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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.1 no.1 São Paulo  1996

 

ARTIGO

 

A metáfora paterna e a construção do conhecimento como desejo do outro

 

 

Maria Luiza Andreozzi da Costa

Psicanalista, Profa. Dra. do Departamento de Fundamentos da Educação da PUCSP e professora do curso de Pós Graduação Lato Sensu - Especialização em Psicopedagogia da PUCSP

 

 

A Psicologia Genética de Jean Piaget permite uma investida fértil sobre a construção do conhecimento, apresentando a inteligência como estrutura que suporta essa construção através de mecanismos funcionais constantes, portanto universais, que no entanto comportam a particularidade de cada sujeito nos diferentes momentos em que se estrutura. Requer, portanto, dos educadores, um acompanhamento particular das crianças envolvidas na construção do conhecimento, e faz com que estes se aproximem das "dificuldades" e "tropeços" vividos por estas crianças.

Diante das vicissitudes que aí se apresentam, os esforços dos educadores muitas vezes não encontram sustentação na própria teoria piagetiana para avançarem em seu trabalho. O sujeito epistêmico apresentado por Piaget parece não dar conta da abrangência dos movimentos e investidas aí contidos, e provoca em nós a investigação do sujeito do desejo em sua articulação com o sujeito epistêmico.

 

A INSCRIÇÃO DO SIGNIFICANTE NA CONSTRUÇÃO DA INTELIGÊNCIA

O acesso ao conhecimento, no sentido operatório formal e da maneira como Piaget o elabora, nos introduz a uma concepção na qual o sujeito constrói sua inteligência como uma estrutura que opera distanciando-se do imediato .da percepção. Isto é, como uma estrutura lógica. Na ausência da percepção, a inteligência reconstrói o imediato da percepção experienciada, através de representações lógico-conceituais. A lógica conceituai implica a ausência da "coisa" percebida enquanto tal. Esta é deslocada para um um plano onde passa a existir condensada na representação conceituai, enquanto construção que não é mais a "coisa" percebida, mas um conceito que significa a coisa, através de uma operação lógica.

Na verdade, deixando Piaget neste momento entre parênteses, verificamos que a representação ocorre desde o momento em que a "coisa" é percebida, pois esta "coisa" passa a ser um objeto quando nomeada pela linguagem, senão continuaria "coisa". Isto quer dizer que o conceito, no sentido de representar uma "coisa" percebida que significa o objeto, inicia-se antes do momento em que Piaget caracteriza a inteligência como uma estrutura formal, operativa, e portanto conceituai.

Podemos acompanhar Piaget quando ele fala do nascimento da inteligência como construção sensório-motora, subordinada à percepção do objeto. No entanto, introduzimos que tal construção sensório-motora está subordinada ao desejo do outro-mãe. A percepção do objeto será direcionada então pelo desejo da mãe que, ao se relacionar com a criança, apresenta certos objetos a serem percebidos de determinada maneira. Ou seja, ao inscrever, nesta maneira de dispô-los para a criança, o seu desejo (inconsciente), ela circunscreve e marca assim a própria per- pode acalmar o mal-estar que a ausência de respostas absolutas supõe, mas não soluciona as questões que a relação interdisciplina-intervenção nos formula.

A maneira de acionar a interpelação dos diferentes discursos é fundamental por suas conseqüências sobre o paciente e a intervenção. Vejamos algumas situações em nível inter e intradisciplinar.

Erika é uma criança de 9 anos com retardo anártrico e afásico. Seus pais nos consultam pois os profissionais que a atendem e a instituição educativa que freqüenta, além de não coincidirem nas estratégias a serem realizadas com esta criança, ainda remetem aos pais suas oposições teórico-terapêuticas. Dirigem-se a nós para que "como juiz supostamente imparcial" - diz a mãe - determinemos quem possui a verdade sobre o que é melhor para esta criança. A escola de recuperação que freqüenta argumenta, a partir de uma perspectiva construtivista, que Erika está em condições de adquirir o domínio da leitura e da escrita. Os profissionais - neurologista, fonoaudiólogo e psicomotricista - consideram que a referida aprendizagem está contra-indicada, por seu nível representativo e sua coordenação viso-motora serem os de uma criança de 4 anos e meio, e porque seu nível cognoscitivo, francamente pré-operatório, não lhe permitirá fazê-lo. A escola questiona os terapeutas por focarem sua atenção nos aspectos instrumentais e na análise estrutural cognitiva, contestada por numerosas investigações psicogenéticas e clínicas.

Quando o docente se depara com o difícil avanço na conceitualização de Erika, constata, ao dirigir-se aos profissionais, que estes, longe de abordar a situação a partir de um convite ao trabalho de interpelação interdisciplinar, recusam este convite, afirmando, a partir de suas trincheiras, que a situação que se apresenta não faz mais que confirmar sua avaliação inicial: "Se a abordagem construtivista está contra-indicada em todas as crianças, mais ainda neste caso". A verdade absoluta explicitada em suas afirmações não possibilita o movimento que a discussão interdisciplinar requer. Obviamente, aqui não há trabalho interdisciplinar possível.

A escola, ao pretender abordar a lentidão na construção da leitura, da escrita e das regressões cognoscitivas de Erika, se pergunta: "Por que a escrita alfabética e silábico-alfabética desta menina volta a coexistir com a escrita francamente silábica e, algumas vezes, com produções que, ainda que não sejam pré-silábicas, a um observador ingênuo poderiam assim parecer?" Em busca de uma explicação construtivista recorrem às palavras de Inhelder, que afirma que "em crianças deficientes observamos freqüentemente 'regressões cognoscitivas' ou 'fracassos de noções' no seu processo de pensamento" (Inhelder, 1971). A clínica psicopedagógica com crianças deficientes demonstrou, no entanto, que no âmbito da leitura e da escrita não se observam as mesmas regressões e fracasso de noções como as descritas por Inhelder no âmbito lógico. Há alguns anos, ao seguir as afirmações de Inhelder, observei alguns dos fenômenos por ela descritos, e assim os destaquei em uma publicação (Levy, 1982). Hoje, à distância, creio que meu foco em suas afirmações e nas observações por ela realizadas, me levou, naquele momento, a privilegiar a referida significação, ainda que, naquela oportunidade, simultaneamente formulasse os efeitos da constituição psíquica na aprendizagem de crianças. Porém a ausência de uma interpelação interdisciplinar no fenômeno clínico, em si mesmo me impossibilitou ir além na análise das referidas oscilações cognoscitivas. Hoje, com o passar dos anos, considero que sendo as referidas oscilações cognoscitivas um fenômeno clínico observável, não podem ser analisadas apenas em termos de regressões cognoscitivas estruturais, ou apenas em termos das variações do posicionamento psíquico da criança. Elas deveriam ser pensadas no contexto de uma interpelação interdisciplinar na qual o real neuropsicolingüístico também seja posto em jogo.

Como entender as produções de Erika às quais a escola faz referência? Que relação havia entre o retardo anátrico-afásico e seu processo de construção cognitiva? Como entender a aderência insistente que se observa em sua escrita? Em diferentes intervenções clínicas com crianças como Erika, descobri que, ainda que formulem as mesmas hipóteses de leitura e escrita que as crianças normais, suas dificuldades no processo de evocação e elocução potencializam as perturbações cognoscitivas (construtivas) gerando uma maior lentidão. Também descobri que as referidas dificuldades, às vezes, podem decidir-se graças a uma contribuição figurativa deformas fixas que sustente a evocação, que a criança não pode efetuar espontaneamente. Esta ativa oferta de formas fixas, que funciona no sentido de produzir hipóteses quando estas dificuldades estão ocorrendo (Levy, 1991), não apenas facilita a construção cognitiva deste objeto de conhecimento mas, simultaneamente, abre outro caminho à intervenção fonoaudiológica e ao desenvolvimento lingüístico. Os processos de leitura e escrita acionados, ao facilitarem uma maior discriminação do ponto e modo de articulação e sustentarem a evocação, favorecem por sua vez a aprendizagem da leitura e da escrita. Por outro lado, as ofertas figurativas, que permitem amparar a nomeação e a evocação, possibilitam, por sua vez, ampliar seus sistemas de conhecimento de leitura e escrita.Vemos aqui um esboço de interpelação interdisciplinar no interior da intervenção psicopedagógica.

Os profissionais e a escola, longe de discutirem de forma interdisciplinar suas diferenças, ao permanecer em posições de exclusão, não facilitaram a aprendizagem da criança, nem redirecionaram a própria intervenção. Poderíamos dizer, então, que este é um nível multidisciplinar e não interdisciplinar, já que os discursos em questão somente observam paralelamente o fenômeno clínico sem interpelação alguma.

Pensando nos referentes clínicos das intervenções psicopedagógicas mencionadas, é importante perguntar-nos: O que aconteceria se os referentes clínicos observados não tivessem sido meu ponto de partida? Teria defendido a priori a posição construtivista? Teria recusado a priori a oferta de formas fixas, por confundi-la com uma proposta reeducativa-condutista?

Se as interpelações interdisciplinares reveladas a partir do real cognitivo e neurolinguístico permitiam dar conta, em parte, das produções da criança, não fica claro até aqui em que medida sua posição subjetiva comprometia a lentidão de sua evolução e produção. Por que, diante das ofertas do outro, Erika as recusava imediatamente com um forte não e algumas vezes aceitava-as em seguida, passivamente? Ficarmos com a afirmação descritiva do negativismo das crianças deficientes seria simplificar a questão. Por que esta criança de 9 anos estava tão instalada no gesto, sem necessidade de sair dele? Ainda que, em crianças com esta patologia, este seja um fenômeno clínico observável, os terapeutas da linguagem com os quais trabalhamos comprovaram que esta é uma produção sintomática secundária, efeito da posição da criança em relação à estrutura do casal parental. Não ocorre em todas as crianças que sofrem de retardo anátrico-afásico, confirmando assim as implicações do posicionamento subjetivo de Erika em sua produção lingüística e cognoscitiva. Sabemos que começou a falar aos três anos e meio, não tendo demonstrado até então interesse em relacionar-se com os outros. Ainda que este seja um fenômeno clínico observável em crianças com tal patologia, esta não é uma característica primária do retardo anártrico-afásico. Assim o comprovamos quando nos contam que aos 3 anos realizava suas evacuações escondida atrás da porta e aos 8 esvaziava xampus e pastas de dentes no banheiro de sua casa.

Quando ia ao banheiro, costumava deixar a porta aberta ou até mesmo sair do mesmo sem roupa. Freqüentemente emitia sons guturais e batia estereotipadamente objetos sobre a mesa. Estas são produções sintomáticas relacionadas secundariamente à síndrome. O posicionamento subjetivo de Erika potencializava sua problemática circulação de discursos, como também suas dificuldades instrumentais e cognoscitivas. Durante o processo diagnóstico e o início do tratamento, quando dispunha de material não estruturado e simbólico, Erika costumava permanecer colada viscosamente diante de um simples deslocamento. Com material estruturado e regrado, no entanto, realizava produções correspondentes às de uma criança de 6 anos (Levy, 1990 e 1992). Este fenômeno clínico observado tanto em crianças neuróticas graves como em crianças de diversas patologias do desenvolvimento - que com material estruturado e regrado realizam produções mais elaboradas do que as efetuadas espontaneamente com material simbólico e não estruturado - fez ressaltar aspectos cruciais do posicionamento subjetivo e cognitivo- de algumas crianças. Diante da viscosidade de pensamento que observamos freqüentemente nessas crianças, a mera caracterização descritiva que historicamente se fez da referida viscosidade é insuficiente, e torna-se necessário interpelá-la a partir da singularidade de cada fenômeno clínico. Em que sentido a adesividade neurofuncional descrita pela neuropsicologia se relaciona com a adesividade libidinal de certas neuroses nas quais observamos aderências a objetos e afirmações? Em que sentido a adesividade dos processos de pensamento descritos pela psicanálise, nestes casos, se relaciona com a viscosidade ou aderência dos sistemas de conhecimento dificilmente reformuláveis? Em uma sessão, depois de escrever de forma fixa seu nome, o de uma amiga e os de sua família, Erika joga seus materiais, fingindo tratar-se de uma queda acidental. Joga-se no chão, engatinha e, diante de nossos comentários sobre süa conduta, se levanta e diz: "Bebê?" Aponta a lousa e diz: "Bebê, aqui?" Quer escrever bebê, palavra que em outra ocasião havia escrito como forma fixa em seus cadernos escolares. Escreve BE (ver quadro), me olha e diz: "Be?" Pergunta: "Aqui está escrito Bebê?" E acrescenta um E, ficando BEE. Olha-me confusa e me pergunta: "Bebê? Be?" Risca o último E, e fica BE. Coloca um B, ficando BEB. "Bebê?" Olha-me, apaga e escreve BERIKA.

Escritas de Erika

Escritas de seu nome, de sua amiga e familiares:

ERIKA     MARCELA      MAMÃE

PAPAI     TITI               ALE

 

Escrita de bebê em forma fixa em seu caderno: BEBE

Escrita e comentários da palavra Bebê:

Escreve:           Comenta:

BE                   "Be? Bebê?"( pela entonação em sua verbalização, parece perguntar : "Está escrito aí...?")

BEE                  Acrescenta um E. Olha-me confusa e pergunta:"Bebê? Be?"(está escrito aqui bebê?)

BEE                  Risca o último E

BE                   Apaga. "Be? Be ..be " diz fazendo um recorte silábi co em sua leitura, mas parece não estar de                      acordo...

BEB                Coloca um B. " Bebê ? " (parecia perguntar: agora está escrito bebê?)

BERIKA            Olha - me, apaga e escreve BERIKA

 

Se a princípio parecíamos observar nestas produções a manifestação da análise silábico-alfabética de suas perguntas cognoscitivas, relacionadas a suas dificuldades de evocação, produto do retardo afásico-anártrico, sua escrita final, além de dar conta das mesmas, nos leva a perguntar por esta particular condensação: bebe-Erika que, como lapso, interrompe seu trabalho cognoscitivo. Algum colega poderia manifestar que talvez esta menina estivesse cansada do esforço cognoscitivo em que a referida escrita a implicava, ou que, talvez, diante da impossibilidade de resolver o conflito cognoscitivo, recorrera à escrita de uma forma fixa como é o seu nome. Evidentemente não ignoramos estas possibilidades, mas é necessário que não ignoremos também a determinação múltipla do ato de escrever, no qual se atualizam as diferentes dimensões da relação sujeito-objeto. E preciso trabalhar estas possibilidades em interpelação.

Falar da interpelação interdisciplinar no interior da intervenção supõe analisar, nas diversas produções de Erika, de que forma seu posicionamento psíquico incidia na produção de formas fixas, e de que maneira se conjugavam a adesividade neurofuncional, a cognitiva e a libidinal.Vemos, no caso desta criança, como a trama dos processos neurolingüísticos, cognoscitivos e sua constituição psíquica, ao se apresentar em seus processos de simbolização e aprendizagem, pede a interpelação interdisciplinar para segurança da intervenção.

Vejamos outra situação: Andrea era uma criança de oito anos com quem nossas intervenções eram extremamente difíceis pois costumava rebatê-las antes que terminássemos de enunciá-las. Freqüentemente interrompia suas produções cognoscitivas desenvolvendo diante de nós diferentes tematizações discursivas, com danças e canções. (Levy, 1990) Nestas, reiterava - com personificações de Flávia, os "Ursinhos Carinhosos" e Moranguinho4 -diferentes aspectos de uma imagem ideal inatingível. Os impossíveis momentâneos, que o material e as situações cognoscitivas oferecidas lhe propunham, se transformavam rapidamente em impossibilidade. Diz Freud: "o fator determinante da angústia é uma vivência de desproteção do ego frente a uma situação na qual este não pode tramitar". As interrupções e o rebater de nossas propostas parecem estar diretamente relacionados à referida situação.

Em nossos primeiros encontros, Andrea costumava trazer uma boneca da coleção Moranguinho e, enquanto a atirava brutalmente contra o chão, gritava: "Você é um lixo, te mato, você é uma porcaria, te jogo no lixo". O pai costumava oferecer a filha como presente ou emprestada a uma vizinha e também a nós: "Você a quer de presente? Pode levar" - dizia, enquanto olhava sorridente para a filha. Disse, em uma primeira entrevista, referindo-se a Andrea: "Eu não a deixo subir no tobogã, porque senão acabo de matá-la".

A escola de recuperação que Andrea freqüentava lhe propunha a cópia de palavras distantes de sua conceitualização da leitura e da escrita. Se a princípio, a partir de uma perspectiva construtivista, considerei que a oferta da instituição era contraindicada, pois Andrea estava longe de poder realizar a cópia proposta, a partir de algumas situações clínicas com esta criança, reformulei minha posição. Andrea, ocupando, durante o jogo, o lugar de professora, reproduzia as escritas escolares uma e outra vez estereotipadamente na lousa, sem preocupar-se se eu, como aluna, realizava as tarefas que me dava e não esperava resposta alguma de minha parte. Descobri que não se tratava de intervir, como em outras situações clínicas, do lugar de um suposto aluno, propondo assim, no interior do jogo, uma interpretação da leitura e da escrita. Quando Andrea recusava minhas ofertas durante o jogo, descobri que era necessário deixar circular estas cenas, e que há momentos nos quais não se trata de intervir com interpelações cognoscitivas, pois estamos diante de outra dimensão do objeto que não é a do conhecimento5.

Na condução de um tratamento psicopedagógico, as interpelações cognoscitivas específicas sucedem a outras analíticas. Estas são necessárias quando desdobramentos temáticos acompanham ou interrompem as produções cognoscitivas. Nestes casos não é a variante da relação sujeito-objeto de conhecimento o que vamos priorizar (Levy 1990 e 1991). Nestas circunstâncias é necessário deixá-las circular para determinar, no caso a caso, se devemos pontuar, interpelar ou calar.

Quando, do lugar do outro em sua personificação da professora, Andrea reproduzia uma e outra vez as escritas, das quais recordamos que não podia dar conta, nos perguntávamos: O que se atualizava nesta repetição? Que relação havia entre estas e as reiterações de ações e personificações como as dos Ursinhos Carinhosos ou Moranguinho anteriormente referidas? Esta, não é semelhante à repetição que, em crianças pequenas, evidencia estes movimentos identificatórios em seu processo de constituição?6

Freud diz: "A pulsão de saber não pode contar-se entre os componentes libidinais elementares nem subordinar-se de maneira exclusiva à sexualidade, sua ação corresponde por um lado a uma maneira sublimada da pulsão de domínio e por outro ao trabalho com a pulsão de ver" (Freud, 1905). Caberia perguntar-nos sobre as relações entre o domínio da imagem do outro, o movimento identificatório e a pulsão visual atualizada tanto nas produções especulares de Andrea, como na reprodução de formas fixas de sua escrita. Aqui, evidentemente é a interpelação interdisciplinar no seio da intervenção psicopedagógica a que abre um interessante caminho de investigação. Nossa maneira de intervir diante das referidas reiterações nos levou a pensar sobre os efeitos em sua aprendizagem e em seu processo de constituição.

Há alguns anos, em uma investigação clínica (Levy, 1988), sustentei que o desrespeito aos sistemas de conhecimento, em crianças com patologia do desenvolvimento, potencializa freqüentemente suas dificuldades cognoscitivas, gerando repetições vazias que, como uma pseudo-aprendizagem, as ancoram em produções ecolálicas carentes de sentido.

Quando, em diferentes oportunidades, pretendi modificar a produção da leitura e da escrita estereotipada e repetitiva de Andrea, para abrir passagem à sua hipótese cognoscitiva, parecia partir dos efeitos daquela afirmação. Ainda que esta afirmação não deixe de ser certeira, não deve ser generalizada a toda situação; é necessário pensá-la na singularidade de cada sujeito e de cada intervenção.

Quando Andrea recusava as ofertas cognoscitivas pela demanda que nelas se atualizava, a situação clínica interpelava minha intervenção, daí minha reformulação da referida afirmação. Ainda que se fizesse necessário produzir um corte em sua produção, este não devia desconhecer nem os mediatizadores cognoscitivos nem o processo de mediatização (Levy 1991 el994). Falar da importância do processo de mediatização e da necessidade de fundamentar algo destas produções reiterativas, supõe afirmar que não é suficiente pensar a intervenção psicopedagógica somente a partir dos mediatizadores cognoscitivos (hipótese, sistema de conhecimento, estratégias cognoscitivas) em relação a cada objeto de conhecimento, mas a partir de como estes são também possíveis graças à mediação do outro. Freud, M. Klein, M. Mannoni e outros analistas de crianças formularam a partir de diferentes posições o papel que cabe a pais e docentes no referido processo, e de que maneira incidem na trama do processo de constituição, desenvolvimento e aprendizagem. A clínica psicopedagógica com crianças pequenas com sérias dificuldades em seu processo de constituição - onde procedemos intervenções muito distintas daquelas realizadas com crianças maiores, nas quais esta trama elementar já foi concluída -nos permitiu começar a investigar estas relações entre os mediatizadores e a mediatização.

Sabemos que, conforme o sujeito se constitui, incorpora traços e qualidades do objeto, o que favorece novas organizações e acomodações. Quando observamos as tematizações, fazemos pontuações, sustentamos a constituição de certas marcas. Era necessário deixar circular as repetições de escritas que Andrea reproduzia, de forma especular, para gerar, a partir de marcas e formas fixas, a possibilidade de uma interpelação cognoscitiva7.

"A história do sujeito - diz Lacan - se desenvolve em uma série mais ou menos típica de identificações ideais que representam os mais puros fenômenos psíquicos, pelo fato de revelar a função da imago"..."O ego é um sistema central destas formações e deve ser compreendido da mesma forma que estas em sua estrutura imaginária e valor libidinal"..."0 ego não é o mesmo que o sujeito, e a alienação do sujeito é necessária para sua constituição"(Lacan, 1976). Sem mediação não há sujeito nem aprendizagem. Se a manutenção desse movimento identificatório em sua produção facilitava o processo de mediatização, isso evidentemente era insuficiente para pensar a intervenção psicopedagógica. A interpelação interdisciplinar no seio da intervenção possibilitou-me pensar como operar a partir das marcas e formas fixas para dar início à interpelação cognoscitiva e instrumental.

Auxiliar crianças, como no caso de Andrea, a abandonarem a submissão a ações compulsivas e inibições, supõe, a partir da intervenção psicopedagógica, possibilitar-lhes certas substituições, modificações cognoscitivas e instrumentais. Diz Freud: "O trabalho ata à realidade, insere de forma efetiva na comunidade humana. E importante deslocar para o trabalho e os vínculos humanos que com ele se relacionam, uma considerável medida de componentes libidinais (Freud, 1929).""A pulsão de saber, no trabalho intelectual, está marcada por aqueles que, na infância, ocuparam a posição de sujeito suposto saber (Hornstein, 1988)." As ofertas e presenças de nossas estratégias clínicas têm conseqüências, tanto na aprendizagem da criança como em seu processo de constituição. Por isso é fundamental pensar as ofertas do psicopedagogo em relação aos mediatizadores cognoscitivos e ao processo de mediatização.

Freud discutiu os efeitos da relação sublimação-identificação e o lugar do ideal na prática docente. Estes conceitos que abordam o processo de mediatização do conhecimento, devem ser pensados em relação às ofertas cognoscitivas e instrumentais, por seus efeitos no processo de substituição, construção, sublimação e aprendizagem.

A sublimação é um destino pulsional em que, ainda que a valorização social esteja presente, não pode ocorrer senão a partir da história do sujeito. Este está vinculado ao ideal e é efeito da identificação. Nas intervenções com Andrea, ao pretender ajudá-la a sair da posição mortífera em que estava instalada, buscava produzir outra circulação a partir deste interjogo entre os mediatizadores e a mediatização em interpelação.

Vejamos uma última situação clínica. Fernando era uma criança de 5 anos que costumava atirar objetos pretendendo fazê-los desaparecer. Não conseguia fazê-los desaparecer, assim como ele não conseguia desaparecer do outro e de suas palavras. Suas dificuldades psicomotoras e hipotonia, ainda que de origem lesional, pareciam estar potencializadas por seu posicionamento subjetivo. Durante o começo do tratamento eu me perguntava: Haverá alguma relação entre suas dificuldades psicomotoras de origem lesional funcional e suas enunciações em posição feminina? (dizia: "Deixe-me em paz8, estou cansada deste jogo") Fazia com que os objetos desaparecessem apenas quando estes ficavam presos em algum móvel. Por que não ocorria esta desaparição dupla? Novamente reaparecia minha pergunta sobre suas estratégias cognoscitivo-intrumentais e seu posicionamento psíquico.

Em uma sessão, a partir de suas tentativas infrutíferas de fazer desaparecer objetos, lhe proponho que brinquemos de esconder um boneco. Alternadamente, cada um o ocultaria e o outro iria procurá-lo. Escondendo o boneco atrás de mim, e fornecendo a Fernando indicações visuais e auditivas (meus movimentos corpo rais e os sons dos objetos escondidos), ele começa a localizar o esconderijo e vai buscar o objeto. Começa a descobrir diferentes propriedades dos objetos: relações de continente e conteúdo, relação de forma, posições e tamanhos, etc. Começa a esconder objetos e propor que eu vá procurá-los, aceitando a proposta de definir por algum critério o esconderijo. "Está dentro e posso tirar" - diz. "Vejamos - digo - certamente você o colocou na gaveta." Ao não encontrá-lo, digo: "Já sei, está dentro da sua caixa." Ali estava. Novos esconderijos e novas conceituações verbais e representativas são realizadas por ele.

Outra proposta foi o trabalho com material estruturado, como o jogo "Divertido Circuito de Bolinhas". Este material consta de rampas, suportes e cilindros que podem se encaixar montando circuitos onde deslizam bolinhas em função da construção que as crianças realizam com seus elementos.

Com esta oferta instrumental e cognoscitiva procurei estimular perguntas em relação ao sujeito de conhecimento físico: a análise das relações causais e de deslocamento. Estas são dedutíveis a partir das ações que a criança deve realizar, e em virtude da resistência e propriedades deste material fortemente finalizado9. Isso a leva a reformular perguntas específicas. Por esta via, geram-se não só perguntas em relação ao conhecimento físico, mas também a aspectos referentes às relações de presença, ausência e circulação, todas necessárias na relação mediatizador-mediatização.

Freqüentemente, diante de suas dificuldades de representação, Fernando atirava e/ou rasgava suas produções que, naquele momento, eram apenas marcas de descargas gráficas. Na mesma linha das intervenções que venho relatando, lhe ofereço papel, cola e tesoura, dizendo-lhe: "Se você quiser, pode fazê-los desaparecer também, mas de outra maneira". Olha-me e diz: "Sim? Como?" Digo: "Você pode fazê-los desaparecer de um jeito, que se depois você quiser, poderá fazê-los aparecer de novo".

Proponho a Fernando estratégias instrumentais para que possa desaparecer com os desenhos que não queira ver, colando sucessivamente um papel nas suas laterais e cantos, de forma que, a cada passo da referida ação de desaparecimento do desenho, no jogo de presenças e ausências no qual desenvolvia suas estratégias cognoscitivas instrumentais, decidisse quando estava suficientemente "desaparecido", segundo suas palavras.

Com estas intervenções abria-se a possibilidade de não ficar compulsivamente colado ao lançamento de objetos, o que potencializava seu estado de excitação. Se por um lado esta ação repetitiva o capturava, dificultando seu processo de aprendizagem; por outro, suas dificuldades instrumentais também potencializavam esta posição, na medida em que não lhe facilitavam outra via de circulação e produção. Observamos neste exemplo de que maneira abrimos outros caminhos para a substituição, simbolização e representação.

Fernando começou a abordar lentamente, de outra posição, a representação gráfica, aceitando, aos poucos, nossas ofertas de representação da leitura e da escrita, da lógica e da matemática.

Historicamente enfatizaram- se os efeitos da constituição psíquica nos processos cognoscitivos. Hoje enfatizo que, em intervenções psicopedagógicas, a maneira de abordar as mediatizações e os mediatizadores cognoscitivos tem conseqüências cruciais não apenas no processo cognoscitivo da criança mas também no seu processo de constituição. Foi interessante quando, em sucessivas inter-consultas, os analistas dessas crianças corroboraram minha afirmação.

Alguns analistas de crianças, no entanto, consideram que as dificuldades de aprendizagem de toda criança requerem sempre intervenções analíticas, contra-indicando as pedagógicas por equipará-las a uma intervenção docente.

Embora no tratamento psicopedagógico se abordem os conteúdos escolares, não é esta a única intervenção que se realiza. Ainda que uma análise possa produzir a desaparição das dificuldades de aprendizagem de algumas crianças, outras requerem outra intervenção. Assim o demostraram as situações clínicas de crianças que, depois de 3 ou 4 anos de análise, são encaminhadas por seus analistas ao tratamento psicopedagógico. Por que, no caso destas crianças, a intervenção analítica não foi suficiente? Porque na intervenção analítica, por estrutura, os objetos e situações de conhecimento estavam necessariamente excluídos e era fundamental abordar os mediatizadores cognoscitivos. Estas situações clínicas confirmam a incidência da relação entre os mediatizadores cognoscitivos e o processo de mediatização na aprendizagem da criança. As interpelações que a partir dos mesmos possamos produzir são cruciais no momento de decidir a estratégia terapêutica a ser seguida com uma criança e de pensar os movimentos na condução do tratamento psicopedagógico, ou, ainda, no processo diagnóstico. Esta interpelação demonstra, por seus efeitos, a diferença que supõe pensar as dificuldades de aprendizagem da criança somente a partir do processo de mediatização. Ainda que o foco nesta significação seja adequado na direção de um tratamento analítico, não deveria sê-lo em um tratamento psicopedagógico.

Quando Mannoni (Mannoni, 1973) critica os reeducadores que privilegiam as significações instrumentais, chama a atenção sobre a tentativa de domesticação de uma clínica que desconhece o sujeito. Suas críticas à pedagogia autoritária, na qual o professor é o depositário do saber e o aluno o ignorante, se concentram no posicionamento subjetivo e não em uma concepção da construção cognoscitiva. Sua proposta de que o educador se eclipse, deixando o lugar de quem dá as respostas à criança, podendo ser útil no momento em que a criança tenha desejos de saber, sustenta-se no saber, na mediatização do outro, não na construção do conhecimento, mas sim em sua maneira de entender o processo de aprendizagem (Levy, 1992). Suas formulações, se bem que de fundamental importância para pensar clinicamente aspectos da intervenção, levaram alguns psicopedagogos, docentes e instituições a abster-se de toda proposta, confundindo desenvolvimento espontâneo com aprendizagem .

As crianças, quando formulam espontaneamente perguntas em relação a diferentes objetos de conhecimento - ponto que a psicologia genética abordou amplamente - o fazem em contextos e intercâmbios cognoscitivos específicos nos quais a interpelação dos objetos é fundamental. Esta é imprescindível para que a construção cognitiva seja possível. O ponto é: quando e como fazê-la circular (Levy, 1991). Pensar as postulações de Mannoni em relação a uma teoria da aprendizagem supõe, portanto, não confundir aprendizagem, desenvolvimento espontâneo e educação. Quando Mannoni, a respeito de psicóticos e adolescentes, propõe seu encontro com artesãos (Mannoni, 1973), não pensa em termos educativos; ela aciona os conceitos de sublimação, ideal e transferência. Isso deve ocorrer, na clínica psicopedagógica, juntamente com as ofertas cognoscitivas específicas.

Quando Freud afirma que o caminho em direção à ciência passa mais pela pessoa de nossos professores que pela disciplina em si mesma, articula ali os conceitos de transferência, lugar do objeto e do ideal.

Quando afirma que: "o apelo da psicanálise a outros campos supõe conhecimentos que o analista não possui", e que "a solução para os problemas do conhecimento possui uma qualidade que é importante caracterizar metapsicologicamente", leva os psicopedagogos a avançar a partir da interpelação interdisciplinar em nossa intervenção e conceitualização.

Diversa é a posição de Melanie Klein. Esta afirma que as dificuldades de aprendizagem da criança podem ser eliminadas uma vez realizada a interpretação correta. Ela parte da idéia de que toda perturbação da criança pode ser melhorada ou eliminada pela análise. Quando, no caso Dick, formula em que sentido as intervenções educativas eram escorregatiças previamente a suas interpretações (Klein, 1971), pensa em termos de mediatização, de educação sistemática e de aquisição de hábitos no caso de uma criança psicótica. Em 1930 não existia a clínica psicopedagógica e desconheciam-se as possibilidades de nossa intervenção no processo de aprendizagem e constituição da criança. Ainda que suas afirmações e intervenções a respeito das implicações psíquicas nos processos de aprendizagem da criança não possam ser ignoradas, são insuficientes para pensar nossa intervenção psicopedagógica. Ao percorrer os textos de alguns analistas, é importante diferenciar, quando neles se fala em educação, se fazem referência à educação parental, a hábitos e destrezas, ou à aprendizagem sistemática no âmbito escolar, para diferenciá-los da especificidade da intervenção psicopedagógica.

Anna Freud, ao abordar alguns aspectos das relações entre psicanálise e educação, propõe que a análise também cumpra uma finalidade pedagógica, que consiste no domínio da vida instintiva da criança e a posterior orientação dos impulsos suprimidos (Freud,A. 1964). Ao referir-se ao docente, diz: "Compete (ao docente) (...) proibir, conservar a disciplina, educar, instruir e não poderia cumprir sua missão pedagógica se ocupasse uma posição de passivo observador (Freud,A. 1964). Diz claramente que o docente não deve colocar-se em uma posição de abstenção (Levy, 1991, p.49). Adverte os educadores e psicopedagogos a não confundir sua intervenção com uma intervenção analítica. Se a psicanálise gera questões em relação à intervenção pedagógica e psicopedagógica, estas não devem suprimir sua especificidade. Compete ao docente, diz Anna Freud, "desenvolver os interesses e funções egóicas, promover as sublimações e facilitar a adaptação, utilizando como meio para a mudança progressiva, a relação da criança com ele" (Freud,A. 1964). Reaparecem aqui os conceitos de transferência, objeto, ideal e sublimação. Sabemos que para desenvolver os interesses e funções egóicas, ainda que seja necessário pensar no movimento desiderativo e pulsional, isso é insuficiente, e é aqui que a clínica psicopedagógica oferece outra resposta. Não é a mesma coisa intervir a partir do âmbito educativo na aprendizagem de uma criança ou fazê-lo na clínica das dificuldades da aprendizagem. Tampouco é correto afirmar que os analistas de crianças ocupam a posição de passivos observadores; a neutralidade e a postura de abstinência não significam um entrincheiramento em uma caricatura de mutismo e passividade10. As máscaras vazias não ajudam, em intervenções com crianças, a facilitar a circulação discursiva; as ofertas realizadas por um analista também levam à produção. E uma distorsão profissional supor necessária uma permanente posição de abstenção. Mais ainda, se seguirmos com a linha de pensamento que estamos desenvolvendo, chegaremos à conclusão de que, no caso de algumas crianças, não lhes possibilitaremos, com esta intervenção, assumir outra posição e diminuir suas dificuldades.

Freud afirma justamente que: "a inibição de certas atividades é produzida por não serem investidas libidinalmente. (...) O aborrecimento, o desprazer, o esquivar-se de certas atividades são conseqüência disso". Mas também diz que as limitações funcionais do ego se produzem, freqüentemente, devido às diferenças existentes entre aquelas atividades por realizar e a imagem que tem de si.

Pretender ajudar estas crianças a sair da posição mortífera na qual estão instaladas não supõe uma adaptação passiva a todo custo, e sim uma ampliação referencial11 que possibilite uma expansão do ego e um outro posicionamento subjetivo e cognoscitivo. Quando estamos diante de crianças que espontaneamente não se formulam perguntas em relação aos objetos de conhecimento, é preciso gerá-las; e este é o ponto central de nossa intervenção em relação aos mediatizadores e à mediatização.

"As diversas formas de doença com as quais trabalhamos - diz Freud - não podem ser conduzidas mediante uma mesma técnica" (Freud, 1918), e a clínica psicopedagógica mostrou um caminho nesse sentido.

Quando alguns analistas, por efeito de uma cosmovisão analítica, questionam as ofertas psicopedagógicas, é porque desconhecem as características especificas dessa abordagem dos problemas de aprendizagem. A crítica à objetividade de Lacan não nega a existência do sujeito de conhecimento, mas mostra de que modo o inconsciente freudiano propõe uma concepção de sujeito diferente, de evidente importância nos problemas relacionados à transferência. Quando rejeita a intervenção por meio do conhecimento, critica os analistas que, por esta via, pretendem englobar a verdade do sujeito. Quando Freud afirma que o sujeito não se confunde com o indivíduo, abre a perspectiva da subjetividade.

Se as propostas planejadas pelos reeducadores de antigamente tiveram efeitos terapêuticos pouco felizes para algumas crianças, a ausência de intervenções em relação aos objetos e situações de conhecimento por parte de alguns psicopedagogos, também o foram. Os psicopedagogos não devem se deixar levar pelas críticas que os analistas dirigem a outros analistas, transferindo-as diretamente para a clínica psicopedagógica, perdendo de vista a especificidade desta intervenção. Se um analista não pode ignorar que não há análise in absentiae o in effigie, um psicopedagogo não pode ignorar que não há tratamento psicopedagógico fora da presença de situações e objetos de conhecimento.

Eu dizia em outra oportunidade: a clínica psicopedagógica não é um encontro harmonioso da interdisciplina em nossa intervenção. As situações clínicas referidas parecem abrir uma brecha para a investigação. Neste sentido, os problemas na direção do tratamento psicopedagógico, além de serem problemas intrapsicopedagógicos, constituem um problema interdisciplinar, na medida em que as formações clínicas e intervenções interpelam os discursos implicados.

 

RESPOSTAS AS PERGUNTAS DA PLATÉIA

Tenho aqui várias perguntas referentes ao conceito de demanda de interpelação e oferta-interpelação em geral e, em particular, em relação ao material de Fernando. Outras, pedem que esclareça as relações entre os jogos estruturados e a formulação oferta-interpelação.

Dizia há pouco, que, quando estamos diante de crianças que não aceitam facilmente as interpelações do outro, crianças que dificilmente aceitam nossas ofertas materiais ou de jogo, surge uma indagação fundamental: Como ajudá-las a acionar as perguntas em relação aos diferentes objetos de conhecimento?

Um dos aspectos a que me referia em minha exposição foi, justamente, de que maneira os diferentes jogos estruturados-regrados e não estruturados nos quais estão mediatizados os diferentes objetos de conhecimento, ao serem fortemente finalizados, funcionam como uma oferta material que não requer a intervenção do outro. O material em si, o próprio jogo, com sua presença, dá lugar a fortes questões no sentido de produzir uma significação cognoscitiva, de maneira tal que não requeira explicação alguma por parte do adulto. O conceito "fortemente finalizado" foi formulado por Madelon Robert ao analisar o encadeamento de ações particulares que se produzem em função das significações cognoscitivas acionadas pelos materiais oferecidos às crianças. Do ponto de vista clínico, isso é de fundamental importância pois não apenas intervimos nas dificuldades instrumentais e cognoscitivas específicas das crianças, mas também nas dificuldades no movimento de mediatização em relação aos objetos de conhecimento. O conceito demanda-interpelação, oferta-interpelação, justamente, pretende mostrar que não se trata de esperar passivamente que a criança espontaneamente realize uma produção, e sim de enfatizar que, com nossa intervenção e nossas ofertas, podemos gerá-la. Há maneiras de utilizar os jogos não estruturados, estruturados e regrados que facilitam a intervenção.

Quando me referi ao material de Fernando, mencionei o jogo "Divertido Circuito de Bolinhas". Este jogo consta de diferentes rampas, suportes e cilindros que se podem encaixar montando diferentes circuitos. Cada rampa tem um orifício em uma de suas duas laterais. No jogo há diversas bolinhas de vidro que circulam pelas rampas em função da forma em que a criança as monta. Uma criança pode dispor as rampas no sentido vertical ou de forma mais complexa. Entre estas duas formas há uma variedade de disposições possíveis que dependem das significações cognoscitivas construídas pelas crianças. Nestas são acionados aspectos que dizem respeito às construções espaciais, representativas e físicas, e também aspectos que dizem respeito às modificações de estratégias cognoscitivas que seja possível às crianças descobrir e realizar. Para cada criança, estas serão diferentes dependendo de ter ou não utilizado este jogo ou algum similar, e de acordo com os obstáculos com os quais tenha se deparado na resolução de estratégias na sua montagem. Sabemos que as crianças passam por uma psicogênese nas suas maneiras de montar os circuitos e é importante que um psicopedagogo descubra e conheça, neste e nos demais jogos, quais aspectos omitidos pela criança deve ressaltar. A montagem vertical, mais simples, não supõe a antecipação dos lugares de queda da bolinha, mais que isso, a criança irá descobrindo, a partir desta construção, que há rampas pelas quais circula e outras pelas quais não o faz, e justamente esta observação a levará a modificar suas construções e estratégias. A construção mais complexa supõe uma antecipação da movimentação da bolinha.

As significações cognoscitivas que as crianças descobrem nos materiais são diferentes das realizadas pelos adultos. Os psicopedagogos devem procurar deduzir das ações das crianças, as perguntas que estão se formulando, e a maneira como definem suas sucessivas estratégias. Elas não podem ser entendidas apenas em termos estruturais, como se tem feito freqüentemente. Os aspectos procedurais da resolução das crianças são descobertos, geralmente, durante a resolução do próprio jogo, em virtude da resposta do material. Os aspectos fortemente finalizados do material levam às perguntas, mas estas vão se modificando a partir das resistências dos objetos. E o que ocorre quando uma bolinha não circula por uma rampa. Este fenômeno poderia levar uma criança a modificar a disposição das rampas em função de ter detectado a relação "rampa de deslizamento-buraco da rampa anterior".

Se um analista em uma supervisão ficou impressionado pela maneira como a realização deste jogo acionava perguntas em relação à presença-ausência; na clínica psicopedagógica, ainda que esta vertente seja necessária, não é o suficiente. Para um psicopedagogo é fundamental conhecer as diferentes contribuições dos objetos de conhecimento mediatizados nos jogos estruturados e regrados, pela maneira como incidem na direção do tratamento. Este é um jogo estruturado não regrado fortemente finalizado. Já nos referimos a como os objetos de conhecimento físico respondem mais ativamente às hipóteses desdobradas pela criança, do que os objetos lógico-matemáticos e os da leitura e da escrita (Levy, 1991) e suas consequências na intervenção.

Você poderia relatar, na sua intervenção com Erika, algum exemplo em relação a interpelação e aos jogos estruturados ou regrados?

Esta * (ver página seguinte) é uma das cartelas do jogo "Letras e Palavras ", material com o qual trabalhei com Erika para abordar a interpelação entre os aspectos figurativos e as construções da leitura e da escrita. Há algum tempo, mostrei que o trabalho sobre os aspectos figurativos pode facilitar a intervenção em relação à difícil análise da leitura e da escrita que, em crianças com retardo afásico-anártrico, produzem suas dificuldades de evocação e elocução. A contribuição figurativa que aparece claramente neste jogo tinha a intenção de não apenas ofertar a presença de formas fixas, mas também, paralelamente, a interpelação entre a escrita e o desenho, permitindo a Erika abordar seus raciocínios alfabéticos incipientes.

Este jogo está composto por várias cartelas como esta12 da vaca, nas quais estão representados diferentes animais. Abaixo de cada animal, está escrito seu nome em letras maiúsculas. Cada carteia está cortada verticalmente em quatro tiras (ou cartões), de forma que o animal está dividido em quatro partes e abaixo de cada uma está uma letra do seu nome. O objetivo de jogo é montar o animal e escrever corretamente seu nome.

Da mesma forma que muitas crianças, Erika olha as partes misturadas e esparramadas sobre a mesa e diz:"Vaca". Digo: "Você poderia montar a vaca e o nome vaca?" Olha a tampa do jogo onde o mesmo nome está representado. Tiro a tampa e digo: "Ah, copiando não vale." Pense e trate de resolvê-lo você mesma". Coloca as fichas da seguinte maneira :

 

 

Produção I

 

 

Comentários correspondentes: "va...ca"(lê silabicamente em cada cartão respectivamente) "não, o rabo aqui" diz e aponta no final do cartão 2 o pedaço de rabo que está ali. Troca o cartão 2 pelo 4, ficando:

 

Produção II

 

Comentários correspondentes: "O rabo aqui", aponta o rabo que começa na parte posterior da vaca (cartão 4), mas que não mostra onde termina. "O rabo, onde?" - diz com gestos. "A cara não está aqui" (porque falta um pedaço da cara). Olha a escrita debaixo dos cartões 1-2 e 1-4, Produção I e II respectivamente, e me diz: "vaca?", apontando os dois. "O que aconteceu?" - pergunto. Me olha e diz: "vaca, vaca. Casa?" Repete a palavra casa e a escreve na lousa: casa (escrita de que dispunha como forma fixa). Olha o que foi escrito na lousa e troca o cartão 4 pelo 3, ficando:

 

Produção III

 

Comentários correspondentes: Lê: "vaca" apontando respectivamente em cada recorte o primeiro e o segundo cartão (1 e 3 respectivamente) Olha o desenho da vaca e diz: "vaca, cara não, olho".Troca o cartão pelo 2 dizendo "vaa...Vascolet,3?"(Pensa possivelmente, que oV de vaca é como o V de Vascolet).

 

Produção IV

 

 

Comentários correspondentes: Aponta os dois primeiros cartões (1 e 2), diz "va...", olha ao redor, pega o cartão 4 e diz "ca!", lê agora: 1 2 4 "VA"............."CA".

Apontando a vaca que montou diz: "vaca pequenininha". Toma a tampa do jogo que eu havia tirado antes de sua vista, olha a vaca ali representada e diz: "Vaca mamãe, esta (a sua) vaca pequenininha".

Vemos, no exemplo acima, a maneira pela qual vão aparecendo para esta criança conflitos cognoscitivos nos quais o recorte silábico é colocado em questão com a afirmação figurativa. E de que maneira esta, por sua vez, leva Erika a realizar uma reflexão metalingüística que nem sempre lhe é fácil, por suas dificuldades de evocação. Este é o caso da análise que faz em vaca, com a ca de casa e va...ca com o va de Vascolet...etc.

Neste sentido, se as formas fixas (escritas aprendidas como formas fixas) lhe permitem manter a reflexão metalingüística, também lhe permitem, como ocorre com crianças normais em relação à escrita do nome próprio ou outra forma fixa, dispor de uma informação à qual, de outra maneira, lhe seria mais difícil ter acesso, por suas dificuldades específicas. Por outro lado, a contribuição figurativa do jogo permite acionar a reflexão metalingüística apoiada em um material figurativo que com sua presença mantém a reflexão da leitura e da escrita.

Esta criança podia escrever espontaneamente palavras em forma silábico-alfabética, mas, sempre que realizava uma reflexão metalingüística, costumava ir até a lousa e desenhar o objeto em questão. Se ao pretender escrever espontaneamente necessitava realizar esta operação, por que não utilizar isso em nossa intervenção? E a partir das formações clínicas com nossos pacientes que enriquecemos nossa intervenção.

E a interpelação interdisciplinar nas diferentes produções clínicas o que nos levará, no caso a caso, a pensar as relações entre os mediatizadores cognoscitivos, instrumentais e a mediatização.

 

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NOTAS

1 Publicado originalmente em Temas de Psicopedagogia. Anuário n.6, Buenos Aires, Aprendizaje hoy - EPPEC, 1994, n.6, pp. 77-102.

2 Versão corrigida da conferência na mesa de abertura das 6as. Jornadas Nacionales sobre Problemas de Aprendizagem EPPEC-CAIFI, Rio Cuarto, Córdoba, 1989, e do trabalho "La clínica psicopedagógica hospitalaria: de la significación a la intervención" publicado em Actas de Ias Primeras Jornadas Hospitalarias de Psicoanálisis de Nifios, serviço de saúde mental do hospital interzonal de Agudos Evita(ex Araoz Alíaro), Lanús, Prov. de Buenos Aires, 1819. Anuário n.6, Ed. EPPEC - Aprendizaje hoy, Bs. As., 1994.

3 Em outra publicação abordamos esse ponto (Levy, 1994). Cabe recordar aqui a diferença que implica a operação de suspensão, no sentido de uma interrupção, uma focalização momentânea na leitura daquelas operações de exclusão que supõem a eliminação completa de outras significações.

4 Moranguinho é uma boneca de coleção, de origem brasileira, cuja característica é seu perfume de morango; com esta boneca foram feitas músicas e jogos. Flavia, nome de uma apresentadoa de programa infantil. Os "ursinhos carinhosos" são personagens de desenhos animados.

5 Em Levy 1990, nos referimos, nesse sentido, ao conceito de tematização.

6 Reformulamos aqui as questões que nós formulávamos a respeito deste paciente em Levy, 1990.

7 Cabe perguntar a respeito da trama do processo de constituição e aprendizagem, de que maneira nossas ofertas instrumentais e cognoscitivas atuaram e sustentaram a criança frente ao desamparo psíquico mencionado. Sendo assim, será necessário analisar de que maneira a pulsão visual e de domínio, assim como as ofertas cognoscitivas e instrumentais, incidem no processo de substituição, simbolização e aprendizagem. Esse ponto é objeto de uma investigação clínica que estamos desenvolvendo.

8 N. do T. - Em castelhano: "Dejame tranqüila".

9 O conceito fortemente finalizado foi discutido por Madelon Robert em 1976.

10 Esse ponto foi por nós discutido anteriormente em "El psicopedagogo, la inter-disciplina, el conocimiento y el otro", Temas de Psicologia. Anuário 3, Ed. EPPEC - Aprendizaje hoy, Bs.As., 1987, pág. 121 em Levy 1991, pag 49.

11 O conceito de ampliação referencial foi discutido em "Ante el encuentro dei sujeto y el objeto en la clínica psicopedagógica." Primeras Jornadas de Psicopedagogia, segundo encuentro: El quehacer psicopedagógico-hospital Pineiro,1988 e Levy, 1990.

12 N. do T. - A carteia da vaca será utilizada como exemplo.

13 N. do T. - Vascolet é um achocolatado argentino.