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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.1 no.1 São Paulo 1996
Pré-escola terapêutica lugar de vida . Um dispositivo para o tratamento de crianças com distúrbios globais do desenvolvimento
Maria Cristina Kupfer
Psicanalista, professora doutora do Instituto de Psicologia da USP, diretora geral do Lugar de Vida
Um olhar atento às crianças que costumam ser chamadas de deficientes mentais poderá localizar entre elas algumas que escapam às características gerais dessa população. Estão ali inseridas por apresentarem grande retardo no desenvolvimento e por demonstrarem grande dificuldade em aprender. São, porém, crianças que apresentam graves distúrbios de comportamento: batem-se, mordem-se sem razão aparente, por vezes isolam-se em um canto, não conseguem manter uma conversação porque não respondem, embora algumas façam uma profusão de perguntas sem esperar respostas. Vez por outra, surpreendem com a demonstração de sinais de inteligência. Fazem rápidas passagens pelas instituições escolares, "transferidas" - de fato, expulsas - de uma para outra, pois produzem um desassossego que não chega a ser nomeado pelos educadores. O que se diz sobre elas é que são "estranhas".
Ao procurar atendimento médico e psicológico, deixam de ser chamadas de "estranhas" e recebem nomes "científicos": são agora psicóticos, borderlines, autistas. Supõe-se então que são portadoras de desordens físicas que os exames nem sempre acusam, fala-se de deficiências auditivas que não são detectadas, de disfunções neurológicas etc.1 Seja qual for o diagnóstico, o destino dessas crianças é um só: a exclusão. A grande maioria delas não encontra nem atendimento psicoterapêutico público nem escolas especializadas que as recebam. São duplamente desafortunadas: além de pertencerem às camadas mais pobres da população, o que as obriga a buscar a já insuficiente rede de atendimento pública, padecem de um "mal" pouco conhecido, que poucos profissionais estão dispostos a enfrentar, pois não dispõem nem de formação nem de recursos adequados para o seu tratamento.
O Brasil não dispõe de estatísticas capazes de apontar o número de crianças que se encontram hoje nessa situação de pobreza conjugada às psicoses ou ao autismo. Uma das principais razões para a ausência de dados epidemiológicos está na profunda discordância, entre os profissionias da área, sobre o que sejam as psicoses infantis e sobre quais sejam suas causas. O DSM-III R coloca dentro de uma mesma categoria as crianças que eram anteriormente classificadas como esquizofrênicas, psicóticas e autistas, sejam quais forem as causas admitidas. Às crianças desta ampla categoria foi atribuído o nome de "portadores de distúrbios globais do desenvolvimento" (Associação Americana de Psiquiatria, 1989).
Essa nova categoria possui um mérito: o de permitir uma avaliação do número de crianças que aí se encontram, e portanto os números da exclusão.
Os distúrbios globais do desenvolvimento são propostos em substituição clínica da perturbação, na qual muitas áreas básicas aos quadros de autismo e psicose porque "descrevem mais precisamente a essência do desenvolvimento psicológico são afetadas ao mesmo tempo e em níveis graves", afirma o DSM-III.
Dentro dessa nova categoria encontram-se, de acordo com as estatísticas americanas apontadas nesse manual, 10 a 15 crianças ou adolescentes em cada 10.000. Supondo-se que essa incidência seja semelhante no Brasil - que tem hoje, segundo o IBGE, uma população estimada de 60 milhões de crianças e adolescentes de até 17 anos (Crianças e adolescentes, 1989), 60.000 a 90.000 crianças e adolescentes estariam dentro desse quadro.
Estimar, dentre essas crianças, quais aquelas que não têm condições de submeter-se a um tratamento adequado por falta de recursos econômicos é tarefa ainda mais complexa. Não existem estudos que permitam ter uma noção da incidência dos distúrbios globais de desenvolvimento por faixa de renda. Sabe-se, apenas, -e este é um dado do DSM-III - R- que não há correlação entre nível sócio-econômico e aparecimento de distúrbios como as psicoses. Porém, a consulta aos dados estatísticos do IBGE já é suficiente para causar preocupações. Esses dados revelam que 50% das crianças e adolescentes de até 17 anos vivem em situação de pobreza - rendimento mensal familiar per capita de até 1/2 salário mínimo (Crianças e Adolescentes, 1989). Caso a estratificação por faixa de renda da população de crianças psicóticas - estimada por nós entre 60.000 e 90.000 crianças - não provocasse alterações na incidência geral, possibilitando o cruzamento direto entre faixa de renda e incidência de distúrbios globais do desenvolvimento, teríamos hoje no Brasil entre 30.000 e 45.000 crianças e adolescentes apresentando distúrbios globais de desenvolvimento.
Os dados disponíveis na rede pública sobre o tratamento oferecido a essas crianças são também imprecisos, em razão das discordâncias diagnosticas; entre as atendidas por um neurologista, pode haver algumas que um psicanalista diagnosticaria como psicóticas, e entre as classificadas como deficientes mentais pelos psicólogos poderia haver outras tantas psicóticas. A consulta aos números fornecidos pelo cepi - Centro de Epidemiologia, Pesquisa e Informação - dará ainda assim uma noção do tratamento oferecido atualmente às crianças psicóticas na cidade de São Paulo. A Secretaria de Saúde do Município criou recentemente uma rede de hospitais-dia em Saúde Mental. De acordo com a definição do cepi, um hospital-dia é "uma unidade ambulatorial especializada (...) para casos de crises psíquicas agudas que mereçam atenção intensiva de uma equipe multidisciplinar especializada em saúde mental, com objetivo de diminuir a intensidade do quadro (...)". Trata-se portanto de um equipamento apto a receber crianças portadoras dos distúrbios globais de desenvolvimento, uma vez que elas podem ser recebidas na crise e obter também um tratamento continuado através de "abordagens múltiplas (medicamentos, psicoterapias, terapia ocupacional, orientação e apoio familiar e atividades sócio-culturais-esportivas)", ainda segundo o cepi. Pois bem: na rede de hospitais-dia da Prefeitura, há apenas dois que recebem crianças, o que significa uma capacidade máxima de 85 vagas para toda a capital2 .
Não seria excessivo insistir na importância de tratar essas criancas. A ausência de tratamento pode gerar pelo menos duas conseqüências negativas: o sofrimento das crianças e de seus pais, de um lado e, de outro, o aumento do ônus público, já grande, com os custos de tratamento das doenças mentais incidentes na população adulta. As crianças não tratadas irão, inexoravelmente, engrossar duas fileiras: a dos "doentes mentais" e a dos deficientes mentais.
Quem e quantas são, em números mais exatos, essas crianças, como oferecer explicações e atendimento psicoterapêutico para suas profundas desarmonias evolutivas, como proporcionar-lhes oportunidades educacionais, como impedir que sejam retiradas do convívio social com outras crianças, como diminuir os riscos de cronificação? Como evitar tantos descaminhos diagnósticos, em que se perde um tempo precioso? Como garantir uma formação especializada para os profissionais de saúde mental que deparam com essas crianças?
A criação, na USP, de uma pré-escola terapêutica para crianças com problemas emocionais graves -o "Lugar de Vida"-, é uma tentativa de encontrar algumas respostas a essas perguntas. Em uma instituição desse gênero, busca-se oferecer às crianças atendimento psicoterapêutico e educacional integrados, desenvolver pesquisas sobre o diagnóstico e o tratamento dos distúrbios globais de desenvolvimento - psicoses, autismo e esquizofrenias -, e oferecer cursos de aperfeiçoamento e supervisão para profissionais da área.
A pré-escola escola terapêutica "Lugar de Vida" existe na USP desde 1991, e desde então vem ampliando suas atividades para atender à demanda crescente tanto de crianças como de profissionais em busca de formação.
Seguem-se considerações a respeito de três grandes eixos do trabalho no Lugar de Vida: o eixo educacional, os ateliês e a montagem institucional.
O EIXO EDUCACIONAL
Sabe-se que toda exclusão dos chamados "doentes mentais" do convívio com a sociedade em geral não propicia a sua recuperação. As tentativas de "desospitalização", o repúdio à internação cronificante e a condenação da segregação têm sido as bandeiras empunhadas pelas políticas atuais de saúde mental (Marsiglia, 1987).
Para uma criança, o principal agente de inserção social é sem dúvida a escola. Ora, as psicóticas e autistas estavam, até há bem pouco tempo, excluídas da escola e, portanto, do circuito social por dois motivos: não se pensava que eram capazes de aprender e era impossível mantê-las por muito tempo em uma escola, devido à sua instabilidade, agressividade ou comportamentos bizarros.
No entanto, fala-se atualmente cada vez mais das condições intelectuais que podem ser encontradas nessas crianças; são as "ilhas de inteligência" que permanecem intocadas, apesar da violenta interrupção de seu desenvolvimento provocada pela irrupção das crises.
O movimento natural, que se segue a essas novas considerações, deveria ser o de buscar a reinserção dessas crianças na escolarização regular, caso se queira ser fiel às políticas de saúde mental mencionadas. Caminhando na direção oposta, a criação de escolas especiais para autistas e psicóticos seria então acusada de "prática segregacionista".
No entanto, as tentativas de colocar essas crianças na rede escolar regular nunca foram de fácil execução. Tomem-se, por exemplo, as experiências européias reportadas em um Colóquio Internacional realizado na Noruega sobre esse tema (Integração de jovens deficientes no ensino obrigatório na Noruega, 1983). Ali se descrevem as tentativas feitas no sentido de manter em classes regulares do ensino público algumas crianças autistas e psicóticas: elas terminaram, depois de se verificar que as escolas acabavam criando classes especiais, em que havia apenas uma criança - exatamente a psicótica ou a autista, com quem o convívio se tornara insuportável.
Por isso, o Lugar de Vida é uma pré-escola: trata-se de um trabalho prévio, anterior à escola, que busca colocar nossas crianças em condições mínimas de freqüentar uma escola. De nada adianta tentar impô-las a uma professora, estando ainda instáveis, agressivas.
Assim, a reinserção escolar, no Lugar de Vida, é o alvo final, que eqüivale aos objetivos de diminuição do número de internações ou inserção no mercado de trabalho, usados pelos serviços de atendimento e hospitais-dia para adolescentes e adultos.
A "pré-educação" pode ainda prover uma sustentação imaginária para essa inserção social. "Meu filho está na escola", poderá dizer a si mesmo e aos vizinhos um pai que vê seu filho sair do Lugar de Vida segurando um trabalho de sucata. O menino terá colaborado com um único gesto, o de colar um tubo pintado - resto descartável - em uma base de papelão, fazendo-o ficar de pé. Mas o olhar que lhe dirigir seu pai terá valor mais estruturante que seu gesto: somado a outros que lhe serão dirigidos em outras ocasiões, é agora ao menino que poderá ajudar a "ficar de pé".
O TRABALHO NOS ATELIÊS
Os ateliês foram propostos nos mesmos moldes em que vêm sendo realizados nas instituições de tipo hospital-dia. Neles se propõe uma participação da criança nas produções culturais humanas, ao mesmo tempo em que se oferece um espaço de trabalho em que a ênfase não está na interpretação da loucura, mas na "socialização do discurso".
Nos ateliês, "trata-se, para a criança, de um jogo ao redor deste lugar que lhe é proposto; jogo que pode comportar toda a seriedade de um trabalho de criação, de exploração de novas vias que se oferecem a ela. Sua participação em uma prática social, em uma atividade humana, pode ser por ela colocada em questão usando o seu próprio estilo, sua própria história, declinando-a de modo singular. Ela aborda esse lugar de modo diverso e mutável. O grupo, na pessoa de algum adulto mais atento, acolhe então seu dito e seus atos para integrá-la na trama do ateliê" (Mannoni, 1987).
BASES INSTITUCIONAIS DO LUGAR DE VIDA
Uma instituição para crianças psicóticas precisa ser desenhada a partir da compreensão que se tem dessa patologia. Ou seja, a proposta das atividades, sua freqüência, seu arranjo e sua distribuição no decorrer do dia, nada disso pode ser casual. Mais do que isso, a hipótese de trabalho é a de que a própria montagem institucional deve funcionar como ferramenta terapêutica .
Pode-se dizer, grosseiramente, que em uma criança dita psicótica "o que falta é a falta". Dito de outro modo, a estrutura que as organiza pode ser comparada à de uma frase melódica sem um repouso na tônica, o que equivale a uma frase sem ponto final. A falta de ponto final, de uma pausa no enunciado, de um momento de conclusão, impede a emergência do sentido. As palavras voam sem o necessário momento de pausa, o momento que teria permitido o movimento de retroação e de compreensão do que havia sido enunciado até aí. A parada, renúncia à entrega ao movimento da linguagem, que tende para o constante deslocamento, implica que se introduza aí uma falta, uma suspensão, sem a qual no entanto o sentido não pode advir. Então, o que se diz é que falta à criança dita psicótica o equivalente a esse ponto final, falta-lhe esse momento de interrupção, e o sentido que não pode então advir.
Poderá o sentido que lhe falta ser provocado de modo ortopédico? No Lugar de Vida, estamos apostando nessa criação através de recursos da montagem institucional, entendida em seu sentido amplo, além da tentativa de criá-lo em cada instância de trabalho.
No sentido amplo, busca-se acompanhar as respostas das crianças aos manejos institucionais ali praticados. Verificam-se, por exemplo, os efeitos da introdução das atividades educacionais em seguida às dos ateliês. Observa-se o modo como as crianças recebem o corte que acontece na passagem de uma atividade para outra, espera-se que a alternância de atividades, espaços e pessoas crie o equivalente a frases, tecendo redes de linguagem nas quais a criança poderá vir a se situar.
Entende-se ainda que as três grandes redes de linguagem que se tecem no Lugar de Vida - o discurso dos pais, o institucional e o das crianças no conjunto das atividades - estão sempre entrecruzando-se, produzindo pontos nodais. A reunião semanal da equipe, chamada reunião de síntese, é o momento em que esses pontos nodais são localizados e interpretados. Depois de tê-los atravessado, a equipe retorna ao trabalho, que agora estará reformulado, e assim sucessivamente. Desse modo, todas as atividades ali realizadas, assim como a sua ordenação dentro do espaço institucional, têm função terapêutica em seu sentido amplo.
Para terminar, podem-se tomar os movimentos de uma criança como fio condutor para a ilustração de como se realiza o trabalho no Lugar de Vida.
Maurício é um menino de 11 anos, cuja história de vida nos leva a crer que foi um dia um autista, e é hoje um psicótico. E capaz de aprendizagens casuais, mas não parece implicar-se nelas. Verificamos com espanto que sabia ler, embora não fizesse nenhum esforço para demonstrá-lo. Fala muito mal, e sua aproximação é extremamente desorganizada; busca tão somente agarrar as "muié" e puxar-lhes o cabelo.
Quando seu pai passa a levá-lo à instituição, produzem-se mudanças em sua posição frente ao filho, operadas, supõe-se, a partir de sua transferência com a instituição. No grupo dos pais, ele observa que "se os profissionais do Lugar de Vida cuidam tanto de filhos que não são deles, com mais direito deve ele cuidar do seu". Os resultados no filho fazem-se notar: torna-se mais organizado e obediente ao pai.
No ateliê de música, pendura-se sensualmente a uma das profissionais e cola seu corpo ao dela, escorrega-se nela, que responde propondo-lhe que dance com ela ao som da música, ritmadamente, corpos afastados, já que não são namorados. Ou seja, propõe uma forma estruturada, sublimada, criada pela cultura, de arrancá-lo, pela via do prazer, do gozo em que se achava mergulhado. Maurício poderia não aceitar, mas aceitou.
Maurício trabalha um pouco mais organizadamente nas atividades educacionais, folheia livros de estória, encontra lá materiais, nomes e atividades que o ajudam na conquista de uma estabilização crescente.
No grupo do jogo, vê-se um dia sozinho. As outras crianças faltaram. Angustia-se, e pergunta - cadê? - por cada um deles. Constata-se que conhece os nomes, e que pode registrar ausências. Em seguida, começa uma brincadeira em que é ele, agora, quem desaparece.
Indo depois para a "escolinha", mostra que sabe ler os nomes das outras crianças, escritos no mural. E agora uma leitura que faz sentido para ele: designa as crianças ausentes.
Pouco tempo depois, começam os primeiros desenhos, que culminam com uma figura humana. Seu nome: "Maurício".
O grupo de pais, os ateliês, o grupo do jogo e o educacional trabalham em diferentes frentes, na tentativa de compor uma estruturação da qual uma criança venha a se apossar, se puder.
Para concluir: o desamparo não é o único responsável pela produção da "doença mental", já que esta é multideterminada. Mas é um fato que a "doença mental" produz desamparo. É contra esse desamparo, sobretudo, que o Lugar de Vida quer lutar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual de diagnóstico e estatística de distúrbios mentais - DSM-III. 3.ed. São Paulo, 1989. [ Links ]
Crianças e adolescentes: indicadores sociais. Rio de Janeiro, IBGE, 1989. v.3. [ Links ]
INTEGRAÇÃO de jovens deficientes no ensino obrigatório na Noruega. (Relatório do Colóquio Internacional, Oslo, 07 a 10 fev. 1985). [ Links ]
MARSIGLIA, R. et al. Saúde mental e cidadania. São Paulo, Mandacaru, 1987. [ Links ]
MANNONI, M., org. Bonneuil, seize ans après. Paris, Denoel, 1987. [ Links ]
NOTAS
1 Veja-se, por exemplo, um levantamento dos diagnósticos recebidos por 14 crianças psicóticas e autistas atendidas no CPPL - Centro de Pesquisas em Psicanálise e Linguagem -, instituição que se dedica ao atendimento dessas crianças no Recife. Várias delas receberam sucessivamente diagnóstico de surdez, acomodação idiota, bloqueio do sistema nervoso central, problemas resultantes de superproteção familiar e finalmente psicose simbiótica.
2 Os números e as informações sobre os hospitais-dia foram fornecidas, mediante consulta pelo CEPI - Centro de Epidemiologia, Pesquisa e Informação, da Secretaria Municipal de Saúde.