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versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.11 n.20 São Paulo jun. 2007
ARTIGOS
Questões da contemporaneidade e a transmissão da psicanálise
Contemporariness and the transmission of psychoanalysis
Betty Bernardo Fuks1
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
RESUMO
O presente artigo propõe identificar os efeitos sobre a contemporaneidade da ruptura do processo civilizatório durante a Segunda Guerra Mundial. Trata-se de pensar de que modo a vivência dos campos de extermínio, um trauma irrepresentável, vem sendo repetido e reproduzido na cultura, gerando manifestações que afetam a clínica e modificam a escuta do analista. Rastreando algumas figuras de negação da castração e da violência atual, a autora realiza uma reflexão sobre estas questões em íntima relação com o tema da transmissão da psicanálise.
Palavras-chave: Trauma, Violência, Modernidade, Contemporaneidade, Transmissão.
ABSTRACT
The aim of this article is to identify the effects on contemporariness of the rupture on the civilization process which took place during the Second World War. The author tries to figure out how the experience of the extermination camps, a trauma impossible to represent, comes to being, is reproduced and repeated in the culture, generating manifestations that affect the clinic and can come to modify the listening of the analyst. Tracking some figures of the negation of castration and current violence, the author carries through a reflection on these questions, in close relation with the subject of the transmission of psychoanalysis.
Keywords: Trauma, Violence, Modernity, Contemporariness, Transmission.
Após a vivência de Auschwitz, manipulada pelo que Hannah Arendt definiu como o interesse particular da ciência moderna pelo domínio e poder (Menegat, 2003, p. 40), a inquietação começou, apesar da resistência de muitos, a tomar conta do pensamento psicanalítico. Sobretudo diante da escuta dos pesadelos intermináveis e do sentimento de culpa infindável das vítimas sobreviventes. Em um mundo em que a dessacralização da morte instalou uma ordem de violência sem limites, o silêncio ruidoso da pulsão de destruição acabou jogando as cartas; conforme as previsões de Freud ao analisar o mal-estar de uma época em que a ciência e a tecnologia, tão caros ao progresso da civilização, na pretensão de garantir contra o acaso e o desamparo, começavam a caminhar de braços dados com a barbárie (Freud, 1915, 1930). O que fazer diante do fato da própria psicanálise, do mesmo modo que qualquer outro discurso, ter sido atingida por todas as incidências sociais e políticas da Segunda Guerra? Seria possível formular um pensamento psicanalítico sobre Auschwitz? (Stern, 2004, p. 192). Ou seja, como pensar teoricamente o que não tem sentido nem nunca terá: milhões de mortos em monstruosas “experiências científicas”? Eis algumas das questões que surgiram após esse trauma maior, que inundou de sangue a civilização, atingiu a modernidade no âmago de seus ideais, transformando-se na síntese paradigmática da “banalidade do mal” (Arendt, 2000) e no signo do esfacelamento do sentido do humano.
Um trauma de tal magnitude, ainda que coletivo, está forçosamente sob o domínio do império da compulsão à repetição. É como se o horror aberto pelo traumatismo exercesse, a partir daí, o poder de aspiração ao gozo maligno que habita o humano. Primo Levi, um dos maiores escritores do século XX era das catástrofes e genocídios testemunha, melhor do que ninguém, a impossibilidade de representar o horror que se passou nos campos de extermínio: quem o sofreu não sobreviveu para contar o que viveram e sofreram nessas fábricas de cadáveres (Seligmann-Silva, 2003, 51-53). Aqueles que, como o autor, foram tocados pela sorte de sair com vida, tentam narrar uma morte a do sujeito , que começou antes mesmo da morte corporal.
O psicanalista lida com a questão da morte do sujeito cotidianamente. Cabe, então, perguntar de que modo todos os estratagemas da preclusão da castração, que estão nos fundamentos da Solução final, se repetem compulsivamente na contemporaneidade? Como elas se reproduzem na cultura de nosso tempo? De que forma se apresentam na clínica? O que tem a psicanálise a dizer sobre a reprodução imperceptível do genocídio na atualidade? Uma das manifestações mais dramáticas desse estado de coisas, e que convocam o analista à urgência da tarefa de pensar a experiência em nosso tempo e fazer avançar a teoria, são as proezas médicas na luta contra a esterilidade, conforme as agudas considerações de Michel Plon (2006, p. 95). Observa-se que muitos dos métodos atuais de fertilização estão absolutamente atrelados à prática de diagnósticos de pré-implantação de óvulos, o que possibilita promover em coletividades humanas a produção de uma seleção fundamentada em leis da genética, a eugenia, filha legítima do empreendimento que exterminou milhares de seres humanos em nome da fantasia da raça pura. É conhecido o fato de que Hitler começou seus assassinatos em massa brindando, no dizer de Hannah Arendt, os “doentes incuráveis” com “morte misericordiosa”, na pretensão de livrar a Alemanha “dos ‘geneticamente degenerados’ (os doentes do pulmão e do coração)”. Na visão quase premonitória da filósofa, o fato dessa prática ter sido cunhada pelo nazismo nada impedirá que em um futuro não muito distante “os homens possam tentar exterminar todos aqueles cujo quociente de inteligência estiver abaixo de determinado nível” (Arendt, 2000, p. 312).
Denise Garnot, psicanalista com uma longa estrada de atendimentos a casais estéreis, adverte que embora no plano científico signifiquem um progresso extraordinário, algumas técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) trazem questões éticas que merecem ser perscrutadas: “o que se faz com a vida?”, “de que vida se trata?” (Garnot, 2004, p. 99). São questões que obrigam o analista a refletir sobre a onipotência científica do remanejamento das origens e as formas que vêm tomando a negação crescente do sujeito nas sociedades atuais. Procriação controlada, barrigas de aluguel, demanda de engravidar em detrimento do desejo de ter um filho, o fantasma da clonagem humana, são figuras de negação da castração que põem à prova a função do analista, e convocam a psicanálise a elaborar uma crítica à cultura contemporânea. Obviamente que esses temas incidem diretamente sobre a problemática da transmissão do legado freudiano às futuras gerações de analistas.
Sustentada no real que a clínica testemunha, a escrita freudiana protege a psicanálise tanto do delírio como da idolatria. Freud percebeu, muito cedo, uma afinidade eletiva entre o trabalho do conceito e a literatura. Segue-se que sua disciplina e a literatura são campos constituídos na tensão discursiva entre o que é intemporal a vida, a morte, as paixões e afetos demoníacos e o que pertence à importância da narrativa histórica, à constituição do sujeito individual e coletivo. A aproximação dessa conexão entre psicanálise e literatura da concepção de transmissão da experiência psicanalítica pela palavra e pela escrita facilita situar a tarefa do analista de estar sempre retornando à escrita teórica da psicanálise para interrogar a clínica e garantir a transmissão de um saber “que toca o real, ainda que seja de forma obscura, como uma letra em suspenso” (Rabinovitch, 2000, p. 15). A leitura da escrita freudiana sempre impõe à teoria confrontar-se com seu objeto, à procura de saídas. Lembremos que Freud, diante da perseguição nazista, retorna à Escritura e reescreve o mito psicanalítico da morte do pai. Esta questão, que o ocupara desde o início de sua obra, retorna em função dos impasses referentes à analise com ou sem fim, e da situação social e política que atravessou no final de sua vida.
O mito não apenas funda o pai da história para responder à questão da origem do sujeito e da cultura, como também instala a possibilidade de inscrições da memória, da organização das representações no interior do aparelho psíquico. Lacan obedece à “dramatização” desse arqui-acontecimento, e da releitura do mito depreende o Nome-do-Pai Pai morto vinculado a instalação do lugar vazio constitutivo da cultura e ao complexo de castração que conjuga a lei com o desejo, ou seja, que interdita o gozo. Eis um paradoxo: do ponto de vista da psicanálise, o homem só pode se dizer homem se paga o preço da castração. E é justamente essa castração o que o pai transmite ao filho, sublinha Alain Vanier (2005, 93).
A escritura freudiana as escritas do assassinato (Édipo, Totem e tabu e Moisés) e a escrita metapsicológica , tal comoa escrita psíquica, concebida como uma multiplicidade de traços mnemônicos, que sob a ação e impactos posteriores aos períodos em que foram marcados estão sujeitos a rearranjos e retranscrições, são periodicamente reescritas. Seja quando o analista é convocado a responder da e pela psicanálise em cada tratamento, ou a cada vez que é chamado a renovar a abordagem psicanalítica da cultura e de seus efeitos sobre a subjetividade contemporânea. Assim o fez, como já se disse, o próprio Freud: renovou e reinventou a psicanálise entre os rastros da escrita psíquica e os passos da civilização de seu tempo. Igualmente Lacan, em seu esforço de elaborar o que se seguiu depois da Shoah (“catástrofe”, em hebraico), recorre à escrita freudiana, e em conexão com os comentários de Theodor Adorno e Max Horkheimer sobre a contribuição da racionalidade técnica promovida pelos centros científicos de pesquisa da Alemanha na empresa de extermínio nazista, extrai suas grandes contribuições à psicanálise: a noção de objeto a como dejeto e as progressões concernindo ao gozo e a categoria de Real, o que não pode ser pensado.
Transindividualidade primordial do inconsciente: esta designação lacaniana à articulação entre o sujeito e a cultura sustenta, com e depois de Freud, a necessidade da teoria do inconsciente estar sempre sendo reinventada por meio dos acontecimentos históricos do momento em que ela é praticada. Eis um paradoxo: a concepção do inconsciente como transindividual e histórico não invalida a tese do inconsciente atemporal, desconhecedor do tempo e da morte. Neste sentido, talvez a psicanálise seja um terreno privilegiado para sustentar que o atemporal e o temporal não estão no regime de mútua exclusão, mas articulam entre si passagens complexas que desconstroem a idéia de uma oposição radical entre o passado e o presente.
Esta concepção de tempo encontra-se na base dos conceitos fundamentais da psicanálise. Por conta disso, no dizes de Ana Maria Rudge, qualquer “vocação antiteórica” do analista é nefasta, sobretudo porque a psicanálise depende dessa lógica e do manejo dos conceitos que instituem o discurso psicanalítico para operar na prática e decifrar a experiência (Rudge, 2006, p. 19). O fato do discurso da psicanálise ser atingido pelas incidências da vida social e política da contemporaneidade não deixa de exigir do analista fidelidade ao Inconsciente, este saber que não se sabe. Uma exigência que implica em dar à experiência a escuta da subjetividade uma forma de elaboração teórica, de conceituação, a partir dos próprios fundamentos da psicanálise. Tarefa difícil, mas não impossível. Nela se encontra em jogo a própria transmissão da psicanálise, como efeito de uma temporalidade complexa que envolve a leitura à letra de seus sistemas de arquivos e de memória.
O que inspira e dá embasamento a essa tarefa é a própria teoria psicanalítica da transmissão. Übertragung, palavra que em alemão significa tanto transferência como metáfora, ou seja, “transposição do sentido próprio ao figurado” (Houaiss, 2000), de meta-phorá, em que phorá significa “ação de levar, de carregar à frente”. Quando diretamente aplicado à transmissão da psicanálise, o conceito de transferência toma o sentido daquilo que Lacan chamou de “[a responsabilidade] de cada psicanalista em reinventar a psicanálise” (1979, p. 219) para garantir o lugar desta na cultura. Se o prefixo “re” anterior ao verbo inventar reveste-se da acepção de retorno, de retroagir (Houaiss, 2000) e de repetição diferencial, compreende-se que a intenção de Lacan ao usar o verbo reinventar foi a de sublinhar que sendo o inconsciente um campo que se dissipa, na transmissão o analista terá de repetir diferencialmente o gesto inaugural de Freud.
Corresponderia, então, ao que se insiste em chamar de “novas patologias” a uma evolução da clínica no mundo moderno? Ou seria preciso somente considerar que se tratam de novos modos de expressão ligados ao discurso de uma época, em que a metáfora paterna já não mais exerce um limite suficiente ao gozo do Outro? Para ensaiar uma primeira resposta a essas perguntas, seria preciso dizer que embora os acontecimentos façam como veremos mais adiante com que a escuta do analista se dirija cada vez mais ao real, isto é ao mais além do princípio do prazer, isto não significa que possa se dispensar a referência ao prazer e à metáfora paterna que Freud encontrou na base de nossas trocas simbólicas. Defender a clínica freudiana de nosso tempo supõe, pois, ultrapassar a idéia de que o Complexo de Édipo e sua corte de culpabilidades desmoronaram por completo, e ao mesmo tempo, acordar para as realidades que se apresentam fora deste universo.
Isto faz pensar em uma outra expressão contemporânea do mal-estar, que lembra a Solução final e convoca o analista à urgência, sempre renovada, de criticar a cultura que testemunha e civilizar a barbárie. Para introduzi-la recorro à arte, lembrando que Freud dizia que em matéria de leitura da alma, os poetas e escritores estão à frente da ciência. A cinematografia atual explora a ficcionalização da violência na sociedade contemporânea, retratando justamente uma ética de que a lei está ausente. Todos os que assistiram aos filmes, Ponto Final, de Woody Allen (2005), e Corte, de Costa-Gravas (2005) recordam os finais suspensos e emblemáticos destas películas: a vida tem que ser gozada a qualquer preço, mesmo que às custas do assassinato e do extermínio do outro. No primeiro filme, depois de o protagonista reduzi-la a um mero objeto de gozo, mata a amante grávida de um filho seu, e para se proteger de ser incriminado, assassina uma velhinha pacata, totalmente alheia à sua demanda de ascensão social. Costa-Gravas vai mais longe: um pacato executivo desempregado chega ao extermínio radical de seus concorrentes no mercado de trabalho. A banalidade do mal é a tônica dos dois filmes, que não deixam também de apontar para o fato de que, na contemporaneidade, a impiedosa máquina do capitalismo selvagem está tentado abolir uma das leis que funda e sustenta a cultura: o Não Matarás.
No mesmo modelo desses filmes, a recente novela da Globo, Belíssima, retrata a promessa de gozo absoluto do poder inscrita no horizonte de nossas sociedades atuais. Tendo como pano de fundo os temas clássicos da tragédia grega, o autor pouco a pouco mostra o esmorecimento da trama edípica, e sem explicações simplistas, descortina o horror da lei radicalmente ausente. A novela é de uma clareza aterrorizante: o fim das relações de parentesco, a negação do envelhecimento e da morte e a prática do assassinato do outro comandam o culto de si, do poder e do dinheiro. Livre e desimpedida de qualquer laço social, a protagonista pratica o extermínio à moda nazista, isto é, decide a seu bel prazer quais os sujeitos que devem desaparecer ou viver.
Cabe aqui perguntar sobre o que resta à psicanálise dizer frente ao retorno dessa figura, que como a Rainha de Alice nos país das maravilhas, tem uma solução idêntica para todas as questões que a afligem: manda cortar a cabeça do outro. Evidentemente que nenhum desses personagens do gozo ilimitado chega aos nossos consultórios. Não obstante, na contemporaneidade, o analista confronta-se cada vez mais com questões clínicas que o obrigam a pensar o que fazer diante da lógica da negação do sujeito, do extermínio, da violência da falta de limite do sujeito para com seu próximo. Tanto mais que atualmente a onipresença do choque e dos traumas ameaçadores da vida faz supor que as neuroses traumáticas, sintomas psicossomáticos, toxicomania e patologias do ato roubarão a cena da histeria ou da neurose obsessiva neuroses marcadas, conforme as diretrizes da primeira tópica, pelo trauma sexual.
Um exemplo paradigmático da clínica contemporânea é apresentado por Maria Anita Carneiro-Ribeiro em Sobre o pensamento (2006, p. 61). A partir do atendimento do jovem que dizia só se sentir vivo ao bater em alguém, atuação cada vez mais difundida entre os pit boys que perambulam pelas boates de nossas cidades, mostra que, no caso particular desse paciente, a querela em torno das expressões “patologias contemporâneas” e “novas patologias” se dissipa diante da observação clínica de que o incremento da violência no rapaz é signo da velha e conhecida esquizofrenia, embora não desencadeada. Com precisão e dentro dos limites que definem o campo da psicanálise, a autora sublinha que na falta do Nome-do-Pai em si mesmo um trauma irrepresentável , o jovem só pode se sustentar na atividade de espancar o próximo. O outro, seu reflexo nos espelhos da boate, precisa ser espancado para que possa manter a unidade de seu eu fragmentado, e tornar-se alguma coisa: “pura adrenalina”, conforme disse na entrevista em que ficou evidente a falta de recurso à nomeação. A analista não cede de seu desejo diante de um quadro de esquizofrenia: entrega um cartão com nome e telefone ao jovem que fora trazido pelos pais, na esperança de que um dia qualquer ele se sirva de seu gesto. O importante é que se trata de um gesto que alarga os horizontes do lugar e da intervenção do analista.
Em consonância com as indicações já oferecidas, e à luz da Segunda Tópica e dos conceitos lacanianos até aqui abordados, resta analisar, ainda que rapidamente, algumas outras pistas que Freud deixou em aberto acerca da etiologia do sofrimento na modernidade. Endossando a idéia de alguns autores, de que não estamos vivendo um momento de ruptura com relação à modernidade (Rudge, 2006, p. 15), encontro que em A moral sexual civilizada (1908), Freud ressalta alguns elementos que se difundiam em sua época em termos muito próximos àqueles com que hoje se descreve a contemporaneidade: crescimento das exigências impostas ao individuo, ânsia pelos prazeres materiais e pelo dinheiro, luxo sem precedentes, pressa, agitação, conflitos religiosos, sociais e políticos, que exigem violentos esforços da mente e roubam tempo à recreação e ao lazer. Uma nova doença típica da sociedade moderna, descoberta em solo americano no final do século XIX, a neurastenia designava um excesso de natureza tóxica que se abate sobre o sujeito. Freud considera o sexual como fator básico dessa neurose e a classifica como uma neurose atual, ao lado da neurose de angústia e da hipocondria, diferenciando-as da psiconeurose, matéria-prima do trabalho analítico dos primeiros tempos de sua clínica. Nesse mesmo texto, faz uma referência à toxicomania como algo fora das representações, à qual estão submetidas as psiconeuroses.
Uma leitura dessas coordenadas à luz do mito de Totem e tabu (1913) e de Moisés e o monoteísmo (1939), textos que apresentam na elaboração lacaniana diferentes versões do pai, permite decifrar uma preocupação latente no escrito de 1908, que diz respeito justamente ao declínio da função paterna. Ou seja, desde a primeira tópica, Freud acusava que a autoridade simbólica de seu tempo não mais oferecia garantias sólidas aos excessos pulsionais. Estamos assim autorizados a tentar aproximar as neuroses atuais e a toxicomania das neuroses traumáticas, dos fenômenos psicossomáticos, da anorexia, da bulimia enfim, de uma série de patologias que desafiam o analista a instaurar o discurso analítico, na medida em que o declínio, cada vez maior, da função paterna na contemporaneidade abala os limites estruturais do sujeito na linguagem. Se as psiconeuroses estão submetidas ao trauma sexual que fundamenta a transferência, e conseqüentemente à narrativa da história do sujeito, nas neuroses atuais a pulsão de morte gera o excesso ou a escassez, deixando o sujeito à mercê do gozo implacável e devastador da falta de libido. Há, portanto, uma correspondência entre o excesso do gozo mastubartório na neurastenia, e o mal-estar atual que concerne a uma liberação de gozo, sem sentido, que não passa ao inconsciente.
Se a clínica psicanalítica deixou para trás as neuroses atuais, dada a impossibilidade que Freud encontrou em construir com esses pacientes uma neurose de transferência, não seria a hora de voltar a esse arquivo da psicanálise para, a partir daí, repensar o lugar do analista diante de outros fenômenos que também fogem à representação? Em que se pode sustentar a palavra e o ato do analista, hoje, para subverter o empuxo ao gozo sem limite e à produção maciça de objetos que garantam a conjugação do verbo deletar?
Qualquer esforço teórico que se possa fazer para produzir algum saber sobre estas questões não pode ser destacável da prática clínica e de um projeto de transmissão. Quanto ao primeiro ponto, a experiência de uma análise, a vivência na transferência, ainda é insubstituível para conduzir o sujeito a tomar posse de sua história, a fortalecer seus laços sociais e fornecer subsídios à teorização. Quanto à transmissão da psicanálise, tudo vai depender da responsabilidade do analista de, em escutando as subjetividades contemporâneas, retornar às escritas teóricas da psicanálise e daí extrair conseqüências e propostas que possam fornecer às outras disciplinas, e a ela própria, ferramentas para fazer frente à compulsão à destruição, ao gozo ilimitado, às passagens ao ato da violência assassina, que não cessam de aumentar neste novo século.
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Endereço para correspondência
Betty Bernardo Fuks
Av. Rui Barbosa, 500 / 602 22250-020 Rio de Janeiro/RJ
Tel.: (21) 2553-0180
E-mail: betty.fuks@gmail.com
Recebido em 17/09/06
Aprovado em 15/03/07
1Psicanalista; Professora do Curso de Especialização (PUC-RJ); Professora do Mestrado de Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA); Autora de Freud e a judeidade: a vocação do exílio e Freud e a cultura.