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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.79 Belo Horizonte jan./jun. 2020

 

PSICANÁLISE E CULTURA

 

Uma lei incompreendida: o dilema ético e moral de Heloise1

 

An unprecised law: the ethical and moral dilemma of Heloise

 

 

Otacílio José Ribeiro

Psicanalista. Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Correspondência

 

 


RESUMO

Este texto mostra aspectos metapsicológicos de Heloise, protagonista feminina do filme Em nome de Deus. A produção cinematográfica retrata o dilema ético e moral da personagem que não se resigna diante da sociedade moralista e conservadora do século XII. Por ser incompreendida, ela vive o conflito com a lei. O problema ético observado está centrado no "abrir mão de seu desejo", provocando sintomas em Heloise (Lacan, [1959-1960] 1997), p. 382). É necessário construir um novo tipo de engajamento, buscando na história indícios de sinthoma. Quais as possibilidades para que uma nova Heloise possa se haver com sua instância superegoica a partir de seu Id, tornando possível desabrochar novamente o seu Ego? Nesse viés, o sentido deste texto é abrir a discussão sobre a contribuição do saber psicanalítico no erigir de uma ética para a sociedade contemporânea que possa contribuir para a criação de valores éticos que levem em conta o desejo dos sujeitos.

Palavras-chave: Ética, Moral, Desejo, Superego, Amor.


ABSTRACT

The text discusses metapsychological aspects of Heloise, female protagonist of the film In the name of God. The cinematographic production portrays the ethical and moral dilemma of the character who is not resigned to the moralist and conservative society of the 12th century. Because she is misunderstood, she lives in conflict with the law. The observed ethical problem is centered on "giving up your desire", causing symptoms in Heloise (LACAN, [1959-1960] 1997), p. 382). It is necessary to build a new type of engagement, looking for signs of sinthome in history. What are the possibilities for a new Heloise to deal with her superegoic instance from her Id, making it possible to unfold her Ego again? In this bias, the meaning of this text is to open the discussion about the contribution of psychoanalytic knowledge in the erection of an ethics for contemporary society that can contribute to the creation of ethical values that take into account the subject's desire.

Keywords: Ethics, Moral, Wish, Super ego, Love.


 

 

Introdução

Causado pela referência a Abelardo feita por Lacan no Seminário 7: a ética da psicanálise ([1959-1960] 1997, p. 383), mais precisamente em Os paradoxos da ética, buscou-se a história do filósofo medieval do século XII a partir do filme Em nome de Deus. A narrativa cinematográfica apresenta o drama amoroso vivido com Heloise, discípula, companheira e amante de Abelardo, numa história que perpassa vida religiosa e os exercícios de filosofia.

Recortam-se neste texto aspectos da posição subjetiva de Heloise, tomando vinhetas do filme. Sabe-se da existência de correspondências trocadas entre a mulher e seu amado; porém, procura-se ater aqui ao conteúdo da produção cinematográfica.

Trata-se da história de um amor interditado, proibido. Abelardo havia feito voto solene e ideal com Deus, que lhe dera o dom de ensinar filosofia e teologia.

Para ele, tudo vinha de Deus. Tudo era divino. Heloise entra na vida de Abelardo altercando, levantando questões sociais e políticas, irritando-se com a exploração do outro, do pobre, do excluído.

Em um debate religioso entre os protagonistas sobre o Velho Testamento e o Novo Testamento, a jovem mulher apresenta exemplos de contradições na lei e contrapõe o Deus vingativo e o Deus amoroso. Ela procura a verdade e questiona os fatos. E vê em Deus a felicidade independentemente dos meios. No contraponto, o professor incorpora o paradigma típico da Idade Média com um Deus Todo-Poderoso, tirânico, único e salvador.

A partir de discussões acaloradas, nascem o respeito, a admiração, o amor e o sofrimento entre ambos. A religião e a tradição os impedem de ficar juntos. Abelardo deveria ser solteiro para realizar e legitimar seu trabalho de professor. E Heloise só poderia se casar com alguém que a sua família escolhesse.

Qual era a concepção de amor que havia entre o casal? Para Abelardo, o amor se tratava de prazeres e desejos; era algo errado e condenado por Deus. Em Heloise o amor era ampliado e não considerava a repercussão dos fatos ou o juízo dos outros; o sexo acontecia entre pessoas que se amavam.

As duas concepções coexistiam dentro de uma sociedade conservadora, em que o sexo deveria acontecer na constância do casamento. A sexualidade era reprimida no século XII; a virgindade, o celibato e a castidade eram regidos por normas rigorosas que deveriam ser vividas por todos os cristãos. O paradoxo entre os dois não os impedia de estar juntos, persistentes e fiéis. Eles se encantaram um pelo outro e se apaixonaram por suas características pessoais; encararam as dificuldades e lutaram cada qual a seu modo pelo amor proibido.

A mentalidade obsessiva da época dominava a vida das pessoas com o rigorismo moral. Os protagonistas transgrediram a lei, e a punição de Abelardo foi a castração. Por conveniência de ambas as partes, num gesto de renúncia ao desejo, Abelardo e Heloise se afastam, tornando-se monge e freira, carregando a dor e a culpa de seus atos.

 

Um olhar psicanalítico

A pessoa é para o que nasce.2 Heloise3 carrega no nome a marca da saúde, da coragem e da bravura. Ela se apresenta combatente e guerreira, à frente de seu tempo, dividida entre a lei e o desejo. A também filósofa vive seu dilema ético e moral dentro de um sistema déspota e algoz da lei vigente que ela não compreende e interroga, procurando romper com normas, costumes e regras estabelecidas. Pode-se perceber na sua história o ideal de quebra da moral do propósito,4 da reciprocidade e do contrato, numa perspectiva de desconstrução.

Um olhar contemporâneo para a Idade Média permite ver a mulher num viés desconstrucionista, aquilo que Jacques Derrida aponta como aporia do tempo e da lei.5 Ou seja, pode-se ver Heloise travestida de Eva (mulher pecadora) em contraponto à idealizada Virgem Maria (mulher santa) que a sociedade medieval impunha como modelo.

Generalizando, o conflito externo e interno de Heloise reverbera nos processos de significação e constituição dos sujeitos e nas suas interações simbólicas daquele contexto histórico até os dias de hoje. Num processo neurótico, lei e desejo se opõem e duelam, caracterizando um sofrimento psíquico singular que questiona a ética e a moral vigente.

O que a psicanálise tem a ver com o Isso ou com o Id? O sofrimento da protagonista é extremamente atual, na medida em que não é tratado aqui como um fato histórico, mas um mal-estar que assola a subjetividade. Lacan ([1959-1960] 1997) propõe pensar a psicanálise a partir da ética, introduzindo o sujeito na ordem do desejo, num processo pelo qual o indivíduo se apropria da experiência vivida.

Com espaço para uma operação analítica significativa, abrem-se possibilidades para que uma nova Heloise possa se haver com sua instância superegoica a partir do Id, e o Ego possa desabrochar novamente.

Nesse viés, o sentido deste texto é abrir a discussão sobre a contribuição do saber psicanalítico no erigir de uma ética para a sociedade contemporânea que possa contribuir para a criação de valores éticos que levem em conta o desejo dos sujeitos.

Há que entender aqui ética enquanto princípio do respeito à origem ontogenética do ser humano, em sua essência mais intrínseca, ou seja: (1) enquanto forma de conhecimento das necessidades e dos desejos dos indivíduos; (2) enquanto orientação racional da ação (através da vontade) a partir do conhecimento racional dessas necessidades.

Em síntese, conforme Henrique Vaz (1997), a ação do indivíduo aponta não apenas para o passional humano (o sentir, epitymia) como também para a condição intelectual de escolha (o racional, boylesis), vetores para o autoconhecimento, a autonomia e a liberdade.

 

Discussão

Uma cena do filme merece registro: período natalino, o beijo como imperativo da tradição, praticamente lei, mas, mais do que isso, talvez a sagração do amor entre Heloise e Abelardo: "Somos um, para sempre", ela diz. Na sequência, apresenta-se uma revoada de pombas. "A pena da pomba significa amor; quero uma. Será minha relíquia sagrada". "Proclamo este dia como um dia sagrado, pois nunca poderei ser mais feliz do que sou". A fala da mulher sugere votos de núpcias e amor eterno.

Mas a felicidade, se existe, é da ordem da incompletude, do não-todo. No meio do caminho havia a lei moral e o celibato. Havia Abelardo, suas concepções, seus embates teológicos e suas contradições. O homem pensava nos prazeres da carne. Uma carne que cheirava a incenso e igreja. Casaram-se em segredo, para não manchar o prestígio de Abelardo.

Um professor casado, amarrado ou consorciado não tinha a legitimidade de um solteiro, de quem se esperava a dedicação exclusiva ao conhecimento privilegiado pela igreja. Surgem a castração real e a separação. O casal é separado: ele se refugia em um mosteiro e faz com que ela se retire em outro. Distanciam-se como monge e freira. Ele propõe a aceitação; ela, a resistência. Ela procura a coerência de seus ideais; dentro de si pulsa um fogo ardente, incompatível com o exercício de sua liberdade, de ser reduzida à ficção de esposa de Cristo. Dificuldade, impasse, paradoxo, dúvida e incerteza convivem com a contradição. A mulher vive o estranhamento e questiona, quer saber de si, reivindica o que não tem. Contestadora, ela quer que o amante a deseje e reclama. Aparece o sintoma de como lidar com a falta-a-ser dentro de uma estrutura social e religiosa rígida. Ela permanece na insatisfação histérica. Seu desejo passa pelo desejo de Abelardo, o Outro.

Heloise se opõe à penitência humilde de Abelardo, castrado e resignado. O conflito da então freira persiste diante da renúncia do amado. Ela manifesta para ele o quanto sua conduta de mosteiro era incoerente com a sua vivência interior: um amor massacrado, mas de uma fidelidade inabalável.

Vem de Winter (2001, p. 12) a questão:

Como é possível, hoje mais do que ontem, continuar a ignorar que não estamos ali onde agimos, que não estamos ali onde pensamos, que ali onde estamos não pensamos?

O conflito interno é obnubilado pela azáfama do trabalho no mosteiro, numa tentativa, quiçá, de sublimar o propósito originalmente sexual por algum outro, diz Freud ([1908], 1994) no seu texto Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna.

Mendes (2011, p. 56) vem dizer da necessidade de contato com as pulsões perigosas e destrutivas para o ego.

A sublimação não livra do sofrimento humano [...] a maior ou menor distância dessas fontes pulsionais é que vai trazer ou não o equilíbrio psíquico para o sujeito.

Heloise fica na balança. A operação simbólica de desmontagem da pulsão deixa resto, um a causa de desejo, um mais de gozar (Lacan, [1957-1958] 1998). A protagonista está sempre requerendo, sempre buscando, sempre buscando mais. Nesse imbróglio seu Superego transita rígido, impondo-lhe um autocastigo ligado ao universo de falta. A inconstância afetiva perdura: a mulher vive uma lei insensata, desprovida de sentido e incompreendida que estabelece um mal-estar dentro de si.

Da leitura de Ambertín (2009, p. 107), pode-se inferir de Heloise um Superego situado entre duas instâncias: a primeira como herdeira do Édipo, da interdição, da norma; a segunda, ligada ao Id, aquela que autoritariamente está sempre mandando que o desejo seja atendido. O Superego, aqui, é um resíduo das primeiras escolhas objetais do Id e se forma como uma enérgica formação reativa ao Id.

No primeiro caso, na relação com a lei, quanto mais forte foi o complexo de Édipo, tanto mais rapidamente ocorreu o seu recalque; o Superego terá o domínio sobre o Ego como consciência moral. E na oposição de forças entre Superego e Id, quanto maior for o rigor da lei, mais enfraquecido o Ego se apresentará. E a culpa entra em cena, na medida em que o sujeito cedeu de seu desejo, conforme ensina Lacan ([1959-1960] 1997, p. 382).

 

Finalizando...

O que pode o conflito edípico vivido por Heloise ensinar para a contemporaneida-de? O que a psicanálise tem a ver com isso? Para alçar lugares como sujeitos capazes de enfrentar os novos desafios, as 'novas Heloises' precisam construir um novo tipo de engajamento, buscando em sua história indícios de produção de sinthoma, observando uma organização subjetiva não mais pautada pela matriz edípica (Lacan, [1975-1976], 2007).6

Nessa perspectiva, em que a Lei do Pai não é mais a fundadora, importam as manifestações escritas em si e não as razões que as motivaram. Quando o Ego não consegue dominar seu complexo investimento de energia, que vem do Id, ele volta a operar na formação reativa do ideal do Ego. A profusa comunicação entre esse ideal e as pulsões inconscientes resolve o enigma de o ideal mesmo poder ficar grande parte inconsciente ao Ego.

Voltemos à heroína. Em seu leito de morte, Heloise toma suas últimas forças e quebra o crucifixo, relicário de seu amor. Recupera seu amor sacramentado no objeto 'pena'. Aquela pena de pomba na qual um dia depositara seu amor, tratando-a como relíquia sagrada, carregando-a até o fim de sua vida envelopada no crucifixo. Um amor crucificado. Agora, já no dealbar da morte, ela rompe com o crucifixo e toma para si apenas o amor, a essência do crucifixo, a pena do amor que lhe trouxe dor. Para sempre Heloise fica na esperança de estar novamente na cama de Abelardo.

É o fim. É o começo. Ao rechaçar o crucifixo na parede talvez Heloise tenha se deparado com o seu dilema ético e moral dentro de uma lei incompreendida, vivendo a culpa de abrir mão ou de "ter cedido de seu desejo". A passagem ao ato escandaliza, mas pode ser interpretada também como um gesto de encontro com suas convicções, que podem ser traduzidas como ideais: ideal do amor humano, da autenticidade, de não dependência ou profilaxia da dependência (Lacan, [19591960] 1997, p. 382).

Diz o poeta compositor Almir Sater: "É preciso amor, pra poder pulsar". E He-loise pulsou o encantamento de seu amor até o fim. Sua vivência pode reverberar nos dias de hoje, trazendo para as novas Heloises a necessidade de aprender com a experiência do inconsciente e com a ética da psicanálise, introduzindo-as na ordem do desejo, levando-as em sua singularidade a viver o paradoxo da ética, perguntando-se continuamente, parafraseando Lacan ([1959-1960], 1997, p. 373): "agi em conformidade com o meu desejo"? φ

 

Referências

BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.         [ Links ]

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EM NOME de Deus. Direção: Clive Donner. Produção: Susan George, Simon MacCorkindale e Andros Epaminondas. EUA: Amy International/ JadranFilm, 1988.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
Otacílio José Ribeiro
E-mail: <jota@larnet.com.br>

Recebido em: 03/03/2020
Aprovado em: 03/04/2020

 

 

1 Texto apresentado na XXXVI Jornada de Psicanálise do CPMG. Belo Horizonte, 27-28 set. 2019. Agradeço ao Grupo de Estudos e de Produção (2019) do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, coordenado por Messias Eustáquio Chaves.
2 Referência ao filme A pessoa é para o que nasce. Documentário de Roberto Berliner. 6 min. Subgênero: Drama. Brasil, Rio de Janeiro: 1998. Disponível em: <http://portacurtas.org.br/filme/?name=a_pessoa_e_para_o_ que_nasce>. Acesso em: 14 ago. 2017.
3 Dicionário de nomes próprios. <https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/heloisa>. Acesso em: 30 jul. 2019.
4 Moral do propósito: Para Abelardo, o filósofo, o agir ético é regulado por uma lei, no caso, a Lei de Deus. O pensamento é livre, mas não o é a sua expressão. Ou seja, o problema ético está centrado no obedecer aos próprios desejos e não atender à lei divina (Reale; Antiseri, 1990; Le Goff, 2003).
5 Desconstrução e aporia: Conceitos do filósofo contemporâneo Jacques Derrida imbricados na percepção de mundo que baseia o paradigma da complexidade. A desconstrução aponta para novas possibilidades e articulações, contrapondo-se ao niilismo, salvo melhor juízo. Aporia faz referência à dificuldade ou dúvida racional decorrente da impossibilidade objetiva de obter resposta ou conclusão para determinada indagação filosófica. Bauman (2004) busca esclarecer, registrar e apreender de que forma o homem sem vínculos - figura central dos tempos modernos - se conecta (Bauman, 2003, 2004; Maturama, Varela, 2001; Morin, 2005; Comte-Sponville, 2003).
6 "Da solução do sintoma ao sinthoma como solução": O sintoma é o mal do qual o sujeito quer se livrar, como consequência do encontro com a castração. O sintoma carrega em si o conflito gerado pela necessidade de satisfação da libido e as proibições internas e externas. Contudo, sempre há um resto não realizável; portanto, temos que viver com ele. Por mais longe que o sujeito leve sua análise, por mais que se reduza o gozo, restará o sinthoma como modo de gozo (Santiago, 2015, p. 163, 168).

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