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versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.11 n.21 São Paulo dez. 2007
ARTIGOS
Marguerite Duras e a escritura do feminino1
Marguerite Duras and the writing of the feminine
Isabel Fortes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos
RESUMO
O artigo desenvolve algumas questões sobre o encontro possível entre psicanálise e literatura. A partir da obra de Marguerite Duras, podemos alargar a reflexão teórica sobre a questão do feminino na teoria psicanalítica, especificamente da forma como é desenvolvida nas teorias de Freud e de Lacan. Se na psicanálise o feminino está circunscrito ao campo do indizível, à falta de um significante que lhe seja próprio, o texto literário de Duras aproxima-se de uma escritura possível do feminino. Assim, se na teoria psicanalítica o feminino é o impossível de ser dito/escrito, na literatura testemunhamos como Marguerite Duras vai mais além em relação a esses dois autores, pelo menos no que diz respeito à possibilidade de escrever o feminino.
Palavra-chave: Feminilidade, Castração, Lógica do não-todo, Marguerite Duras, Escrita feminina.
ABSTRACT
The article deals with a possible common ground between psychoanalysis and literature. Starting from Marguerite Duras’s work, we can extend the theoretical thinking about the feminine in psychoanalytical theory, particularly the way it is presented in Freud’s and Lacan’s theories. While in psychoanalysis the feminine belongs to the realm of the non effable, lacking a significant of its own, and therefore can only be formulated negatively (woman as not-entirely phallic) Duras’s literary writing comes close to a possible way to formulate the feminine.
Keywords: Femininity, Castration, No-totalizing logic, Marguerite Duras, Feminine writing.
O encontro entre dois campos de saber não é sem atritos. Por isso mesmo é muito enriquecedor, pois exige um esgarçamento dos conceitos até as zonas de limite que marcam as fronteiras com um outro campo. Articular dois campos epistemológicos conduz a uma expansão de cada um deles, fazendo operar contribuições recíprocas, por meio de um circuito constante de ida ao outro campo, e retorno ao campo de partida. Muitas vezes, o conceito de uma teoria é colocado em xeque no confronto com um outro domínio do saber, o que obriga o pesquisador a uma atitude positiva de estar permanentemente reavaliando a operacionalidade dos conceitos que utiliza para compreender sua prática.
Na psicanálise, a atitude de reavaliação constante dos conceitos já é intrínseca ao próprio campo, pois a clínica exige dos analistas a permanente reflexão sobre a operacionalidade dos conceitos no trabalho analítico. Vale a pena lembrar que tanto Freud quanto Lacan construíram suas teorias a partir dos impasses que iam encontrando na clínica. Foi através dos obstáculos que iam se apresentando no trabalho com os pacientes que a psicanálise pôde avançar em suas teorizações.
Psicanálise e Literatura
Desse modo, o encontro entre Psicanálise e Literatura conduz a esta postura de abertura para um outro modus operandi. No presente artigo, a direção deste encontro se dá no sentido de buscar na literatura contribuições para enriquecer a pensabilidade das teorizações psicanalíticas. No texto Hommage fait à Marguerite Duras, du Ravissement de Lol V. Stein (1965), Lacan mostra como a prática da letra converge com o uso do inconsciente, e faz-nos lembrar Freud, quando este alerta ao psicanalista que em sua matéria o artista sempre o precede.
Assim, a proposta metodológica de trabalhar com psicanálise e literatura, longe de buscar no texto literário a biografia ou, pior ainda, a neurose do autor, forma menor do encontro entre psicanálise e literatura, será a de fazer ressoar o texto literário com alguns conceitos psicanalíticos, buscando alargar a análise do texto com o uso dos conceitos, assim como estender o conceito e a reflexão teórica que estão em jogo ao se trabalhar com a literatura.
É com essas questões em mente que propomos fazer uma análise de alguns fragmentos de romances da obra da escritora francesa Marguerite Duras, com a finalidade de trabalhar o tema do feminino na psicanálise, dando ênfase à questão da identificação feminina.
O feminino na psicanálise
A teoria psicanalítica propõe que o feminino está circunscrito ao lugar de um enigma, de uma região de difícil captura. Freud lançou e relançou esse enigma ao longo de sua obra, a ponto de chamar o tema do feminino de “o continente negro da psicanálise”, tendo sempre confessado sua dificuldade em definir o feminino, como podemos testemunhar na seguinte fala: “a grande questão, que nunca foi respondida e que ainda não sou capaz de responder, a despeito de meus trinta anos de pesquisa da alma feminina, é ‘Que deseja a mulher’”? (Freud apud Jones, 1989, p. 416).
Desse modo, em várias observações feitas por Freud, podemos perceber o quanto o feminino era, para ele, um lugar de terras incógnitas.
Freud circunscreve este enigma às noções de castração e de inveja do pênis. Em Organização genital infantil (1923), a sexualidade feminina será circunscrita à primazia do falo na sexualidade, ficando a menina atrelada à noção da falta do pênis. Há uma dissimetria entre meninos e meninas no curso do desenvolvimento da sexualidade. A teoria do complexo de castração atribui ao pênis uma função prevalecente, como símbolo, no processo de assunção do próprio sexo. O falo deve ser compreendido como símbolo, sendo a posição fálica a organizadora da diferença sexual, e portanto, da constituição do sujeito humano como sujeito da cultura, como sujeito da linguagem. Vemos assim que há em Freud uma associação direta entre sujeito sexual e sujeito social, já que a diferença sexual marca a constituição do humano a partir da linguagem e da cultura (Freud, 1923).
No entanto, apesar da ênfase dada ao falo, ao Édipo e à castração nas compreensões freudianas acerca do feminino, nos textos mais tardios sobre essa temática (Sexualidade feminina, de 1931, e Feminilidade, de 1932), a questão da mulher será analisada por meio da intensidade da relação da menina com sua mãe. Será no período pré-edipiano, portanto, que em um segundo momento Freud propõe encontrar a chave para a compreensão do enigma da feminilidade.
Lacan parte das formulações freudianas sobre o feminino, desenvolvendo este tema a partir da lógica do significante que marcou grande parte de sua pesquisa. Não existe um significante que descreva o ser da mulher, já que esta não se inscreve na operação do significante falo. A mulher é “não-toda”, pois não está totalmente inserida na ordem fálica; uma parte dela estando remetida a um outro lugar, que será na teoria lacaniana o lugar do gozo feminino. No Seminário 20: mais, ainda (1985), Lacan mostra que por ser “não-toda”, a mulher teria, em relação ao gozo fálico, um gozo suplementar. Se seu gozo fosse complementar, haveria a possibilidade de um todo, de formar uma totalidade do pensamento lógico. Será, portanto, a partir da lógica do não-todo, que Lacan delineará um lugar específico para a feminilidade, circunscrevendo a mulher a uma lógica que aponta para o nãotodo, para a incompletude, para a falta. A mulher, portanto, ocupa o lugar que circunscreve a impossibilidade da totalidade do pensamento e da linguagem, ao apontar para a incompletude.
Escrever o feminino
Será que podemos encontrar ressonâncias das teorizações de Freud e de Lacan sobre a problemática do feminino com a obra da escritora francesa Marguerite Duras? Essa é a questão central que pretendemos desenvolver neste artigo.
Muitos autores associam a obra de Duras ao tema do feminino. Seus textos apontam para o feminino não somente pela presença maciça de personagens femininas em seus romances, mas também pelo aspecto formal de sua escrita.
No livro Boas falas (1974), transcrição de uma entrevista que concede à jornalista X. Gauthier, a própria Duras associa seu modo de escrever ao feminino. Ela diz que seus romances são dolorosos de ler, pois se associam a uma região ainda não explorada, região essa que aponta provavelmente para o feminino. O feminino é descrito por ela como “um terreno de experimentação”, uma “região ainda não explorada”:
Esses livros são dolorosos de escrever, de ler, e essa dor deveria nos conduzir a um terreno... um terreno de experimentação. Bem, quero dizer, eles são dolorosos, é doloroso porque é um trabalho relativo a uma região (...) ainda não explorada... É aquele branco da seqüência de que você falava. Não quero dizer psicanálise... esse feminino, digamos. Não? Talvez seja isso que provoque a dor (Gauthier, 1974, p. 16).
Duras aproxima o feminino da dor, pois segundo ela, mostrar o branco, mostrar o buraco, causa a dor.
X. Gauthier também insere os romances de Duras em um espaço que seria propriamente chamado de feminino, ao afirmar que os personagens “causam uma inquietação pungente deslumbrante até a angústia, até o sofrimento, que me deslocava para outro espaço, corporal, que me parecia, afinal, um espaço de mulher” (Gauthier, 1974, p. 9).
No livro Territoires du féminin avec Marguerite Duras (1978), M. Marini vai ainda mais além nessa indagação, perguntando se a escrita durassiana não daria um novo nome ao feminino, avançando na possibilidade de fundar na linguagem um sujeito sexuado no feminino.
Ora, se o sujeito é tradicionalmente o sujeito da razão, sujeito opaco concebido no contexto da sociedade patriarcal, pensar em um sujeito no feminino é algo de uma radical subversão. Para M. Marini, a prática da escritura de Duras aponta para uma “transgressão operada por um sujeito feminino em seu próprio nome” (p. 49). Essa operação, para a autora, não conduziria à abertura de uma brecha que transforme o sistema patriarcal presente, pois não há dialetização possível entre esses dois pólos. Um sujeito no feminino seria uma transgressão ainda maior do que a transformação do masculino por meio do diálogo entre o pólo feminino e o pólo masculino, pois é a noção de sujeito que ficaria totalmente transformada quando um sujeito no feminino saísse das sombras da história para fazer parte da história oficial.
Duras, em Boas falas (1974), também abraça esta idéia, ao dizer que a questão do sujeito em seus livros surge do fato de que neles o sujeito tradicional cartesiano é totalmente questionado: “o sujeito de Descartes, o sujeito tradicional, pleno, opaco e redondo por completo, ele é todo crivado... estilhaçado” (p. 15).
Assim, a possibilidade de uma escrita feminina exerce um jogo de forças com o contexto social presente, ao abrir um espaço totalmente novo, único, para a emergência de uma “palavra verdadeira sobre o corpo e o desejo das mulheres” (p. 50). O que se delineia, a partir daí, é um espaço ainda vazio, lugar de apelo a um novo significante, à criação de um significante sexuado no feminino. Se não existe uma palavra que funde o sujeito na linguagem como sujeito feminino, a escrita de Marguerite Duras aponta para um espaço vazio que delimita o lugar do qual um novo significante poderia surgir: um sujeito da enunciação que se situaria como sexuado feminino. É a partir de um lugar que remete ao feminino que Duras deixa-se ser levada para este “terreno de experimentação”, como foi demonstrado mais acima.
É nesse sentido que M. Marini discorda da idéia de M. Montrelay em Sur le ravissement de Lol V. Stein (1977), quando esta diz que as personagens de Duras nos remeteriam para a região da falta e da castração. A perda a que se reportam as personagens de Duras & sempre transparentes, escorregadias, perdidas & indicaria uma região que vai mais além da visão freudiana da castração.
A discussão acima é bastante importante para a questão central que tentamos desenvolver neste artigo, pois nossa hipótese é que se há ressonâncias entre a obra durassiana e a teoria psicanalítica no que diz respeito ao feminino, ou seja, se em ambas o feminino está circunscrito ao lugar do mistério e do enigma, há uma diferença crucial no que diz respeito à possibilidade de escrever este enigma.
Se em Freud e Lacan o mistério feminino é visto por um viés negativizado, ou seja, pela falta e pela castração, em Marguerite Duras vemos uma positividade do enigma. Se há fragilidade, torpor, indiferença e evanescência nas personagens, essa evanescência é a indicação de uma região feminina que não se quer de uma outra forma. A ausência aqui simplesmente é, não procurando algo que a completaria, não se sentindo sequer incompleta. A positividade do buraco aqui é que ele não busca ser preenchido, sendo ele próprio a zona do feminino, aparecendo na escrita por meio de uma “palavra-buraco”, impossível de ser pronunciada, mas passível de se fazer ressoar, como demonstra a seguinte citação, retirada do livro O deslumbramento de Lol V. Stein: “na falta de sua existência, ela se cala. Teria sido uma palavra-ausência, uma palavra-buraco, escavada em seu centro para um buraco, para esse buraco onde todas as outras palavras teriam sido enterradas. Não seria possível pronunciá-la, mas seria possível fazê-la ressoar” (1986, p. 35).
Ao mesmo tempo em que aponta para um nada de sentido, a ausência & que não pode ser pronunciada & pode se fazer ressoar. É justamente nesse ressoar, na aparição e desaparição dessa “palavra-buraco”, que ecoa um lugar para o feminino nos romances durassianos.
Por isso mesmo, arriscamos afirmar que o feminino em Duras, apesar de ter uma proximidade, apresenta-se de uma forma diferente daquela em que este tema é teorizado pela psicanálise. Repetimos aqui: a proximidade entre o feminino psicanalítico com os romances de Duras está em que para esta autora o feminino é também enigma, é também mistério, é também difícil de ser apreendido pela linguagem, ou seja, também aponta para os limites da linguagem. A diferença está em que Duras enfrenta essa dificuldade para escrevê-lo, conseguindo, com sua mestria de escritora, conduzir o leitor para regiões inusitadas, um terreno de experimentação na escrita que adentra a zona do feminino.
Se para Lacan (1985) o feminino é indizível, pois só o que é dizível é o significante operado pelo falo, Marguerite Duras, se não torna o feminino opacamente dizível, faz com que ele possa se fazer ressoar por intermédio da escrita. Se a certa altura Freud delega a problemática do feminino aos poetas, confessando seu limite pessoal em avançar teoricamente sobre este tema, com Duras vemos que Freud tinha razão, ou seja, que talvez somente por meio da interface com a literatura consigamos ir mais adiante nas teorizações acerca do feminino na psicanálise. Se retomarmos a introdução feita no início do presente artigo, a literatura pode ser uma fonte rica através da qual a psicanálise pode alargar seus próprios conceitos.
O estilo de Marguerite Duras
Ao se analisar o aspecto formal da escrita durassiana, constata-se que se trata de uma escrita feminina, na medida em que não é guiada pela linguagem da “fala-falo”. No livro Boas falas, Duras conta que escreve a partir de uma “zona branca”, uma espécie de zona de ausência, onde os brancos se impõem: “são brancos que se impõem, nos levando a uma zona de ausência” (1974, p. 12)2. É um lugar no corpo, segundo a escritora, a partir do qual a respiração fica rarefeita, onde há uma diminuição da acuidade sensorial. Ela diz que no ato de escrever não se preocupa jamais com o sentido. O que irrompe primeiro é a palavra, e só depois dela é que virá então a significação e a sintaxe. Trata-se de uma forma de escrever aparentemente desintegrada, mas que se revela como uma maneira de organizar aquilo que já vem desorganizado. São frases alongadas, cujo verbo parece se esquecer do sujeito. As frases mudam rapidamente, por meio de uma abundância de pontuações, surgindo uma espécie de silêncio decorrente destas pontuações, como pode testemunhar o trecho abaixo, extraído do livro O deslumbramento de Lol V. Stein:
Dancei com a mulher de U. Bridge, realmente, e falei com ela, também cometi esse crime, com alívio, cometi. E Tatiana teve que ficar certa de que era Lol V. Stein. Mas o que acho interessante em Lol V. Stein, teria descoberto sozinho, não foi ela quem me mostrou, não é coisa dela? (Duras, 1964/1986, p. 119).
Acima vimos como o excesso de pontuações e a rapidez das frases conduz menos a uma compreensão, e mais a uma espécie de sensação que faz o leitor entrever o que sente o narrador. O mesmo efeito decorrente do uso da pontuação pode ser detectado pela leitura do seguinte parágrafo de O vicecônsul, no qual a utilização dos dois pontos promove uma espécie de suspensão na respiração do texto:
Olha-os de alto a baixo. Dirão mais tarde: ele nos olhava de alto a baixo. Dirão: tinha espuma colada no canto dos lábios. Nós éramos uns poucos, só olhavam para ele, havia um silêncio profundo quando ele gritou. É a cólera, onde quer que fosse ele se assinalou por súbitos acessos de cólera, frenesis iguais àquele... Pensam: este homem, é a cólera, ei-la, vêmo-la” (Duras, 1965/1982, p. 118).
O texto durassiano pode ser associado, sem dúvida alguma, ao que L. Castello Branco e R. Silviano Brandão (1989) apresentam como a possibilidade de uma escrita feminina, de um “texto outro”, que se erige de um outro lugar que não o da função fálica, mas que insiste em se afirmar. A autora descreve essa escrita como um discurso com palavras que se proliferam e se esvaziam de sentido, realizando-se por esta via um trabalho de extenuação da própria linguagem, que a leva a seu próprio limite. Trata-se de uma operação da linguagem, que se faz de maneira ao mesmo tempo prolixa e elíptica, excessiva e econômica, detalhista e lacunar (p. 140-141). Colocar a linguagem frente a seu próprio limite produz o que ela denomina de um “texto de gozo”, aproximando o modo de escrever feminino ao conceito de gozo em Lacan. A escrita feminina é similar ao gozo, “já que ela também se constrói de deslizamentos que se dão por elipses, por absurdas associações, por saltos inesperados” (p. 140).
Observamos, na escrita durassiana, o surgimento desses saltos inesperados, fazendo aparecer os brancos, que segundo X. Gauthier (1974), se dão como anestesias, supressões, como uma espécie de “torpor psíquico”, ao qual somos conduzidos pela leitura.
No entanto, vale esclarecer que esse anestesiamento, esse torpor psíquico, de forma alguma intervém na escrita no sentido de aliviar o leitor da dor que o texto provoca. Os livros são dolorosos de ler, há uma dor visceral apresentada pelos personagens, pois estes não analisam a loucura para com ela relacionar-se a uma certa distância. Ao contrário, os personagens mergulham na loucura sem nenhum distanciamento, como analisa J. Kristeva:
Com Duras, temos a loucura em plena luz. “Tornei-me louca em plena razão” (O amante). Estamos presentes no nada do sentido e dos sentimentos que a lucidez acompanha em sua extinção, e assistimos a nossos próprios infortúnios neutralizados, sem tragédia nem entusiasmo, claramente, na insignificância frígida de um entorpecimento psíquico, signo minimal, mas também signo último da dor e do arrebatamento (1989, p. 207).
As personagens femininas nos romances de Duras
Lol V. Stein, personagem do livro O deslumbramento de Lol V. Stein, é enigmática, ausente e louca:
No colégio, diz ela (Tatiana Karl), e não era a única a pensar dessa maneira, já faltava algo a Lol para estar & ela diz: presente. Dava a impressão de tolerar num tédio tranqüilo uma pessoa com quem ela julgava ter a obrigação de parecer e de quem perdia a lembrança na menor oportunidade. (...) Lol era engraçada, gozadora inveterada e muito sutil, embora uma parte dela estivesse sempre desligada, longe do interlocutor e do momento. Onde? (...) Tatiana tenderia a acreditar que na verdade era, talvez, o coração de Lol V. Stein que não estava & ela diz: presente &, provavelmente ele viria, mas ela não o havia conhecido (Duras, 1986, p. 8).
Lol escapa a qualquer tentativa de compreensão, ela é escorregadia, incapturável, mas ao mesmo tempo totalmente transparente. Lol é uma mistura de loucura e arrebatamento, perdida pelas coisas e pessoas do mundo. Ela se dissolve, escapando de qualquer definição, como diz Jacques Hold, amante de Lol: “foi essa minha primeira descoberta a seu respeito: nada saber de Lol já era conhecê-la. Podia-se, pareceu-me, saber menos ainda dela, cada vez menos, sobre Lol V. Stein” (Duras, 1986, p. 60).
Nos romances de Duras há uma permeabilidade das personagens femininas umas às outras. A mulher apresenta uma espécie de plasticidade que a leva muitas vezes a tomar sua imagem pela de uma outra mulher, a confundir-se com a outra. Em Détruire-dit-elle (1969), Alissa e Elisa vêemse como uma só na frente do espelho; em O vice-cônsul (1982), Anne- Marie Stretter, mulher do cônsul de França em Calcutá, é a única pessoa que reconhece o idioma da mendiga de Savannaket; em Nathalie Granger (1973), a protagonista vive em uma casa habitada só por mulheres: ela, a mãe e a amiga.
Também em Le ravissement de Lol V. Stein, vemos esta permeabilidade entre as personagens femininas. Ao voltar a S. Tahla, cidade em que nasceu, Lol encontra sua amiga da infância, Tatiana Karl, e seduz o amante da amiga. Ele se apaixona por Lol e quer deixar Tatiana, mas Lol suplica-lhe que não o faça. Pelo contrário, insiste em que ele dê cada vez mais atenção a Tatiana Karl; é a amiga que ela segue quando vai atrás do amante: “ela ama, ama aquele que deve amar Tatiana” (Duras, 1986, p. 99).
Assim, a plasticidade de Lol a leva a tomar para si a imagem de Tatiana. Lol busca uma identidade, mas trêmula e vacilante é a identidade da qual ela se aproxima, e no entanto, a única que lhe é possível tentar capturar: ocupar o lugar da amiga junto a seu amante, buscando com isso desvendar o enigma da feminilidade. Através do homem, venera a mulher:
Depois, aos gritos, ela insultou, suplicou, implorou que a pegasse e largasse ao mesmo tempo, acossada, procurando fugir do quarto, da cama, voltando-se para fazer-se capturar, sabida, e não houve mais diferença entre ela e Tatiana Karl, exceto em seus olhos isentos de remorso e na designação que fazia de si mesma & Tatiana, quanto a ela, não se designa pelo nome &, e nos dois nomes que ela se dava: Tatiana Karl e Lol V Stein (Duras, 1986, p. 143).
Détruire-dit-elle (1969) é um outro romance de Duras que apresenta um encontro especular entre duas mulheres. Alissa e Elisa, como seus nomes já denunciam de saída, vivem uma relação de espelho. O romance é perpassado por diálogos entre quatro personagens, as duas mulheres e dois homens, através dos quais vai se descortinando as impressões que cada um vai tendo dos outros, nas quais eles ora se fundem ora se diferenciam. A conversa entre as duas mulheres é um diálogo em eco & uma termina a frase da outra, como se fossem ao mesmo tempo uma e outra mulher.
Destruir, diz ela: o título do livro já indica a destruição que essa relação implica. A fusão promove o desatino de ter que destruir para fundir-se na outra, sendo essa destruição própria das relações especulares, nas quais só existe um lugar imaginário para o um, não havendo espaço para o outro, para a alteridade. A dor dessas duas mulheres, implacável, é a loucura feminina de buscar na outra mulher a própria existência. Em certo momento do romance, as duas mulheres olham-se ao mesmo tempo no espelho do quarto e vêem-se como uma só. Uma mesma mulher, uma mesma estranheza, uma mesma identidade instável.
Podemos aproximar, aqui também, essa permeabilidade das mulheres durassianas umas às outras com a problemática da identificação feminina na teoria psicanalítica. Se não existe o significante sexuado no feminino, a mulher identifica-se com o masculino, não possuindo um traço distintivo que a diferencie como mulher. A questão da identificação para a mulher está em como fazer reconhecer uma insígnia da feminilidade, uma vez que só há identificação ao significante falo. O falo lhe dá a possibilidade de um nome, mas não lhe oferece uma especificidade do feminino. O feminino, ao não se fazer nomeado, aciona um movimento de busca de insígnias. Essa especificidade, esse traço de seu ser propriamente feminino, a mulher buscará na relação com a outra mulher. Esse índice, esse signo do que é ser mulher, somente tomará para ela alguma forma possível na figura da outra mulher. É assim que Freud desenvolve a questão da histérica, ao ensinar-nos, com o caso Dora, a importância que terá para a paciente a figura da Srª K., mulher valorizada pelo pai de Dora (Freud, 1905).
Nesse sentido, observamos novamente o encontro fecundo entre psicanálise e literatura, na medida em que o texto literário pode ser aproximado dos conceitos, ressaltando e trazendo novos elementos para a questão teórica psicanalítica.
Conclusão
Concluindo, portanto, buscamos neste artigo dar luz a algumas questões sobre o encontro possível entre psicanálise e literatura. A partir da obra de Marguerite Duras, podemos alargar a reflexão teórica sobre a questão do feminino na psicanálise. Se nessa teoria o feminino está circunscrito ao campo do indizível, à falta de um significante que lhe seja próprio, o texto literário de Duras aproxima-se de uma escritura possível do feminino. A partir dos brancos que se impõem ao texto, da recusa radical da sintaxe, da despreocupação com o sentido, sua escrita conduz seu leitor para um terreno de experimentação, que para muitos autores, e para a própria escritora, pode ser considerada uma região própria do feminino.
Assim, se na teoria psicanalítica, especialmente em Freud e Lacan, o feminino é o impossível de ser escrito, se só pode ser dito a partir do reverso negativo do falo (a mulher como não-toda fálica), na literatura testemunhamos como Marguerite Duras, mestra maior da arte da escritura, não se detém na constatação do impossível anunciado por Freud e Lacan, avançando em relação a esses dois autores, pelo menos no que diz respeito à possibilidade de escrever o feminino. O feminino como falta e como castração é uma construção que se faz a partir de uma negação, isto é, o feminino como desejando ter aquilo que o masculino tem (inveja): um desejo que busca ser preenchido por aquilo que lhe falta.
Ora, as zonas brancas de Duras expressam-se a partir de uma positividade. A ausência, a indiferença, a dissolvência de Lol são exatamente isso: um perene dissolver-se. Se a mulher durassiana caminha, ela o faz no sentido de se perder, sendo a experiência da perda em Duras diferente da experiência da falta na psicanálise, já que podemos diferenciar nos dois modos direções distintas do desejo. Enquanto a noção do feminino como falta aponta para um modo do desejo que busca sua saciação e seu preenchimento pelo objeto que falta, a experiência da perda nas personagens de Duras afirma a perda como um estado do qual não se busca uma saída, mas como uma experiência positiva, que é buscada no próprio movimento de se perder. A perda, para as personagens de Duras, é a própria direção, já que elas buscam “uma indicação para perder-se”.
Se não for assim, como compreender a frase com que Duras abre o romance O vice-cônsul?
Ela caminha, escreve Peter Morgan. Como não voltar? É preciso perder-se. Não sei. Vais saber. Gostaria de uma indicação para me perder. É preciso não ter segunda intenção, dispor-se a não mais reconhecer alguma coisa do que se conhece, dirigir seus passos ao ponto mais hostil do horizonte, uma espécie de extensão imensa de pântanos que mil escarpas cortam em todos os sentidos não se sabe por quê (Duras, 1982, p. 7).
Referências
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Endereço para Correspondência
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recebido em13/03/06
versão revisada recebida em 20/04/07
aprovado em 08/05/07
1. Este artigo foi escrito a partir das notas apresentadas na mesa-redonda “Psicanálise e Literatura”, no II Seminário da Linha de Pesquisa Literatura e Comparativismo do Instituto de Letras da UERJ, 06/10/2005.
2. Sobre essa idéia de “brancos que se impõem”, é interessante remeter o leitor ao livro A branca dor da escrita: três tempos com Emily Dickinson (2003). A autora analisa a obra de Dickinson associando a dor, a pungência e a extenuação de seus escritos à cor branca, à “branca dor”: “e o seu ‘passo espasmódico’ (...), porque muito bem marcado em sua poesia de ritmo entrecortado por travessões, pontuações inusuais, vazios inesperados, viria pontuar sua branca dor, sua agrafia, sua tentativa de arrancar o que dizer do silêncio” (Castello Branco, p. 33). Em suas entrevistas, Marguerite Duras sempre associou a dor ao feminino.