SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 número13A fantástica viagem da locomotiva “Freud explica!” rumo ao umbigo dos sonhos...Mas o que há em um nome? índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.13 São Paulo jun. 2004

 

RESENHAS

 

 

Maria Celina P.S. Anhaia Mello1

Endereço para correspondência

 

 

SILVA, Maria Cecília Pereira da. A herança psíquica na clínica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 188p. ISBN 8573962550.

A temática central desse livro – a herança psíquica – é central nas tragédias e na própria psicanálise, como bem ressalta João Augusto Frayze-Pereira em seu primoroso prefácio ao trabalho de Maria Cecília.

A questão da herança transgeracional e intergeracional, lembra ele, “é um aspecto próprio das tragédias clássicas que são sempre trilogias, desenvolvidas a partir de um mesmo núcleo – o crime terrível no interior da família e que exige vingança, com outro crime sangrento, que pedirá nova vingança, sem a possibilidade de findar a sucessão dolorosa das mortes. Nesse sentido, o discurso de Édipo, por exemplo, é discurso de outro, que remete a outro, que remete a outro, numa articulação sem fim, que remete por sua vez a uma comunidade de homens, deuses e semideuses, cujas origens confundem-se com o próprio mito da criação do mundo”.

Tendo em mente este enfoque, a autora desenvolve seu trabalho considerando a historicidade do sujeito e a história de suas relações como fator primordial na compreensão do sofrimento psíquico.

Psicanalista de formação marcadamente kleiniana e neo-kleiniana, com influência da teoria dos campos, a autora privilegia a história familiar e a concretude dos objetos externos a partir da experiência clínica, baseando-se em relatos de pacientes, nos quais nem tudo era fantasia, nem tudo era sonho. Nos momentos transferenciais observados, a realidade impunha-se, e a relação com os objetos externos era inundada por identificações projetivas ou intrusivas. Muitas das experiências emocionais relatadas eram vivências factuais e traumáticas, que não se configuravam como fantasias. Maria Cecília busca então, em seu trabalho, reconhecer e discriminar o lugar ocupado por esses objetos externos na vida mental de seus pacientes para, a partir de um processo de desidentificação, fazer emergir o mundo de fantasias e dar curso ao processo analítico clássico.

E é aí que se revela a sensibilidade clínica e a capacidade investigativa da autora. É a prática clínica que a leva a ampliar a compreensão do psiquismo, considerando a historicidade do sujeito, principalmente o que é transmitido de geração em geração, dando outro estatuto à influência dos objetos parentais e do meio ambiente na constituição do psiquismo.

Segundo a autora, uma herança transgeracional é constituída de elementos brutos, transmitidos como tal, marcados por vivências traumáticas, não-ditos, lutas não elaboradas. A transmissão transgeracional refere-se a um material psíquico inconsciente, que atravessa diversas gerações sem ter podido ser transformado e simbolizado, promovendo lacunas e vazios na transmissão e impedindo uma integração psíquica.

A transmissão intergeracional, por sua vez, engloba tudo que é transmitido de uma geração para a outra, acompanhada de algumas modificações ou transformações. A herança intergeracional é constituída de vivências psíquicas elaboradas: fantasias, imagens, identificações, que organizam uma história familiar, uma narração mítica, da qual cada indivíduo pode extrair os elementos necessários à constituição de sua história familiar individual neurótica.

O material psíquico dessa transmissão constitui o objeto transgeracional; aquele que se coloca como objeto de um outro, fala de um ancestral, de um parente de gerações anteriores, que oculta fantasias, provoca identificações, intervém na constituição de instâncias psíquicas.

A transmissão dos objetos transgeracionais e intergeracionais, acredita a autora, dá-se a partir de mecanismos de identificação, podendo ser observados na identificação projetiva patológica, maciça ou intrusiva.

Por meio desse processo a autora chega ao conceito de identificação mórbida, carregada de elemento transgeracional e patológico em si. Cabe então ao analista desenrolar esse emaranhado de elementos inconscientes, libertando o paciente da trama.

Privilegiando os mecanismos de identificação mórbida presentes nos fenômenos transgeracionais, Maria Cecília apresenta três exemplos de sua experiência clínica.

No capítulo I descreve uma intervenção precoce realizada por meio de quatro consultas terapêuticas, em função de um transtorno de sono apresentado por Maria Clara, um bebê de um ano. Vale ressaltar que essas consultas terapêuticas consistem em observações pluridimensionais, que permitem observar os sintomas do bebê, sua modalidade de funcionamento, os fenômenos de interação que caracterizam a relação mãe-bebê-pai-família, as características do entorno dos cuidados maternos, as personalidades da mãe, do pai, de sua família em seu conjunto, e finalmente a dimensão sócio-cultural.

No capítulo II encontramos a descrição do trabalho analítico com três pacientes adultas, em que se observa como a identificação com um objeto materno indeterminado ou deprimido e/ou com um objeto paterno cruel estabelece relações de objeto de mesmo caráter, representando-se na relação transferencial analítica. Do ponto de vista da autora, o resultado das identificações mórbidas impediram-nas de con-tar com um objeto bom e confiável, situação que se atualiza como desconfiança na relação analítica.

No capítulo III é descrito o caso clínico de uma adolescente atendida em um setting institucional, um hospital-dia. Temos a narrativa da história clínica de uma paciente psicótica, com um self parasitado por outrem, e a busca de reconstrução do sintoma.

O método psicanalítico mantém-se nos três settings relatados – intervenção precoce, atendimento familiar e análise quatro vezes por semana –, nos quais vemos emergir o material inconsciente e transferencial, e uma escuta singular que pôde tomá-los em consideração.

Em todas as situações clínicas descritas, Maria Cecília observa identificações mórbidas, seqüelas de duplas mensagens, mensagens não-verbais ou infraverbais resultantes de pactos inconscientes.

A autora brinda-nos – em um texto claro, direto, bem escrito – com reflexões sobre fenômenos transgeracionais, os quais considera transformadores e reveladores de uma dimensão histórica do ser humano, podendo enriquecer a compreensão do sofrimento psíquico, integrando na vida mental dos pacientes seus aspectos secretos, ocultos, enigmáticos, ou sem representação psíquica.

Maria Cecília chama nossa atenção para as identificações mórbidas que podem habitar ou parasitar o self, impedindo ou interditando a constituição de uma estrutura psíquica própria e autônoma, e que demandam uma intervenção psicanalítica que leve o sujeito a poder desidentificar-se, para que o brincar e o sonhar possam emergir.

A autora preocupa-se também com a transmissão da psicanálise, discutindo a importância de se considerar os fenômenos transgeracionais transmitidos na formação psicanalítica, na qual considera a necessidade de desindentificação dos pais-mestresanalista para o vir a ser psicanalista.

A leitura do texto de Maria Cecília oferece-nos, por fim, a possibilidade de aprofundamento na busca da compreensão da alma humana, e de aproximação de um trabalho clínico extremamente rico e diversificado.

 

 

Endereço para correspondência
Maria Celina P. S. Anhaia Mello
E-mail: ceanhaia@terra.com.br

 

 

1Psicanalista; Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise; Membro do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae.