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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.2 no.2 São Paulo 1997
DOSSIÊ
Da pedagogia à psicanálise1
Antonio Di Ciaccia
Psicanalista, fundador de Antenne 110, instituição belga para crianças com transtornos graves
Tentarei, através do assunto que me foi proposto2, mostrar em que a contribuição de Lacan é fundamental, não somente no campo da psicanálise, mas também em outros campos, como por exemplo, o da pedagogia, e isto a fim de precisar as competências e os limites de cada um.
Antes de mais nada, devo sublinhar que o título se presta a algum equívoco. Poderia deixar subentendido uma evolução que iria da pedagogia à psicanálise. Em outras palavras, a pedagogia seria uma maneira antiga de intervir com a criança e teria se tornado precária pelo advento da psicanálise.
Esta última constituiria-se, então, num tipo de pedagogia desenvolvida, evoluída, mais moderna. A partir desta ótica, a pedagogia deveria fazer referência à psicanálise. Ora, esta ótica opõe-se à minha.
A pedagogia tem uma função própria, que não pode ser sobreposta a da psicanálise. E inversamente, a psicanálise tem uma função própria que está, de certa forma, em oposição a da pedagogia.
Entendo então pelo título "Da pedagogia à psicanálise", não dois termos que se sobrepõem, nem dois termos complementares, mas sobretudo dois termos que dão as coordenadas para delimitar um campo. Neste artigo tentarei precisar, num primeiro tempo, a extensão e os limites de cada campo; num segundo tempo, a coabitação, neste campo, da pedagogia e da psicanálise; finalmente, esforçar-me-ei para distinguir quais são os pontos de referência, seja da operação pedagógica, seja da operação psicanalítica.
QUE CAMPO É ESTE?
Poderia ser definido como o campo das ciências presumidas humanas. De fato, tanto a pedagogia como a psicanálise têm como objeto uma certa promoção do humano: da parte da pedagogia, trata-se de uma promoção educativa e da parte da psicanálise, uma promoção terapêutica. Desta forma, pedagogia e psicanálise aparecem como dois ramos de uma mesma disciplina comum que se autoriza ser uma ciência porque dedica-se a um rigor metodológico na ordem da pesquisa pedagógica e da aplicação terapêutica. É este, parece-me, o enquadre geralmente em função na prática corrente: a psicanálise, ou mais frequentemente a psicoterapia, é utilizada como uma intervenção terapêutica que suplementaria as faltas da ação educativa e pedagógica. A psicanálise estaria, então, a serviço da educação.
Anna Freud é a autora que, no campo da psicanálise, tentou, em todos os seus escritos, estabelecer uma certa relação interdisciplinar entre pedagogia e psicanálise: cada analista deveria ser um educador e cada educador um analista. A especificidade da pedagogia e da psicanálise poderia ser definida nos seguintes termos: a pedagogia é persuasiva, a psicanálise, criativa; a pedagogia é inibitória, a psicanálise, libertária. Um excesso de pedagogia conduz a criança a esquemas rígidos demais e, contrariamente, um excesso de psicanálise leva a criança à recusa de cada esquema pré-estabelecido,etc...
Em relação a esta atitude que relega a psicanálise a um papel complementar ao da pedagogia, a voz de Lacan está sozinha a gritar no deserto: "Além do mais, os psi -quaisquer que sejam, que se dedicam a seu suposto agüentar (a miséria do mundo)- não têm que protestar, mas colaborar. Que eles o saibam ou não, é o que fazem"3. A partir de então os lacanianos gritaram escandalosamente a propósito da infame colaboração entre psicanálise e pedagogia, dando a impressão de que eles odiavam a pedagogia. A melhor maneira de educar seus filhos não seria a de enviá-los diretamente ao analista? Do berço ao diva, tal poderia ser a divisa dos partidários da superioridade incondicional da psicanálise sobre todo laço social.
Ora, esta não é - no meu entendimento - a posição de Lacan. Esta posição determina-se pelo fato de que o campo no qual se inscreve a pedagogia e a psicanálise não está elucidado ao se ver definido como campo das ciências humanas, porque esta definição não oferece as coordenadas de suas respectivas operações. Que elas se confundam ou sejam colocadas como contíguas é uma prova disso. Sublinhemos que as ciências humanas vão de um fato a um sentido, enquanto que Lacan lembra que a única via tomada por Freud, a via das ciências da natureza, que vai de uma causa a um efeito, levou, graças às histéricas, a inscrever a psicanálise no registro da causa, da etiologià das psiconeuroses, segundo a expressão de Freud.
Segundo Lacan, então, o campo que permite tornar operatória a pedagogia de um lado e a psicanálise de outro, é o campo da linguagem, que é aquele da causalidade, e até mesmo, como demonstra Jacques Alain Miller no seu curso, de uma dupla causalidade.4
Mas aí também, ou seja, no campo da linguagem, devemos fazer algumas precisões, e distinguir, além disso, dois períodos do ensino de Lacan: somente no segundo período o ensino de Lacan dará as coordenadas claras para a operacionalidade dessas duas disciplinas.
O que quer dizer então campo da linguagem? Está claro que, para Lacan, o campo da linguagem não coincide com aquele da comunicação (S/s), nem com da linguística (no qual o significante está subordinado ao significado). Podemos definir, acredito, de maneira um pouco esquemática, o campo da linguagem como o campo do simbólico: é no interior deste campo do simbólico que uma comunicação humana é possível (ou seja, uma comunicação equívoca, diferente daquela dos animais, que é unívoca). No campo do simbólico é também possível uma leitura da mensagem inconsciente, ou seja, de um saber que o sujeito não sabe que sabe, mas que é, contudo, ativo através do sintoma.
Em outros termos, o célebre axioma de Lacan - o inconsciente estruturado como uma linguagem - inclui o inconsciente (sendo estruturado como, a sublinhar o "como") numa estrutura - o simbólico - que age efetivamente não somente no campo do inconsciente, mas também naquele que é o fundamento de todo o humano.
No entanto, uma primeira definição do campo simbólico, dada por Lacan, não permite ainda diferenciar a especificidade da operação pedagógica da operação psicanalítica.
Paradoxalmente, na sua primeira teorização do campo do simbólico, Lacan encontra-se no mesmo impasse que ele mesmo tinha denunciado na teorização de Anna Freud, pois ele não define sobre o quê se baseia o ato analítico.
Certamente, o campo do simbólico é o campo mesmo da linguagem humana, mas o instrumento para se realizar é a palavra, a palavra enquanto meio de expressão da subjetividade, enquanto meio de comunicação intersubjetiva (através da palavra, poderíamos eliminar o equívoco e se dizer toda a verdade do sujeito), palavra esta que seria capaz de dizer toda a subjetividade (a palavra plena).
A partir desta ótica, o esquema de Lacan é ainda linear: é a palavra que humaniza o homem. É a palavra que lhe dá seu estatuto. O que dizer disso? Que a palavra é centrífuga, a saber, por ela mesma, a palavra se endereça a, vai na direção de, tende para fora do sujeito. Ela tende na direção de quem? É aqui que é preciso sublinhar a colaboração de Lacan. Ela não tende, como no esquema da comunicação simples, na direção de um outro, na direção de um semelhante que compreende o que a palavra diz. Mas tende, ao contrário, na direção de um Outro, colocado assimetricamente em relação ao sujeito, que não somente compreende, mas sobretudo autentica o que é dito, que autoriza o sujeito na sua palavra, que lhe reenvia sua palavra como autenticamente plena de sua própria subjetividade. A palavra então, endereçando-se ao Outro, não é tanto comunicação, mas demanda que o sujeito faz ao Outro para ser reconhecido.
Notemos alguns aspectos desse percurso da palavra que vai do sujeito ao Outro, e retorna: 1) a palavra implica o Outro, mas 2) ela implica também um retorno do Outro, e 3) esta palavra já tem uma estrutura temporal não somente diacrônica, mas também sincrônica, pois tão logo ela retorna ao sujeito, este não se escuta dizer do Outro ter, simplesmente, recebido a mensagem, mas se escuta dizer do Outro qual é o sentido de sua própria mensagem: o sentido de sua mensagem é uma demanda de reconhecimento.
Neste primeiro Lacan, a palavra é então um meio de humanização e lei da palavra que rege a humanização do sujeito. Lacan chama de lei da palavra a lei do reconhecimento: o homem, como tal, é subordinado à lei do reconhecimento. Isto quer dizer que o que diz não é automaticamente palavra se não for ratificada pelo Outro. Sua palavra não diz o que é, mas somente o terá dito quando, a partir do retorno, o Outro apresentar-se como garantia da verdade de sua palavra. Desta maneira, ele será o que o Outro o autorizará a ser: sua palavra terá valor se o Outro a acolhe ou não.
Este período do ensino de Lacan é certamente interessante para situar a posição do sujeito em relação ao Outro. Em Lacan encontramos um elemento que está presente também em Anna Freud. No entanto, o que não encontramos em Anna Freud é o seguinte: entre o sujeito e o Outro não há simetria. Ou seja, o Outro da palavra, em Anna Freud, é um semelhante (outro), enquanto em Lacan, o Outro da palavra já é um não-semelhante, um Outro assimétrico, um Outro que, pelo viés da palavra, constitui o sujeito.
Mas, neste esquema de Lacan, não vemos ainda com exatidão a diferença entre receber a palavra, típico de uma mãe suficientemente boa, e receber a palavra, típico do analista. Em "Variações da cura-tipo", Lacan definiu assim a psicanálise: 1) A psicanálise é uma prática de palavra. 2) Esta prática de palavra comporta a aplicação da lei da palavra que permite ao sujeito ter acesso ao reconhecimento. 3) O Outro que reconhece está em posição assimétrica. 4) O analista se apossa do poder discricionário do ouvinte para elevá-lo à segunda potência.
O dever do analista é então o de fazer com que a palavra constitua o sujeito. A palavra constituindo o sujeito é um ponto importante do ensino de Lacan desta época. De fato, o sujeito da palavra se constitui endereçando-se ao Outro, não está já constituído no início.
Certamente, progredimos neste esquema em relação à posição de Anna Freud -por causa da diferença entre outro e Outro- mas não vemos ainda uma diferença essencial entre o outro da educação (pai ou mãe e seus substitutos) e o outro do discurso inconsciente (psicanalista). Que seja a mãe, o educador ou o analista, eles têm como dever, com respeito à criança, estabelecê-la como sujeito, através da palavra.
Até aqui não vemos distinções essenciais entre a posição do educador e a do analista: os dois devem acolher a palavra para que o humano se subjetive. Tanto para o educador quanto para o analista, o problema é reconhecer o desejo da criança. Somente uma diferença se perfilaria entre a ação do educador e a do psicanalista, quanto ao conteúdo: o educador reservando-se o direito ao reconhecimento do desejo veiculado pela palavra dita, e o analista àquele do reconhecimento do desejo veiculado pela palavra não dita, o sintoma, por exemplo. Através da interpretação, o analista permitiria a metamorfose do sujeito, de um sujeito do sintoma a um sujeito do desejo.
Aqui ainda não aparece a diferença específica entre a operação do educador e a operação psicanalítica. Mas o que entender por: "ora, o analista se apossa deste poder discricionário do ouvinte para elevá-lo a uma segunda potência"? Lacan responde dizendo que o analista torna-se o ouvinte ao quadrado quando abre ao sujeito da palavra a porta do discurso inconsciente, "...abertura própria à regra que ele lhe designa como fundamental: a saber, este discurso primo mantém-se sem descanso, secundo sem moderação, isto não somente quanto à preocupação de sua coerência ou racionalidade interna, mas também quanto a vergonha de seu chamado ad hominem ou de sua admissibilidade mundana. Assim, o analista distende então a distância que coloca à sua mercê a sobredeterminação do sujeito na ambiguidade da palavra constituinte e do discurso constituído(...). A partir disso, o analista tem inteiramente a responsabilidade no sentido pesado que acabamos de definir, a partir de sua posição de ouvinte. Uma ambiguidade sem rodeios, de ser à sua vontade como intérprete, repercute-se numa ordem secreta, que ele não saberia afastar mesmo calando-se.5
Não poderíamos, na minha opinião, melhor indicar a posição do analista: este ouvinte que recusa a posição simétrica do semelhante e que adota a posição assimétrica do Outro. Mas esta posição assimétrica, se ela é necessária para o analista, será que é suficiente para lhe conferir o estatuto de analista? E mais, esta escuta ao quadrado é característica somente do analista?
Todas as figuras nas quais se encarna o ideal do eu não participam também desta posição assimétrica, graças a esta capacidade identificatória que lhe confere o simbólico? Além disso, estas figuras - que chamaremos maternas -que exprimem ao indivíduo, e não somente no estado infantil, as reivindicações identificatórias ao objeto de amor, não são também conotados de uma assimetria que se transmite a cada geração e que aparentemente não se pode jamais obturar?
É a partir disso que se nos faz necessário reexaminar o que a história nos mostra de um Freud que considera como análise a do Pequeno Hans, feita a partir do pai, ou ainda de um Freud que se considera analista de sua própria filha, situação partilhada também por Mélanie Klein. Situação que não revela estranheza, mas principalmente uma posição teórica ainda não esclarecida quanto à dicotomia operatória entre educação e psicanálise, dicotomia que não aparece nem na obra do primeiro Lacan.
De fato, é somente na segunda parte do seu ensino que Lacan nos oferece os instrumentos para diferenciar corretamente, não somente o registro da educação do registro do ensino, mas sobretudo a ação do pedagogo do ato do psicanalista.
Lacan oferece estes instrumentos, quando opera uma subversão quanto à importância acordada à palavra no campo da linguagem, para privilegiar o significante e as leis que lhe são próprias.6
Enquanto a lei que rege a palavra é a do reconhecimento, a que rege o significante é aquela cuja aplicação está de acordo com o funcionamento do inconsciente, através das formas da condensação e dó deslocamento, para utilizar os termos de Freud, ou da metáfora e da metonímia, para utilizar os termos que Lacan retoma de Roman Jakobson.
A instância da letra marca, em Lacan, o começo desta nova teorização cujas consequências são as seguintes.
Do ponto de vista da posição do sujeito, uma nítida separação opera-se entre, de um lado, todos estes elementos imaginários que constituem esta entidade que é o eu, entidade que reconforta e sustenta o indivíduo na sua vida de todos os dias, e de outro, o sujeito do inconsciente, cuja existência é deduzida unicamente a partir do encadeamento significante pelo qual ele é representado. Assim, enquanto do lado egóico, o eu é pleno, pleno que tem uma relação com o prazer e o desprazer, do outro lado, o sujeito do inconsciente é como um espaço entre um significante e outro, é uma lacuna por onde se veicula um desejo subjetivado e que se encarna numa falta de gozo.
Quanto à posição do Outro, deste Outro que é o campo que dá seu estatuto ao sujeito, desenha-se aqui, bem além da distinção entre outro e Outro, uma nítida distinção entre, de um lado, este Outro que é o interlocutor privilegiado da palavra, o Outro que reconhece a palavra e a autentica e, de outro lado, o Outro que, ao contrário, falta-lhe este significante que permitiria ao sujeito identificar-se como ser próprio do gozo: ao sujeito como falta responde no Outro uma falta de significante, uma vez que nem tudo do humano é reabsorvido pela ordem do significante. Passa-se do eu, digamos total, ao sujeito barrado, e correlativamente, do Outro total ao Outro barrado.
Estes dois momentos de conceitualização de Lacan que podemos situar sob o signo da palavra e do significante, Lacan os articula sobre o grafo onde o primeiro plano é o da palavra enquanto articulada à resposta do Outro, e o segundo plano, o do significante enquanto articulado com a falta no Outro.
A partir disso, uma outra distinção deve ser estabelecida quanto à operação que o Outro faz sobre o sujeito: de um lado, trata-se da operação que o Outro faz quando (a partir de O) ele reenvia ao sujeito da palavra uma autenticação da própria mensagem; de outro lado, trata-se, ao contrário, da operação que o Outro faz quando reenvia ao sujeito do significante, que existe, estruturalmente, uma falta de significante, falta que o fantasma vem ocultar. Fantasma que a operação analítica deveria permitir a dissolução.
Parece-me claro, a partir disso, que enquanto a primeira operação é eminentemente terapêutica (autenticação da palavra do sujeito pelo Outro), somente a segunda operação pode se dizer analítica (não-todo o gozo é, no ser falante (parlêtre), da ordem do significante).
No entanto, a primeira operação que chamamos de terapêutica propriamente dita pode ser cindida em duas operações distintas.
De um lado, há a operação que sustenta o sujeito na autenticação desta cadeia de significantes, onde encontra suas ancoragens de identificação. É aí o trabalho de cada educador, de cada substituto paterno, de cada imagem identificatória (o pai menos o gozo). Trata-se do trabalho de terapia de apoio que não é da ordem da análise, pois oferece a possibilidade à criança de se servir da identificação para se defender do gozo. De fato, pelo viés da identificação, a criança se protege, arma-se contra todo ataque possível do gozo. Trata-se de fazer a criança entrar na ordem significante (é este o trabalho preliminar que se faz com a criança psicótica), fazê-la entrar na identificação ao menos deste par que, em geral, a criança faz com o significante, significante que é, ele próprio, paterno.
Por outro lado, existe uma outra operação: aquela que, partindo de um saber estabelecido, produz um sujeito capaz de se afrontar com o que lhe escapa como saber, de afrontar-se com o que ele, o sujeito, ainda não sabe. É aqui que situaremos, não a operação educativa, mas unicamente, a do ensino.
Podemos dizer que a pedagogia participa destas duas operações que são geralmente coordenadas entre si: de um lado, a operação que se apoia sobre a identificação e, de outro lado, aquela que se apoia sobre a aquisição de um saber. A primeira operação, identificatória, permite à criança proteger-se deste gozo que escapa ao significante. Quanto à segunda, ela lhe dá, ao contrário, os instrumentos para um domínio pelo viés do saber.
Totalmente outra é, ao contrário, a operação em curso no dispositivo analítico. Neste caso, não é à constituição do eu que tende a análise, nem a uma aquisição de saber. Ela tende a desnudar, para além do entrecruzamento da cadeia significante, esta falta de significante à qual se reduz o sujeito, e seu gozo correlativo que escapa à influência do poder simbólico do significante.
Até o momento em que as operações pedagógica e psicanalítica eram pouco distintas, como em Freud, ou confusas, como em Anna Freud ou mesmo em continuidade, como no primeiro Lacan, era considerado aceitável um tratamento que "salvaria cabra e repolho7, tratamento que contemporaneamente serviria à constituição do eu da criança e o acionamento de sua divisão subjetiva.
Pode-se constatar que aqueles que se ocupam de terapia de crianças, consideram geralmente como analítico um trabalho que promove somente a identificação, ou ainda, um trabalho que se funda sobre a simbolização. Esta simbolização consiste em fazer a criança dizer e exprimir seus problemas, com a hipótese implícita de que, se este dito/ dizer ou esta expressão se manifestasse corretamente, haveria uma simbolização automática destes problemas com um desaparecimento consecutivo dos sintomas. Mas o que é a simbolização, senão este circuito que torna operatória a palavra do sujeito que, endereçada ao Outro, retorna-lhe para significá-lo? Ora, este circuito é aquele mesmo que adota a mãe, quando responde ao grito da criança, tornado-o significante. A mãe, neste caso, é uma terapeuta? Certamente ela é! Mas não psicanalista!
Para que haja psicanálise, este esquema que chamarei esquema da historização de um sujeito, não é suficiente. É necessário um processo inverso, que chamarei de histerização, a saber, este processo consiste, não em colocar em série os elementos da cadeia significante a fim de que o sujeito se faça representar, mas esta operação que, através do acionamento da cadeia significante, faz surgir a causa mesma da operação significante.
Uma questão se coloca. No caso da criança, quais são, de todas estas operações, aquelas que são possíveis? Certamente é possível esta operação que conduz à historização e que torna a pulsão não educável mas domesticável pelo viés da operação de significantização do trauma, onde se coloca em cena o real da pulsão. Poderia-se definir o trauma como o encontro do sujeito com o sexo, ou melhor, com a realidade sexual (alloerótica e auto-erótica), encontro que, se de um lado determina o humano como sexuado, de outro, o divide e o faz encontrar, desde os primeiros momentos da vida, este parceiro constante que é a morte.
A criança, se ela é sujeito da educação e do ensino, pode ser sujeito de análise? Pode uma criança ser analisante integralmente? Certamente, e isto porque a análise compete ao domínio do sujeito e não do eu. Por outro lado, o analista não está, para a criança, no lugar do educador ou do professor, pois o analista pode ocupar também para a criança esta função de elisão significante que permite à criança dizer não, dizer não à demanda de identificação, dizer não a se fazer objeto, objeto que obtura a falta no fantasma do Outro, particularmente do Outro materno.
Na clínica psicanalítica com crianças, esta operação se desenvolve sobre a marca da primazia do falo. Predominantemente na análise com crianças, é o falo que, por um lado, permite a construção do fantasma, e por outro, mascara a ausência de correspondência no inconsciente, entre um sexo e o outro.
Em outras palavras, o encontro com o real do sexo é traumatizante para a criança, pois ela se encontra confrontada com a diferença dos sexos na medida em que esta diferença será traumatizante depois do período de latência, pois ela se encontrará confrontada ao real de uma exclusão sem possibilidade de arranjo entre os sexos, a não ser pelo fantasma.
A criança pode, então, ser um analisante integralmente, mas a questão que a criança analisante deverá resolver é a de saber em que lugar se colocar para responder corretamente ao desejo do Outro, do Outro materno. O falo é a resposta que vem ajudá-la, seja para responder ao enigma do desejo do Outro materno, seja para localizá-la corretamente no campo da significação subjetiva, enquanto menina ou menino. De uma certa forma, o falo revela a diferença sexual, mas encobre, por causa de sua supremacia, o fato de que a diferença sexual não significa simplesmente que existem dois sexos, mas que entre os dois sexos não há relação, senão fantasmática. De uma certa forma, é como se o falo não fizesse saber ao sujeito a realidade de que o próprio falo é inadequado para cobrir toda a realidade sexual.
Desde sempre, os analistas que escutam as crianças se deram conta desta primazia do falo. Por causa desta primazia, suas interpretações se referem constantemente ao falo e às subseqüentes separações dos sexos.
Do lado do adulto, isto se produz, ao contrário, diferentemente, pois após o período de latência, o jovem analisante, ou não tão jovem assim, terá justamente que se haver com o fato de que não-toda realidade sexual está recoberta de maneira adequada pela significação fálica. A questão aqui colocada não é tanto o que deseja a mãe, questão à qual o falo pode responder, mas a questão que chega ao sujeito é aquela de o que quer a mulher, questão à qual o falo é inadequado como resposta.
Para o analista que responde à demanda de uma criança, apresenta-se consequentemente uma dificuldade suplementar pois, se lhe é difícil encarnar o objeto causa do desejo para um analisante adulto, é ainda mais difícil inscrever a criança na significação fálica, sem ocupar a função de um pai ou de um substituto paterno, sem lançar mão da identificação. Neste caso, a análise cairá numa propedêutica ou, pior ainda, numa profilaxia. Pois, mesmo no caso da criança na qual a questão que fica é a da divisão dos sexos significada pelo falo, o lugar que o analista deve ocupar é o de não fechar a questão com a significação fálica, mas de abri-la num além, na direção deste real que a significação não consegue cobrir.
Para a criança analisante, o problema a afrontar e a resolver não é o da impossibilidade da relação sexual, mas o de preservar a posição particular da primazia do falo no que concerne a um e a outro sexo. Pois, para a criança, o falo é este operador que lhe permite ser estrangeira a ela mesma, e isto pelo significante estrangeiro, no que diz respeito ao lugar do objeto causa do desejo no fantasma do Outro materno. Pois é através do falo que advém a extimidade8 do objeto causa do desejo.
Resumidamente, podemos dizer que, tanto na criança quanto no adulto, a psicanálise articula-se pelo viés do sujeito do inconsciente e do Outro barrado. Mas no adulto, a cura analítica é centrada no objeto (a), enquanto que na criança ela é centrada no falo.
Mas de que maneira podemos dizer então que se trata da mesma operação analítica, sendo dado que ela é centrada diferentemente? Certamente ela é centrada diferentemente, mas concerne a mesma "coisa". Pois o que está em jogo, tanto na análise do adulto quanto na da criança, é a pulsão de morte.
Na criança, ela é trabalhada em análise a partir de sua relativa significantização (portanto, através do falo). No adulto, ela é trabalhada em análise a partir daquilo que permanece como resto da operação de significantização.
Todo analista, quem quer que aceite ser analista para o outro, deveria aceitar crianças em análise. Mas, freqüentemente, falta esta coragem ética que permite ao analista assumir seu ato sem se reduzir à figura de um pai como puro significante, nem encarnar um pai como puro gozo.
NOTAS
Tradução: Renata Petri
1 Este artigo foi originalmente publicado em Préliminaire, Bruxelas, Antenne 110, n.2, 1990, com o título "De la Psychanalyse à la Pédagogie".
2 Conferência feita em Bolonha em 23 de novembro de 1989, durante as Conferências do Campo Freudiano.
3 Lacan, J. (1974) .Television. Paris: Seiul, p.25
4 Miller, J.-A. (1987-88). Cause et consentement. Curso ministrado no Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, inédito.
5 Lacan, J. (1966) . Ecrits. Paris: Seuil, p.331.
6 Cf. Miller, J.-A (1986). "Lacan contro Lacan" In: Miller, J.-A; Silvestre, M. & Soler, C. Il mito individuate del neurótico. Roma: Astrolabio, p. 94-98.
7 N.T. No original, "sauver chèvre et choux". Expressão idiomática da língua francesa que revela uma alternância disjuntiva.
8 N.T. Do francês extimité, um neologismo que sugere o contrário de intimité (intimidade).