e mental sempre foram continuam sendo exercidas, em sua maioria, por profissionais que não possuíam o olhar étnico e de gênero que possibilita entender a devastação que o racismo nas suas diversas facetas pode ocasionar.
Parece-nos salutar compreender que a construção de uma relação terapêutica, por meio da transferência, considere os significantes e os mitos presentes no inconsciente tanto do analista, quanto do analisando. Diante dessa dinâmica, faz-se necessária uma disposição psíquica do analista para uma compreensão ampla sobre as questões étnicas e todo o arcabouço que esse/o sujeito traz de sua história ancestral, uma vez que suas matrizes referenciais estarão suportadas por essas/tais construções, ainda que nem se perceba sua importância.
Segundo Wolff e Falcke (2011), numa trama em que a relação dialética produzirá um impacto também no analista, o ponto de transferência se confirma, como uma experiência de aprendizado entre ambos.
Consideramos a alta relevância de uma reflexão sobre o quanto o feminino deseja desautorizar o masculino que, ao longo das trajetórias conjuntas, apenas impuseram a essas mulheres, de forma perversa, a autoanulação da sua sexualidade nos sentidos mais diversos, estando sempre submetida e privada de seus prazeres pela dominação e expressão do poder Falópio, ainda que pese a presença do falo na simbolização de Exu, presente nas significações, sobretudo sendo atribuído a ele o poder da comunicação, do elo e da transição.
Se essa mulher busca agora transcender à sua condição limitada, ainda é através do falo simbolizado por Exu que se confirma e legitima a sua condição de liderança, mas que também se atribui ao falo a subversão da ordem posta. Uma relação paradoxal, assim como se apresenta nas relações construídas no sincretismo, levando-nos a compreender a constante relação dialética dessa trama social, que se apresenta também ao racismo como funcionalidade de enfrentamento.
Ao considerar essas experiências, os psicanalistas podem abrir novas possibilidades de dar conta de como a prática clínica precisa ser atualizada e atravessada por esta questão. Assim, o racismo não pode ficar como um problema apenas dos negros. Nós todos temos de abrir os ouvidos e perguntar como isso atravessa todos nós, sobretudo quando consideramos que a sexualidade estará diretamente ligada à pulsão de Eros e Tânatos (FONTES, 2008).
Aspectos presentes no cotidiano de todas as culturas negras, sobretudo nos períodos da baixa Idade Média e da Idade Moderna, com as dominações europeias sobre África, onde ser negro ou descendente lhes posiciona numa condição perversa de alvo, levando-os quase sempre a processos em que a única pulsão que se lhes permite é a de morte. A morte da sua dignidade, da sua identidade violada, das suas crenças e, acima de tudo, da sua significação, considerando que, do ponto de vista inconsciente, os estímulos são sempre depreciativos.
Tomando a indicação freudiana de que a psicologia individual seria também psicologia social, e a formulação lacaniana de que podemos considerar o Inconsciente como sendo a Política, acreditamos ser indispensável escutar o sujeito levando em consideração o Outro, entendido do ponto de vista tanto sócio-histórico quanto libidinal. Isso significa que não poderíamos escutar esses sujeitos sem considerar o campo de desigualdades sociais e raciais, no qual estavam inscritas discursivamente, o que nos exigiu uma interlocução fundamental com pesquisas da antropologia social e da história mitológica na sua vida.
Apresenta-se, dessa forma, algo trazido por Pichon (1998) quando nos fala sobre a teoria de grupos operativos, em que as tarefas grupais serão postas e conduzidas por um movimento coletivo. A sexualidade nesses grupos da cultura africana, quando versam sobre criação, nos convoca a perguntar cotidianamente sobre quais estratégias estão sendo criadas para preservação da vida (?), a saber, dos necessários enfrentamentos às diversas violações impostas às mulheres, às pessoas homoafetivas e, por que não dizer, aos que são considerados impedidos de sua sexualidade no sentido amplo, a exemplo dos idosos e das pessoas com deficiências (?).
Ainda tomando da formulação lacaniana, que contribuição essa psicologia moderna tem dado para que tanto Obàtálá quanto Odùdúwà permaneçam e se ressignifiquem na atualidade dando conta da continuidade à convivência nas diferenças humana (?).
Referências
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Endereço para correspondência:
Robenilson Moura Barreto
E-mail: robenilsonbarreto@hotmail.com
Paulo Roberto Ceccarelli
E-mail: paulorcbh@mac.com
Recebido em: 21/02/2019
Aprovado em: 13/09/2019
Sobre os autores
Robenilson Moura Barreto
Psicólogo.
Psicanalista.
Especialista em educação especial e inclusiva.
Mestre em Psicologia.
Pesquisador do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da UFPA (LPPF-UFPA).
Conselheiro Titular do Conselho Regional de Psicologia Pará - Amapá (CRP/10), Belém, PA. (Profissional).
Docente na Faculdade Católica Dom Orione (TO).
Coordenador Regional da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) - Região Norte (ANPSINEP).
Paulo Roberto Ceccarelli
Psicólogo. Psicanalista. Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise - Universidade de Paris 7 - Diderot.
Pós-doutor - Universidade de Paris 7.
Membro da Associação Universitária de Pesquisa em psicopatologia fundamental.
Professor e orientador de pesquisas do Mestrado de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência/MP, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professor e orientador de pesquisas na pós-graduação em psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Professor Adjunto IV da PUC-MG.
Membro do Programa Antártico Brasileiro. Sócio Fundador do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).
Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Membro da Société de Psychanalyse Freudienne - Paris, França.
Diretor científico do Centro de Atenção à Saúde Mental (CESAME: <www.cesamebh.com.br>).
Coordenador do Instituto Mineiro de Sexualidade (IMSEX: <www.imsex.com.br>).
1 Os Iorubás, iorubanos ou nagôs constituem um dos maiores grupos étnico-linguísticos da África Ocidental, com mais de 30 milhões de pessoas em toda a região. Trata-se do segundo maior grupo étnico na Nigéria, correspondendo a aproximadamente 21% da sua população total.
2 Àiyé, Ayé ou Aiye é uma palavra da língua iorubá que, na mitologia iorubá, é a Terra ou o mundo físico, paralelo ao Orun, mundo espiritual. Tudo que existe no Orun coexiste no Aiye através da dupla existência Orun-Aiye.
3 As divindades africanas (Orixás, Voduns ou Inkisis) estão divididas em duas hierarquias no candomblé. Na categoria mais elevada, encontramos as entidades que participaram da criação do universo, consideradas como ancestrais espirituais de tudo quanto possa ocorrer nos dois planos de existência; Orum e Ayê (mundo dos Orixás e mundo dos humanos), chamados, para diferenciá-las das demais, de “Orixás Funfun” (Orixás Brancos). Sendo emanações diretas de Olorun (O criador), os Orixás Funfun são, portanto, os seres mais elevados da escala da existência, encontrando-se no mesmo nível dos Arcanjos do cristianismo. Essas divindades criadoras são dirigidas por Obatalá, o Senhor das Vestes Brancas, também conhecido como Orixánlá ou Oxalá.