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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.42 no.79 Belo Horizonte jan./jun. 2020
TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICAS
O estranhamente infamiliar dos medos1
The strangely (un) familiar of fears
Vanessa Campos Santoro
Psicóloga. Psicanalista. Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
A autora compara a formação de sintomas na clínica psicanalítica da fobia com a verdadeira irrupção do real vista em acontecimentos recentes, como no episódio da mina do Córrego do Feijão em Brumadinho (MG). Lacan trata o Real pelo Simbólico, abordando o estranho familiar [das Unheimliche] em cada um de nós. A capacidade de elaboração do estresse pós-traumático pede não só a palavra que toca o corpo como letra de gozo, mas também a elucidação de pontos da história de cada um que, de uma maneira estranhamente (in)familiar, se fixou em traumas infantis. Esses pontos de real nos deixam agitados e aturdidos. E para eles faltam palavras.
Palavras-chave: Trauma, Formação de sintomas na fobia, Unheimliche, Retorno do recalcado, Letra de gozo, Bordejamento do real pelo simbólico, Estresse pós-traumático.
ABSTRACT
The author compares the formation of symptoms in the psychoanalytic clinic of phobia with the true outbreak of the real seen in recent events, such as in the episode of the Córrego do Feijão mine in Brumadinho (MG). Lacan treats the Real through the Symbolic, approaching the familiar stranger [of the Unheimliche] in each of us. The ability to elaborate post-traumatic stress requires not only the word that touches the body as a letter of enjoyment, but also the elucidation of points in the history of each person, who, in a strangely (in)familiar way, has become fixated on childhood traumas. These points of the Real leave us agitated and stunned. For them, we lack words.
Keywords: Trauma, Formation of symptoms in phobia, Unheimliche, Return of the repressed, Letter of enjoyment, Bordering the real by the symbolic, Post-traumatic stress.
A fobia é uma das manifestações sintomáticas mais frequentes na infância e relaciona-se ao evitamento de um objeto susceptível de desencadear o medo. Revela um modo intenso da perda do lugar que o infantil sujeito ocupa naquele momento diante do Outro.
O não saber sobre seu corpo, seu gozo e, principalmente, sobre a situação de desamparo diante do que o Outro quer de mim traz muita angústia, acompanhando a irrupção do sexual.
Analisando os medos infantis, percebemos que eles surgem em situações como o medo do escuro, o medo de ficar sozinho ou de se perder do outro primordial - a mãe. Ou também na presença de objetos e coisas que cercam o familiar da criança, como medo de cachorro, de bicho de luz, de galinha, de barata, podendo chegar a um sintoma fóbico.
A fobia se manifesta num tempo de estruturação do sujeito como resposta à angústia de castração que emerge nesse momento da estrutura (fase fálica). Ela pode aparecer ou não. O que é fundamental nesse momento é a angústia.
No Seminário 4: a relação do objeto, Lacan ([1956-1957], 1995, p. 211) afirma:
[...] convém separar corretamente a angústia da fobia. Se existem aí duas coisas que se sucedem, não é sem razão: uma vem em socorro da outra, o objeto fóbico vem preencher sua função sobre o fundo de angústia.
E Lacan ([1956-1957], 1995, p. 353) continua:
A angústia não é o medo de um objeto. A angústia é o confronto do sujeito com a ausência de objeto, onde ele é apanhado, onde se perde, e a que tudo é preferível, inclusive forjar, o mais estranho e o menos objetal dos objetos, o de uma fobia.
Assim, o objeto fóbico se articula com a significação fálica, toma um valor significante. É a linguagem que o fornece. Às vezes é o que está mais à mão, ou seja, o familiar, (in)familiar, o doméstico.
O infamiliar é o retorno de algo, principalmente de cunho sexual, que deveria ficar escondido e que volta a incomodar.
Da definição dos Irmãos Grimm, usada por Freud em O estranho ([1919] 1996), tiramos: heimliche é doméstico, familiar, caseiro, aconchegante, secreto, oculto, velado ao conhecimento de fora, relativo à casa, ao lar.
Unheimliche tem várias traduções: estranhamento, sinistro (que ameaça), funesto (cheio de maus presságios), esquerdo (algo que faz parte de nós, mas é visto como um lado cego, reprimido) acidente grave, catástrofe.
Tudo aquilo que era familiar à psique foi reprimido e, ao retornar, é visto como estranhamente familiar. Freud dá o exemplo do trem, onde se assusta com sua própria imagem no espelho da porta.
Assim como o retorno do totemismo na infância origina fobias infantis e acentua o complexo paterno como um complexo de castração, o retorno do animismo na infância desenvolve a consciência moral, a autocrítica e o sentido de auto-ob-servação. A gênese do Supereu parece depender nesse sentido, do cruzamento entre o legado totemista e a superação do narcisismo animista (Dunker, 2019, p. 210-211).
A formação de sintomas fóbicos revela uma enfermidade da metáfora paterna, isto é, a maneira pela qual o desejo da mãe não é, de forma alguma, portador do valor simbólico do falo. O discurso da mãe situa, apenas por sugestão, o lugar do pai como pai. Daí o sintoma fóbico ser uma suplência da metáfora paterna. O modo como o pai é falado pela mãe retira o peso simbólico do pai na palavra da mãe.
No Seminário 16: de um Outro a outro, Lacan afirma:
A fobia não deve ser vista, de modo algum, como uma entidade clínica, mas sim, como uma placa giratória [...] Ela gira mais do que comumente para as duas grandes ordens de neurose, a histeria e a neurose obsessiva, e também realiza a junção com a estrutura da perversão; [...] Ela é muito menos uma entidade clínica isolável do que uma figura clinicamente ilustrada de maneira espetacular, sem dúvida, mas em contextos infinitamente diversos (Lacan [1968-1969] 2008, p. 298).
O estresse pós-traumático
O conceito de estresse pós-traumático é objeto de estudo tanto pela medicina quanto pela psicologia. Faz parte da DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) e, pelo menos temporariamente, incapacita o indivíduo para exercer suas funções no trabalho (saúde mental do trabalhador).
O recente episódio do rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale, em Brumadinho (MG), com quase trezentas mortes e destruição do Rio Paraopeba, em 25 de janeiro de 2019, pôs em relevo a fragilidade e a ineficácia de um sistema extrativista exercido amplamente nas Minas Gerais e aterrorizou a todos pelas proporções do acontecimento.
Mais que o Schreck (susto), o tsunami incontrolável de lama com resíduos tóxicos lavou parte de uma cidade, as dependências da mineradora e o Rio Paraopeba, tornando-o impróprio à vida.
O que vimos foi uma verdadeira irrupção do Real, ou seja, mortos, muitos deles esquartejados pela força de destruição do rio de lama. Indizível. Faltam palavras. E quando elas vêm, também estão contaminadas pela raiva, pela desorientação e todo o imaginário fantasioso com o qual tentamos bordejar a pulsão de morte.
No resgate das vítimas e, trabalhando incessantemente há quatro meses, estiveram os bombeiros que recebem acompanhamento médico e psicológico desde então. E muitos deles chegaram a nossos consultórios, na tentativa de pôr palavra onde só havia destruição e morte.
O trabalho de resgate de vítimas e de corpos foi intenso nos primeiros meses. No consultório, os bombeiros atendidos relatavam minuciosamente o vivido, repetindo as façanhas de salvamento e o horror das mortes. Corpos despedaçados, casas, ponte, estrada, cidade, tudo soterrado pelo mar de lama. Tudo era falado exaustivamente. Eles estavam presos às cenas traumáticas e só falavam delas.
O drama dos familiares desaparecidos, a esperança de encontrar um parente com vida, a luta para identificar corpos e enterrar os mortos, tudo isso repetido inúmeras vezes por aqueles homens valentes e acostumados com fogo, incêndio e devastação.
Na escuta, além dos relatos, os psicanalistas pinçaram pontos da história de cada sujeito. Relatos da infância, medos e outras situações traumáticas vividas começaram a aparecer e, de maneira estranhamente (in)familiar, se fixar em traumas infantis.
Esses pontos de Real retornavam com força diante da catástrofe, muitos deles como impressões, outros como traços. Todos indizíveis, trazendo muita angústia. À medida que se pôde pôr em palavras essa angústia tão antiga, houve uma melhora daqueles sujeitos. Passaram a dormir, tranquilizavam uma agitação constante denominada por eles de "sempre alerta", diminuindo os sintomas corporais de cefaleia e dores estomacais.
Embora as buscas estejam no fim, tem acontecido um fenômeno ainda por entender: muitos dos bombeiros se recusam a abandonar o local de trabalho e continuam a procurar na lama algum sinal de vida ou resgatar pedaços de corpos.
Conforme o DSM-IV os transtornos do estresse pós-traumático (TEPT) se referem à exposição a eventos traumáticos em que a pessoa foi confrontada com a morte ou grave ferimento em si, ou em outras pessoas, com resposta de intenso medo, impotência ou horror.
O evento traumático é revivido em recordações aflitivas recorrentes e intrusivas, e em pesadelos. Um fenômeno paradoxal é a reexposição compulsiva a eventos potencialmente traumáticos.
A diferença principal entre o tratamento psicanalítico e o cognitivo - com-portamental usado para o TEPT é o uso que se faz da linguagem. A proposta do segundo é que o estressado passe a falar imediatamente depois do ocorrido para ultrapassá-lo e se curar, restabelecendo seu eu cognitivo.
Há novas pesquisas que apontam "post traumatic growth".
Na psicanálise, falar é muito importante para conter o desamparo e o horror radical vivido no trauma. Mas é preciso tomar a fala pelos furos, e não pela clareza da comunicação. A psicanálise parte do pressuposto do impossível de dizer - o Real. Falar do trauma é construir bordas em torno do impossível de dizer.
O que é trauma para a psicanálise? O trauma é o encontro com o Real do sexo e o Real da morte, ambas figuras do impossível de representar no Simbólico. O encontro com o Real da castração. O trauma vem sempre a posteriori, quando, numa repetição, já no Simbólico, a cena traumática é retomada e ressignificada, entrando na cadeia significante com seu peso de trauma, isto é, o que excede às representações.
Para Freud, o traumático é não a cena, mas a lembrança a posteriori da cena que faz um efeito de gozo e da qual nos defendemos fazendo sintoma.
O trauma se apresenta. O trauma não se representa. O trauma é o que não pode ser ligado e integrado nos sistemas mnêmicos. É o não representado ou o insuficientemente representado, que afeta sempre o equilíbrio narcisista.
Para Freud, o trauma é mobilizado pelo encontro com das Ding - a Coisa externa ao corpo, que o leva a falar.
Lacan retira daí outro conceito: o de objeto α - resto inassimilável do encontro da carne com a linguagem.
O trauma é uma experiência de não saber. O saber administra o gozo. Ao se perder o saber, fica-se à mercê de uma experiência de gozo ameaçadora. Freud abandona a teoria da sedução e investe na fantasia.
E Lacan ([1967] 2003, p. 259), em Proposição de 9 de outubro de 1967, afirma que o fantasma é a janela para o Real. Fantasma fundamental é uma matriz imaginária, na qual o sujeito se posiciona frente ao enigma do desejo do Outro e dos gozos envolvidos, dando uma resposta a esses enigmas, que vão coordenar sua construção da realidade e a formação de seu mundo simbólico durante toda a vida.
Notamos como a história de cada um dos bombeiros influiu na elaboração do trauma.
Segundo Fernando del Guerra Prota, entender quão neurótico é um indivíduo tem relação ao quão pouco um indivíduo confia no seu fantasma como fonte de garantia para a constituição da realidade.
No TEPT não há um movimento dialético, uma significação de algo anterior. Há um transbordamento quantitativo, que fica além da realização simbólica do trauma.
Não há uma subjetivação da mesma situação, como ocorre nas lembranças encobridoras, quando uma cena infantil é retomada e vivida e não mais como apenas objeto de uma ação.
É que no TEPT o indivíduo vive uma experiência intensa de ser colocado na posição de objeto de gozo do Outro.
Então, além da insuficiência do simbólico para bordejar esse Real intrusivo, temos a própria realização fantasmática radical, fixando um gozo mortífero, impedindo que o trauma se torne memória, ficando sempre no tempo presente, reatualizado compulsivamente.
Lacan trata das reminiscências como letras, peças avulsas cheias de gozo, que podem entrar no trabalho de rememoração, abrindo novas vias de circulação para o indizível, não tanto pelo que guardam de verdade, mas pelo gozo que escoam.
Cada um responde aos novos desarranjos do real a partir de seu sinthome muito mais do que aos acontecimentos inesperados ou violentos.
Pensamos que o trauma reatualizado no TEPT encontra dificuldades de ser simbolizado, mas é absorvido pelo fantasma do sujeito, fixando sua posição de gozo.
Temos, por um lado, a angústia diante da intrusão do que se reproduz e, por outro, a fascinação pela cena traumática inicial, a fascinação pelo horror (facínora...).
Conclusão
Na definição de Unheimliche temos: sinistro acidente grave, catástrofe. Aí pensamos em trauma e no episódio de irrupção do Real, em Brumadinho, esse conto de terror dos tempos modernos.
Outra definição de Unheimliche privilegia o estranhamento, o esquerdo, como algo que faz parte de nós, mas é recalcado, podendo retornar via inconsciente nos sintomas, como a fobia. No trauma, a angústia é de morte e, na fobia, é angústia de castração - dentro da cadeia significante Simbólico/Imaginário. Para não desorganizar o aparelho psíquico, fazemos sintoma. Trauma está fora da cadeia significante, invasão do Simbólico pelo Real.
Depois do trauma não existe mais o sujeito não traumatizado, e ele tem que se posicionar no mundo a partir disso. Há uma posição de intensa fixação pulsional, de empuxo a gozar desses sujeitos e da certeza da perversidade do Outro. Daí as repetições que paralisam a vida do sujeito, trazendo reações agudas ansiosas, crises de pânico e, no melhor dos casos, o estranhamente infamiliar dos medos. φ
Referências
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Endereço para correspondência:
E-mail: vansantoro@uol.com.br
Recebido em: 10/03/2020
Aprovado em: 03/04/2020
1 Trabalho apresentado no X Fórum Mineiro de Psicanálise. Divinópolis (MG), 12-13 jul. 2019.