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versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.11 n.20 São Paulo jun. 2007
ARTIGOS
A auto-análise 150 anos depois de Freud
Self-analysis 150 years after Freud
Yeda Alcide SaighI
Sociedade Brasileira de Psicanálise
RESUMO
A autora recupera as reflexões de vários autores sobre a auto-análise, desde Freud, pioneiro também da auto-análise. Freud falou de uma “auto-análise continuada”. A discussão está colocada, entre os que pensam que a auto-análise seja possível, e os que pensam que seja impossível. Estando ativada a função da auto-análise, pode-se dizer que a tarefa de observador, delegada ao psicanalista na psicanálise, é reassumida pelo analisando, Portanto, chega-se à conclusão que a auto-análise, teoricamente, seja possível “Talvez se deva dizer que a análise pessoal termina quando se deixa de pedir ao Outro aquilo que o Outro não tem para dar.” Essa parece ser a situação do paciente analisado, cuja análise encaminha-se para o término e, portanto, para a auto-análise.
Palavras-chave: Auto-análise, Término das análises, Pós-término das análises, Função egóica, Função analítica.
ABSTRACT
The author collects some ideas about auto-analysis, since Freud, pioneer also of the auto-analysis. Freud spoke of a “continued auto-analysis”. The quarrel is open, between those who think auto-analysis is possible, and others who think it is impossible. Being activated, the function of the auto-analysis can one say that the observer task, delegated to the psychoanalyst in psychoanalytical process, is reassumed by analyzed subjects. So, we conclude theoretically that the auto-analysis is possible. Finally, “it can be said that the personal analysis finishes when subject no more demands the Other what the Other does not have to give”. This seems to be the situation of the analyzed patient, whose analysis can be directed for the ending and, therefore, for the self-analysis.
Keywords: Self-analysis, Ending of analysis, After-ending of analysis, Ego function, Analytic function.
Este texto é resultado de uma pesquisa que fiz sobre auto-análise, no corpo de pesquisa maior, em que estudei o término e o pós-término das análises. A questão da auto-análise é crucial para que se pense esse término e o pós-término, dado que atualmente todos os principais teóricos entendem que o término das análises depende, em praticamente todos os casos, de o analisando ter introjetado uma “função analítica”. O assunto volta à pauta das discussões em 2006, quando se comemoram os 150 anos do nascimento de Freud pioneiro da auto-análise.
Desde o século VI a.C., os homens sabem que se podem explorar os sonhos, como meio de auto-conhecimento. Artemidoro, no século III, escreveu uma “Oniromantica”, pela qual ensinava que a interpretação dos sonhos era excelente meio para devolver ao sonhador o sentido da própria vida. Essa idéia (e a obra de Artemidoro) eram bem conhecidas de Freud e de Jung. Freud fez o que se sabe que fez da interpretação dos sonhos. Jung falou explicitamente sobre o “processo de individuação” como resultado do processo pelo qual homens e mulheres “devolvidos” (pela interpretação de seus sonhos) à própria consciência tornam-se capazes de entender, em sentido profundo, o quanto estão necessariamente ligados a todos os homens e mulheres.
Visitei em Epidauro, na Grécia, um antiqüíssimo templo de Asclépio1, deus grego da cura, de que nos falam Homero, Hesíodo e Píndaro, dentre outros, erguido antes do século VII a.C., e que foi para os gregos antigos o que seria para nós um “hospital público”, no qual a cura acontecesse pela força do mito. Os doentes eram tratados com remédios extraídos de plantas (que tinham poderes medicinais ou milagrosos), faziam ali um repouso de dias, até que se recuperassem, e partiam “devolvidos a si mesmos”. Parte do tratamento consistia em lavar-se, comer, tomar algumas beberagens rituais, e em seguida dormir (em um “divã” de pedra que ainda existe em Epidauro e pode ser visitado) e imediatamente depois narrar seus sonhos a um dos sacerdotes de Asclépio, que os “interpretava” para encontrar a causa do mal que afligia cada doente. Depois, afinal, em um espaço reservado, o doente tinha um encontro com o próprio Deus da cura: Asclépio falava aos doentes pela boca dos oráculos do templo, e fazia suas prescrições. A idéia-chave de todo o tratamento nos templos de Asclépio, que o tornava necessário e socialmente relevante, era como nos ensina Homero2 “não deixar sem tratamento os doentes, para que não adoecesse toda a cidade”.
Freud iniciou sua auto-análise de maneira ocasional e fragmentada em 1890, baseado fundamentalmente na interpretação dos próprios sonhos, lembranças, lapsos e esquecimentos. No verão de 1897, ele levou adiante sua auto-análise de uma maneira mais rigorosa e sistemática. O método que utilizava era a associação livre, defrontando-se com períodos de muita resistência. Freud explorou-se a si mesmo continuamente, e converteu-se no mais informativo de seus pacientes. Para seu trabalho ele não contava com predecessores nem mestres, e à medida que avançava teve de inventar, ele mesmo, as regras pertinentes. O “primeiro” sempre é transgressivo e diferente de todos os demais. O fundador da psicanálise submeteu-se ao que só depois ele criaria. A psicanálise não existia antes de Freud: o primeiro psicanalista não teve, nem poderia ter tido, analista que o analisasse.
Embora tenha feito ele mesmo sua análise, Freud tinha um interlocutor médico: seu mais íntimo amigo, Fliess, otorrinolaringologista bem-sucedido, de 29 anos, que morava em Berlim. As cartas de Freud a Fliess representam o grupo de documentos de maior importância para acompanhar Freud nas primeiras descobertas do que veio a ser conhecido como Psicanálise. Essa correspondência abrange um período de dezessete anos, durante o qual ele escreveu, dentre outros trabalhos, o famoso caso clínico de Dora (1905) e A interpretação dos sonhos (1900-1901).
Em duas das muitas cartas que escreveu a Fliess, reunidas em A correspondência completa de Sigmund Freud e Wilhem Fliess: 1887/1904, Freud (1986) mostrou-se ambivalente sobre a crença na eficácia da auto-análise que empreendeu. Na primeira dessas cartas, ele anuncia o começo de sua auto-análise, que considerava indispensável tanto para a elaboração de seus próprios conflitos pessoais quanto para a construção do conceito de psicanálise. Em outro momento, sente desmoronar a esperança de esclarecer os problemas do inconsciente buscando as respostas em si mesmo. Escreve novamente a Fliess:
minha auto-análise segue interrompida, e lhe digo por quê. Só pude analisar-me a mim mesmo com os conhecimentos adquiridos objetivamente (como faria com um estranho), uma genuína auto-análise é impossível, do contrário não existiria a neurose (1887/1904, p. 265).
Entretanto, não apenas as primeiras descobertas estão relacionadas às experiências pessoais e às dificuldades que Freud identifica desde logo. Didier Anzieu, em A auto-análise de Freud e a descoberta da psicanálise (1975), comenta que ao longo de toda a vida, Freud continuou a analisar a si próprio e a enriquecer com exemplos pessoais mais recentes as reedições de suas primeiras obras.
Para Freud, os sonhos e os atos falhos constituíram a fonte mais importante de sua auto-análise. Ele os considerava indispensáveis para esclarecer dúvidas, tanto pessoais como teóricas, no que se refere à causa das neuroses. A preocupação que tinha em avançar em seu conhecimento levou-o a concluir que ele mesmo era seu paciente mais importante. Em 1914, preconizou a conveniência de analisar os próprios sonhos para todos que fossem bons sonhadores; para quem não fosse, sugeria que confiasse sua análise a um profissional especializado.
A redação de A interpretação dos sonhos (1900-1901) ocorreu na época em que morreu o pai de Freud, e foi uma reação àquele fato. A morte do pai foi anotada por Freud em 1908, na segunda edição do livro, como o acontecimento mais significativo e a perda mais terrível para um ser humano. Nessa mesma obra apareceu uma importante série de sonhos auto-analisados, e o complexo de Édipo foi também descoberto durante sua auto-análise.
O registro de sua auto-análise também é encontrado na correspondência mantida por Freud com outros analistas contemporâneos seus: Jung, Ferenczi e outros. O último testemunho da auto-análise aparece em uma carta para Romain Rolland, romancista francês, mostrando-o já como consumado auto-analista. Apesar disso, desde Análise terminável e interminável, Freud (1937) chama a atenção para o fato de que nem todos têm acesso ao recurso da auto-análise, e que esses, para desenvolvê-lo, precisam buscar uma análise pessoal. Ele recomenda que os analistas profissionais sejam reanalisados a cada cinco anos.
Em Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912), ele indicou a análise do analista como condição prioritária; nesse ponto, portanto, deixa de lado definitivamente o conselho anterior de auto-análise.
Em termos gerais, sobre a auto-análise, pode-se dizer que há quem acredite que ela seja factível, e há quem não acredite que seja possível uma verdadeira auto-análise.
Acredito que sim, que é possível uma auto-análise, mas preferivelmente depois de a pessoa já ter passado pelo processo analítico. Uma pessoa analisada, que já viveu esse longo e doloroso processo, tem mais facilidade, mais conhecimento de si própria, e já deveria ter adquirido as ferramentas necessárias para uma possível auto-análise.
Mesmo em Freud, há momentos em que ele põe em dúvida a possibilidade da auto-análise; há outros em que a declara absolutamente impossível: se fosse possível, não existiria a neurose, diz Freud em carta a Fliess, já citada.
Quanto aos autores que escreveram sobre o tema, alguns falam de a auto-análise ser possível (e até fácil), mas só depois de alguém ter sido analisado. A questão, portanto, permanece em seus termos essenciais: é possível analisar-se sem analista, sem desenvolvimento transferencial?
Parece possível refletir, pensar sobre sonhos ou sintomas próprios. Por que então chamar a isso de auto-análise? Porque acredita-se que depois de uma análise, estar-se-ia mais preparado, ou ter-se-ia um posicionamento diferente frente a sintomas, repetições e fantasias.
Alguns autores, como Meltzer (1967) e Anzieu (1975), consideram a auto-análise como uma prolongação natural da psicanálise, e a capacidade de auto-analisar-se como um dos objetivos a alcançar para se conseguir um bom final de análise. Como esse final depende da identificação introjetiva com o analista, esta saída implica um ideal, um modelo que faça que o ego, assim modificado, tenha capacidade para se auto-analisar.
Melanie Klein, em O luto e sua relação com os estados maníaco-depressivos (1940), oferece a auto-análise de uma cena onírica por ocasião do falecimento de seu filho exemplo esclarecedor pelo implacável rigor analítico e por sua coragem em fazê-lo. Não se trata de negar uma experiência dolorosa, mas de poder se apropriar de uma vivência, mantendo sobre ela o olhar da analista que era. Enfim, mantendo o que Meltzer denomina de “instrumento analítico” referindo-se a um instrumento útil e não a uma qualidade mental , que permitiria o controle do acting-out, a restrição da onipotência e a elaboração do conflito.
Para Bleger (1972), por exemplo, todo analista precisa desenvolver o que ele chama de “dissociação instrumental” para conseguir dar conta dos próprios sentimentos, que são intimamente mobilizados durante o encontro analítico, conseguir compreender a experiência emocional em curso na sessão, sem deixar de contê-los ou agir impulsivamente, pressionado por tais sentimentos. Desempenhar a função analítica não significa apenas observar os movimentos emocionais do analisando, mas observar-se a si mesmo e a seus próprios movimentos emocionais, a despeito da turbulência que o encontro provoque.
Para Bion (1970), a função analítica implica desenvolver uma visão binocular, que permita a correlação entre consciente e inconsciente, e por fim a auto-observação.
Craige (2002) nos diz que na literatura psicanalítica o pós-término é considerado uma fase do processo analítico, durante a qual o analisando faz o luto pela perda do analista e cria internalizações da relação analítica ou como mencionado em minha dissertação de Mestrado, introjeta uma função analítica que capacita o analisando usar a função da auto-análise no pós-término (Saigh, 2002). Entretanto ainda não temos muito conhecimento sobre como os ex-analisandos realmente experienciam o luto pós-término. Naquele mesmo trabalho, Craige cita idéias de vários autores, que considero muito relevantes:
Rangell sente que o pós-análise é o tratamento da neurose de transferência, e a compara com o período pós-cirúrgico, no qual o paciente tem de recuperar-se não apenas da doença original, mas também da própria cirurgia”.(…) De acordo com Guiard, a fase de pós-término é um processo de luto, durante o qual o analisando deve recuperar-se não apenas da cirurgia, mas também de uma nova doença, o luto provocado pela perda do analista, e que o analisando tem de encarar sozinho (2002, p. 508).
Craige sugere que para avaliar a prontidão de um paciente para o término, o analista deve avaliar, dentre outras coisas, a prontidão do paciente para lidar sozinho com as tarefas do pós-término.
Afinal, o luto é uma resposta normal à perda de qualquer objeto em que houve investimento libidinal. Elaborar essa perda exige tempo. A neutralização da perda do analista talvez se dê pelo ganho de uma função egóica, a qual o paciente se veja capaz de exercer por si mesmo. À medida que a análise evolui, não é apenas o analista que se desinveste como objeto idealizado, mas a própria análise é “desidealizada” e deixa de ser depositária de esperanças irrealistas.
Nessa fase pós-análise, segundo Novick (1976), instaura-se no ex-analisando um diálogo interno com seu ex-analista, cuja imagem o ex-analisando mantém viva dentro de si. O analisando perde o contato com a pessoa real do analista, mas desenvolve uma função psíquica estável, que o autor chama de “função analítica”.
No mesmo trabalho, Novick menciona uma pesquisa realizada com candidatos a analistas, a quem era perguntado: “o que tomou o lugar de sua análise em você e em sua vida?”. Dez candidatos mencionaram espontaneamente o esforço que empreenderam para entenderem por si mesmos o que se passava em seu íntimo em outras palavras, a dificuldade que tiveram para fazer aquilo que Freud já chamava de “auto-análise continuada”. Embora a auto-análise seja uma habilidade que se desenvolva mediante a análise pessoal, a experiência de auto-análise referida pelos candidatos pareceu assustadora a alguns deles.
Kantrowitz, Katz e Paolitto (1990) realizaram um estudo de acompanhamento em psicanálise para ampliar a compreensão dos ganhos resultantes de um processo de análise. O objetivo do estudo foi avaliar em que medida o trabalho analítico pode ser considerado concluído; por outro lado, buscavam avaliar se a mudança psicológica que ocorre é duradoura. Os resultados mostraram estabilidade dessa mudança nos anos posteriores ao término; e os achados confirmam os de Pfeffer (1963). Nas entrevistas de acompanhamento foram detectados e elaborados resíduos da neurose de transferência. O estabelecimento de uma função auto-analítica foi considerado como um dos principais recursos adquiridos durante o processo analítico. Essa capacidade auto-analítica reforçada ampliou a habilidade do ex-analisando para enfrentar novos conflitos quando esses surgiam.
Pellanda (1995) descreve e comenta o que ocorre com certos pacientes após o término da análise como um processo de ganho de autonomia e independência, que se pode comparar ao processo pelo qual passam alguns que só se permitem casar depois de perderem o pai. Como se a melhora só pudesse se evidenciar após o término da análise.
Para esse autor, uma das principais conclusões desse estudo é que não há auto-análise séria se ela não for relatada a alguém. Quando Fliess não desempenhou mais o papel de “único público”, foi Minna, a cunhada de Freud, quem se tornou sua interlocutora privilegiada. Pellanda acrescenta:
O destino natural do analista é a saudade e o esquecimento, por parte do paciente, uma vez que não faz sentido ficar ligado [analista] a vida toda. (…) [Lamenta que] a preocupação desmedida com a questão da reativação da transferência tenha restringido em demasia a curiosidade e a disposição dos analistas para tomarem contato com seus antigos pacientes. [Ainda que tenha dúvidas quanto a tomar a iniciativa de procurá-los], aceita sistematicamente ver qualquer ex-paciente que nos procure; e dos que assim agiram, a maioria aparentemente o fez justamente por não conseguir desempenhar sozinho essa tarefa de seguir com a auto-análise (1995, p. 114).
Concordo com a idéia de que há uma identificação do analista com sua função específica de analisar, isto é, de buscar a verdade e de objetivar os motivos profundos dos problemas, de aceitar qualidades e defeitos, de reconhecer aspectos não agradáveis dentro de nós mesmos, ou de nos aceitarmos com nossas restrições e limitações verdadeiras. Esta identificação com a função principal e específica do analista é que nos permite continuar crescendo e amadurecendo; assim podemos prosseguir a própria análise, independentemente dos encontros com nossos agora ex-analistas “sempre acho estranho quando não consigo entender alguém em termos de mim mesmo”, escreveu Freud em uma carta à sua noiva em 1872 (p. 116).
Em minha clínica, também já tive reações de estranhamento diante de relatos de situações que eu sequer imaginara até então. Nessas condições, é difícil manter uma sintonia emocional com o paciente. A interlocução com um supervisor pode ser de extrema valia nesses momentos.
Em minha experiência, acredito que quando a função da auto-análise está ativa, a tarefa de observador, que era anteriormente delegada ao analista, é reassumida pelo analisando, na medida em que se percebe continuamente identificando e dando sentido às menores manifestações de seu próprio inconsciente, seus sonhos, seus atos falhos e projeções que eventualmente faça.
Pellanda afirma e concordo com ele que o grande ganho de uma análise bem-sucedida é a capacidade de auto-análise. E conclui:
A auto-análise existe independentemente de que se a denomine como tal e, portanto, melhor se a aproveitarmos no sentido de nosso aperfeiçoamento pessoal e em benefício de nossos pacientes. Para tanto, é necessário que se direcione a atenção também para o período do “pós-análise”, como propõem Etchegoyen, Guiard e Thomas, entre outros. A auto-análise pode se considerar, em síntese, o estado natural de funcionamento do ser humano, executado com realismo e maturidade, após sua análise pessoal bem-sucedida. Cada caminhante possui seu ritmo, como dizia Freud. Ensina-se a caminhar pelo exemplo, e então cada caminhante faz seu caminho, como diz o poeta (1995, p. 118-9).
Gostaria de acrescentar que compartilho da posição dos autores acima citados.
No mesmo trabalho é citada a contribuição de inestimável valor de Ticho (1967, p. 112), On Self Analysis, que examina o depoimento de vários colegas, todos com suas análises terminadas há quatro ou cinco anos. Ticho atribui a escassez de estudos sobre auto-análise aos seguintes fatores:
1. não há princípios explicitamente formulados para caracterizá-la;
2. nos estudos de follow-up, o interesse não tem sido nesse aspecto, mas na sintomatologia;
3. apesar de afirmações contrárias, persiste o mito da “análise completa e perfeita”, logo dispensando qualquer preocupação com continuação;
4. o tipo de entrevista psicanalítica, mesmo a posteriori, não parece ser o melhor instrumento para investigar a auto-análise, pois induz à regressão, com reativação de transferência residual e recorrência de sintomas.
Botella (2000), em entrevista para a Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise, menciona que a velhice do corpo não impede que continue a evolução psíquica, salvo nos casos em que o suporte neurobiológico seja deficiente. Acredita também que a experiência em análise de pessoas de mais de setenta anos é válida. Se estão em boas condições físicas, são capazes de desenvolver uma neurose de transferência com as características clássicas. Nesses casos, o processo analítico, naquilo que é fundamental, difere pouco do processo em moldes clássicos. Para Botella, pode-se dizer atualmente que a morte do corpo surpreende o psiquismo em plena evolução; e que tão necessário quanto a solução da neurose é que o paciente adquira a capacidade de continuar a evoluir sem ajuda.
Lichtmann questiona, em Acerca del pos-análisis:
O que acontece com nossos pacientes depois de “terminadas” as suas análises? A compreensão que adquiriram durante a análise, o novo saber do desconhecido neles mesmos, que introduz uma relação de saber com sua própria verdade e que, pensamos, sustenta as mudanças, pode conservar-se com o passar do tempo?
Até que ponto pode-se considerar “completo” o resultado de uma terapia psicanalítica? E até que ponto essa “completude” incide na permanência do processo? (1992, p. 789).
E conclui que na realidade a psicanálise desenvolve e atualiza apenas o que já existia na pessoa.
Para finalizar, acredito que a auto-análise não é um substituto para a análise regular, a qual propicia a experiência da transferência, das interpretações transferenciais; e que oferece um observador relativamente neutro e a exposição a uma técnica na qual o material analítico pode ser mais bem compreendido. Ainda assim, creio que se podem alcançar insights significativos por meio da auto-análise.
Em sentido amplo, nenhuma concepção teórica aceitaria a conclusão de que a auto-análise seja impossível. E talvez se deva dizer que a análise pessoal termina quando se deixa de pedir ao Outro aquilo que o Outro não tem para dar (ou que o Outro não conseguirá dar, mesmo que tenha, porque jamais nos bastará receber). Ou quando, afinal, nos conformamos com ter que deixar de fazer ao Outro a pergunta cuja resposta só nos bastará se for a resposta possível de cada um, construída por si mesmo.
A pessoa que se submeteu a um processo analítico bem-sucedido, ou mais ou menos bem-sucedido, independentemente de sua vontade, continuará a se auto-analisar, pois essa função analítica foi desbloqueada e posta em andamento pela análise. Não tem retorno, uma vez analisada, sempre fará sua própria análise, com ou sem um analista.
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Endereço para correspondência
Yeda Alcide Saigh
Rua Laconde, 3 01448-010 Jardim Europa São Paulo/SP
Tel.: (11) 3083-5795
E-mail: ysaigh@uol.com.br
Recebido em 11/05/06
Aprovado em 09/03/07
Notas
IMembro Efetivo e Docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise; Mestrado em Psicologia (PUC); Doutorado em Psicologia Clínica (USP).
1Houve vários desses templos dedicados a Asclépio, em toda a Grécia. O de Epidauro é dos mais bem conservados. Na tradição romana, esse deus da “cura”, muito popular, ficou conhecido como Esculápio. Era representado como um pastor com um cajado de peregrino, em volta do qual se enrolava uma serpente.
2Na versão homérica, o deus “da cura” não é Asclépio (Esculápio), mas Chiron. Asclépio aparece em Homero como pai de Hígia e Panacéia, sendo um mortal que depois da morte foi transformado em semideus. Chiron é divindade muito mais antiga, que assume a forma de centauro meio homem, meio animal. O que há de comum entre Asclépio e Chiron, em Homero, é que ambos são médicos e ambos carregam uma ferida incurável. Apesar do imenso poder de curar que ambos possuem, o mundo em que vivem é um mundo de sofrimento eterno, atemporal.