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Psychê
versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.10 n.19 São Paulo dez. 2006
RESENHAS
Mario Giampà1
Società Psicoanalitica Italiana
CASTELO FILHO, Claudio. O processo criativo: transformação e ruptura. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. 252 p. ISBN: 8573963964.
É notório que o pensamento psicanalítico de Wilfred R. Bion, particularmente aquele que lemos em Attention and Interpretation, em The Grid e em Cogitations, seja um constante ponto de referência para o autor: a metodologia de pesquisa baseia-se nesse pensamento. Os conceitos principais utilizados na pesquisa são: Narcisismo e Social-ismo, Reverie, Função Alfa, Função do Sonho em Bion, Posições esquizo-paranóide e depressiva de Melanie Klein, Identificação projetiva, Uma teoria sobre o Pensar, Continente e Contido, a Teoria das Transformações, o Gênio, a transformação em O e em K.
Mas o que é primordial na operação do processo criativo, e que o autor considera uma descoberta de Bion, são as transformações projetivas, em alucinose e em O: no estrato criativo, a capacidade para intuir e alucinar estará a serviço de uma adequada representação e da comunicação daquilo que foi intuído (p. 23). Esses conceitos servem para uma equilibrada avaliação “do processo criativo” de alguns escritores, pintores, dramaturgos, cientistas: Sófocles (Édipo Rei, Antígona), Eurípedes (As Bacantes), Hesíodo, Galileu, Copérnico, Colombo, Karl R. Popper, o estudioso dos mitos Jean-Pierre Vernant, Hannah Arendt, Gaston Bachelard; o dramaturgo norte-americano Sam Sheppard, Pirandello, Marcel Proust, Franz Kafka, Tomasi di Lampedusa.
O autor do ensaio é Claudio Castelo Filho, artista plástico, pintor, desenhista e também psicanalista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), com doutorado (PhD) em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Para o autor, seu trabalho é “uma abordagem psicanalítica das obras de arte e da produção cultural” (p. 18), utilizando uma definição de André Green, (2002, p. 307).
Segundo minha opinião, ele explora a área da “memória sonhante”, a “dream-like memory” (“a lembrança oniróide”), de Bion (1991, p. 80), e como decorrência, encontramonos experimentando emocionalmente o perturbador que é a “turbulência emocional”. (Bion, 1977) [cancelar: 1989)]. Portanto, podemos ter uma sensação de nos encontrarmos fora do tempo real; não por acaso, “o trabalho ocorre na área do finito/ infinito, como se poderá verificar na leitura desta obra” (p. 16).
Um outro conceito utilizado por Castelo Filho é o de “figuração” (p. 18), tomado de empréstimo a Norbert Elias (2001): os “gênios” não são isolados do grupo mas possuem a capacidade de se valerem do contato com o grupo para transformarem as expectativas do grupo sobre eles, sobre o próprio grupo, e por conseguinte, mudando o curso da história dando uma “figuração” própria. Norbert Elias estudou a “figuração” mais especificamente no comportamento de Luís XIV em meio aos confrontos da aristocracia em sua corte.
Sobre o “processo criativo” Castelo Filho relata o comportamento de dois escritores: Pirandello escreve sobre um cartaz afixado na porta de seu escritório, que continha a seguinte mensagem (Colloquio con i personaggi): “Suspensas, a partir de hoje, as audiências a todos os personagens, homens, mulheres, de qualquer classe social, de qualquer idade, de qualquer profissão, que fizeram o pedido e apresentaram qualificações para serem admitidos em algum romance ou conto”.
A escritora Lygia Fagundes Telles afirmava que não criava os personagens, mas eles se criavam e se impunham a ela. Esses personagens tinham uma existência própria e ela dialogava com eles.
O certo é que no ensaio O processo criativo: transformação e ruptura, a idéia de uma razão capaz de dominar o acesso ao real é perdedora. A esse texto, poliédrico, que abarca o universo mental, acrescentase a afirmação de Salvatore Natoli, quando escreve que vivemos no paradoxo, (palavras dele): “a realidade é sempre de alguma maneira inventada, a aparência é, de alguma maneira, real” (2004, p. 28).
Desta aparência está ciente o autor quando escreve que é “paradoxal perceber que a maior parte dos seres humanos consegue imitar o que seria um ser humano, sem atingir tal condição efetivamente, pois, muitas vezes, o próprio indivíduo não tem consideração real pela própria humanidade” (p. 110).
Uma tese deste ensaio é que não se capta a realidade com métodos racionais (p. 12). A esse propósito, Giulio Giorello e Renato Pettoello, no prefácio à edição italiana de From a logical of view: nine logico-philosophical essays, de W. V. Quine, escrevem: “a teoria do conhecimento tem origem na dúvida, no ceticismo. (...) Mas esta é entretanto a metade de uma estranha interação entre a dúvida e o conhecimento. A dúvida estimula a teoria do conhecimento, sim, mas é o conhecimento, reciprocamente, que estimula a dúvida” (Quine, 2004).
“Ceticismo” é desconfiança, impossibilidade de alcançar um conhecimento absoluto das coisas. Desconfiança é a “Capacidade Negativa, ou seja aquela capacidade que um homem possui, se souber manter-se nas incertezas, através dos mistérios e das dúvidas, sem deixar-se levar por uma agitada busca de fatos e razões” (Attention and Interpretation, p. 169), qualidade que o poeta Keats reconhecia em Shakespeare.
Segundo Castelo Filho, para não se deixar levar por uma agitada busca de fatos e razões, e para fugir da dúvida que estimula a teoria do conhecimento, é necessário haver pouca memória dos fatos e pouco desejo. Algo similar ao que Freud fazia: “encontrei uma saída renunciando a qualquer atividade mental consciente, de modo a tatear às cegas entre meus enigmas. Desde então, tenho trabalhado, talvez com mais habilidade do que nunca, mas realmente não sei o que estou fazendo” (p. 211) (carta de S. Freud a Fliess, de 11 de março de 1900). “Segue completamente os ditames do inconsciente, segundo o célebre princípio de Itzig, o viajante dominical: ‘ Itzig, para onde você vai? E eu sei? Pergunte ao cavalo’. Não iniciei um só parágrafo sabendo onde ele iria terminar” (p. 211) (Carta de S. Freud a Fliess, de 7 de julho de 1898).
Como perceber a realidade, como se libertar da aparência, não se deixar dominar pelo “senso comum estabelecido” é um dos campos indagados nesse ensaio.
O livro tenta dar respostas às interrogações: como surgem as idéias geniais? Como o “gênio” (tal como Bion define os indivíduos excepcionalmente dotados) produz obras de arte, de literatura, de dramaturgia, de ciência e matemática? Como considerar a arte, os mitos, a produção científica e as questões edípicas? O que leva uma população ser capaz de se beneficiar das contribuições geniais, ou o que a leva a crucificar seu gênio/místico e provocar a anulação de suas idéias? Como o gênio pode permanecer em um grupo? p. 15). Como fazer parte de um grupo sem perder a própria identidade? (p. 32). Propõe que o anseio de ser importante destrói o indivíduo e o grupo (p. 33). Além disso, o gênio ou o místico possui em si uma qualidade destrutiva, ainda que esta seja seu pensamento.
Beatriz da Motta P. Tupinambá, em comentário publicado em IDE (2005), valoriza a oportunidade que Castelo nos dá, fazendo-nos entrar em contato com algo que é real, humano, ainda que misterioso, que é o “Processo Criativo”.
O escritor Henry James, citado por Castelo na página 167, escreveu que as mentes dos poetas disseminados pelo mundo correspondem a pequenas conchinhas, que ao serem recolhidas na praia, reverberam todas o eco do oceano. Penso que esse oceano seja feito de mitos, de sonhos sonhados com olhos abertos. Desse “oceano de pensamentos em busca de um pensador”, Castelo Filho capta muitos dos pensamentos já pensados e contidos em seu livro “os poemas homéricos não são apenas relatos. Contêm o tesouro de pensamentos, formas lingüísticas, imaginações cosmológicas, preceitos morais etc, que constituem a herança comum dos gregos na época pré-clássica... Os mitos, assim como os sonhos, equivalem a fórmulas matemáticas no sistema dedutivo científico. Eles representam uma forma sintetizada, experiências emocionais e aprendizado de coletividades inteiras ou mesmo de toda a humanidade (...). Considero que são, da mesma maneira que as obras de arte, sejam elas plásticas, musicais ou literárias, sintetizações do que foi aprendido pela experiência por um grupo social” (p. 166).
O “indivíduo excepcional” é uma pessoa com a capacidade de usar a observação e a intuição para capturar os pensamentos e torná-los públicos, transmitindo-os aos outros (p. 23).
Partindo desta afirmação, Castelo Filho propõe que Bion, Freud e Pirandello não são os autores das idéias. Podem ser autores dos livros nos quais comunicam as idéias que apreenderam, mas que não inventaram; divulgam os pensamentos que captaram, mas não são os “autores” dos pensamentos que escreveram! Este processo mental que permite a criação de algo novo é universal e vale para todas as épocas, para todas as culturas, para todas as áreas do conhecimento. Paul K. Feyerrabend afirma que qualquer cultura é potencialmente todas as culturas.
Para Castelo Filho, os indivíduos excepcionais vão em busca da Verdade, a despeito do medo, anulando o ódio por tudo que é novo: “o gênio tem acesso direto a evoluções em O, os demais costumam ter acesso apenas a transformações em conhecimento (K) (p. 45).
Isto leva Castelo a indagar-se sobre aquilo que definimos como “o pensar”, ou seja, “o processo criativo”. Segundo ele, a criatividade pode nascer naquele espaço conflitual que se cria entre narcisismo e social-ismo (os dois pólos de instintos), entre continente e contido, entre esquizoparanóide e depressivo, e em relação à reverie.
O autor pergunta-se como conter as idéias geniais em si mesmo e no grupo de que se faz parte. Tudo seria decidido no jogo de equilíbrio entre o narcisismo e o socialismo, que se intensifica quando os gênios ou místicos capazes de intuírem as idéias ou de descobrir fatos absolutamente novos, geniais, ameaçam o grupo e o Establishment com suas descobertas ou criações. O gênio que possui uma qualidade destrutiva intrínseca, inerente a seu ato criativo, deveria saber conter suas idéias geniais e também conter as reações de seu grupo. O grupo quer e favorece o nascimento do gênio, mas possui pouca capacidade de conter aquilo que é diverso e que o gênio propõe. Os indivíduos excepcionais devem resistir ao grupo, que por medo do “novo” tenta de todas as maneiras anular suas idéias “novas”; devem defender-se da homogeneização grupal! (p. 15).
Em um indivíduo excepcional não pode existir a predominância de uma mentalidade dominada por um superego ávido, que tende a substituir um vértice científico (que permite o conhecimento e o crescimento) por um vértice de leis morais.
Castelo sustenta a idéia de que o verdadeiro artista não deveria ter a pretensão de criar ou inventar alguma coisa. Ele se permite observar e deixar-se penetrar por aquilo que vem intuído. A grandeza e a permanência de uma obra estariam em relação com a quantidade de verdade que o escritor ou o artista seriam capazes de captar e transmitir, ou seja, de fazer os outros compartilharem a experiência emocional! Esta é a característica fundamental de todas as verdadeiras obras de arte, seja plástica, literária, musical, cinematográfica ou dramática, realizada com ou sem consciência por parte do artista (p. 152). Junto com Hannah Arrendt, sustenta que o artista é o autêntico produtor dos objetos que as civilizações deixam como quinta-essência e testemunha do espírito que as animou. Encontra um apoio em Karl Popper, que afirma que as teorias científicas não resultam da observação, mas são produtos da nossa capacidade de formular mitos, testes.
A criatividade é necessária para a continuidade das culturas, para a vida das sociedades. A Realidade, os indivíduos excepcionais, gênios ou místicos, a intuem, quando estão livres da influência do “senso comum estabelecido”, espontaneamente, em momentos imprevisíveis. Eles a contêm e a transformam em poesia, romances, relatos, músicas, pintura, escultura ou descobertas científicas. Novas linguagens são criadas pelos gênios/místicos/artistas para comunicar ao grupo a emoção suscitada pela percepção de “instantes, fragmentos” da Realidade. É necessária a areté, a “boa qualidade” socrática: a aspiração à perfeição não por imitação, mas para andar fora da conformidade (a “virtude popular”, p.233).
A teoria sobre o “aparato para pensar os pensamentos” de Bion, com a função alfa, a reverie, “sem memória e sem desejo”, abre para Castelo Filho uma nova via para a compreensão do processo criativo enquanto favorece o surgimento da intuição, da percepção imediata do significado de um evento, de uma ação. Os “fatos do passado” e a recuperação de memórias reprimidas não são relevantes para o processo criativo.
Para Castelo Filho, são dois os momentos no processo criativo-emocional. O primeiro é um estado de mente não racional em que predomina a intuição, a inspiração, o desconhecido. Neste estado revelam-se novas idéias que invadem a mente de modo dominante e capturam o indivíduo, que por sua natureza tem uma disposição para o acolhimento e a tolerância das experiências emocionais. O segundo momento é de caráter lógicoracional: “a razão serve para organizar aquilo que se obtém de maneira irracional (transformações em O)” (p. 23). O trabalho que se faz com a razão é posterior, é um trabalho para representar e comunicar aquilo que captamos (p. 224). Não é a razão que garante a percepção da conjunção constante revelada pelo insight é necessário desconstruir o conhecimento estabilizado (obstáculo epistemológico) para se abrir novos espaços para a renovação e para o desenvolvimento do conhecimento científico “o trabalho se desenvolve na área do finito/infinito; não diz respeito a situações de consciente/ inconsciente (...). A experiência do fato selecionado não é um retorno do reprimido” (p. 16).
Para Castelo Filho, é um ato criativo aquele que o psicanalista cumpre no momento da intuição do desconhecido na sessão analítica. Bion sugeriu que o psicanalista deveria freqüentar um atelier de arte para fazer criações artísticas e estéticas fora da sessão.
No capítulo “Reflexões finais” não há conclusões, mas ele encerra com uma reflexão de Bion, em Cogitations: “é possível que o ser humano esteja condenado à extinção porque é incapaz de posterior desenvolvimento; algumas espécies muito diferentes devem ser requisitadas para prosseguir do ponto em que o animal humano alcançou, à maneira que os saurianos foram substituídos pelos mamíferos. Não importa quão fracos os embriônicos mamíferos tenham sido, foram, todavia, superiores aos saurianos” (1992, p. 237).
O pensamento final de Claudio Castelo Filho: “estamos pertos desta situação? Os problemas trazidos com as possibilidades de seleção genética já nos levaram a este ponto? Os próprios humanos estarão (já) produzindo ou gerando a pós-humanidade? Deixo estas e tantas outras questões em aberto para que outros possam trazer suas contribuições” (p. 237).
Termina o livro como artista: as últimas três páginas são uma “transformação literária” da obra de Franz Kafka, O processo. Substitui Kafka e revê e revive “uma emoção kafkiana” com uma emoção pessoal. Um “outro” conto, uma “outra” evolução literária, “escrita num jorro depois da leitura de O Processo ”.
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TUPINAMBÁ Beatriz P.M. Criatividade, genialidade e o establishment. IDE. (41), 2005.
Endereço para correspondência
Mário Giampà
E-mail: mariogiampa@tiscali.it
1 Associate Member of the Società Psicoanalitica Italiana (SPI)