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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.2 no.3 São Paulo 1997
DOSSIÊ
Os problemas de comunicação na clínica dos distúrbios do desenvolvimento infantil
Mauro Spinelli
Professor titular da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP; médico do DERDIC
"...nas psicoses ... sempre haverá , ao nível do mundo1 , alguma alteração do cérebro, seja lesional, funcional ou bioquímica , assim como haverá , no mundo 2 , a vivência de uma catástrofe psíquica. E, ao nível do mundo 3 , sempre haverá uma teoria que explique e organize os fenômenos , tanto os biológicos quanto os psicológicos."
Jaques Szterling (1994)
INTRODUÇÃO: MODELOS CLÍNICOS E SEUS MÉTODOS
As ações clínicas no campo dos distúrbios do desenvolvimento não escapam, ao contrário, obrigam, mais do que outras, à reflexão sobre o modelo que as direcionam, ou seja, sobre o conjunto de princípios e conceitos no qual se baseia o método aplicado.
A utilização de procedimentos ordenados, baseados em princípios advindos de conhecimentos científicos validados pela prática e aplicados com vistas à obtenção de resultados definidos, é uma das formas de se caracterizar o que seja método. Tal significado está apontado etimologicamente: estudo dos caminhos através dos quais se busca atingir um objetivo.
A Medicina busca seus objetivos através de conhecimentos sobre o organismo, sobre agentes que prejudicam suas estruturas e funções, sobre os seus processos de recuperação e respectivos agentes favorecedores.
O seu método, no que que diz respeito à moderna medicina chamada ocidental , estruturou-se a partir do impulso classificatório das manifestações das doenças, ocorrido no século XVIII, e da anátomo-patologia dos séculos XVIII e XIX. Lesões explicavam os sintomas; estes e os sinais, procurados e observados pelo clínico, desvelavam no vivo o que o olhar direto mostrava no morto.
O caminho entre a lesão e o sintoma foi sendo mapeado pelos conhecimentos acerca da fisiologia e da patogenia - mecanismo de produção das manifestações da doença. A semiologia enriqueceu-se com a experiência proporcionada pelo método, deu saltos com avanços tecnológicos, estruturou-se como processo de observação de sintomas, investigação de sinais (análise), correlação de sintomas e sinais entre si e com dados anátomo-fisiológicos (síntese). O raciocínio clínico , presente em todas as etapas, é norteado pelo grau de conhecimento do método e dos seus fundamentos, e busca conclusões coerentes, dadas pela articulação dos dados obtidos.
O OBJETO DA MEDICINA
Ainda hoje a medicina é acusada de "prescindir de toda consciência pessoal de um estado mórbido e mesmo de toda demanda", e de que para ela "o doente não é senão um indicador de signos e não um demandante ou pedinte" (Clavreul, 1983).
A medicina carrega de fato a sua história, a localização na doença, o remeter primário ao orgânico, o pensamento linear de causa-e-efeito. A impessoalidade, a objetividade são privilegiadas mesmo em escritos metaclínicos atuais, nos quais se considera que "o objeto específico da ciência médica é o processo mórbido e não o doente" (Kiva, 1991).
Esta posição não é, porém, hegemônica. A medicina tem incorporado conhecimentos científicos de outras áreas, os quais a fazem colocar, modernamente, a demanda e o papel da relação clínica em lugar privilegiado:
O clínico... "precisa mais do que de fatos que fazem parte do assim chamado conhecimento médico". Seu sucesso exige que considere as complexas circunstâncias relativas ao cliente e da capacidade de "estabelecer e manter com ele uma relação aberta", sustentadora do trabalho clínico (Tierney et af, 1995).
Evidencia-se, então, que existem duas formas divergentes de conceber a clínica médica, as quais subjazem diferentes relações entre ciência e medicina e diferentes idéias a respeito do que seja ciência. Uma considera possível e desejada a objetividade estrita, e que os dados sejam aqueles fornecidos pelo organismo: "Mesmo quando fatores etiológicos ou elos da cadeia de patogênese são extra-somáticos, eles se acoplam diretamente a cadeias causais intra-organísmicas" (Riva, 1991). Outra, considera parte das preocupações da ciência o estudo dos efeitos das subjetividades nas situações clínicas e a possibilidade apenas parcial de aplicação de conhecimentos científicos gerais, descontextualizadas, a pessoas particulares.
O primeiro desses dois modelos, biológico estrito, no qual o objeto é a doença, a visão de ciência é a positivista, conduzindo à busca de objetividade. O conhecimento a respeito do cliente (paciente) deve restringir-se ao que se passa no seu corpo físico e, nesse sentido, pensa-se chegar à sua totalidade. A fala do paciente é tomada em consideração apenas como informativa e só é utilizada a que merece crédito; o clínico despreza suas partes confusas, incoerentes, "não objetivas". O resultado é tanto mais garantido quanto mais o médico exclui de suas ações a própria subjetividade.
Na segunda perspectiva, a identificação, ou a exclusão, de patologias orgânicas, de síndromes clínicas, seu tratamento, são parte importante do trabalho médico que, porém , não se reduz a elas. Assume que, muitas vezes, o sofrimento dos que a procuram confrontam a medicina com a questão do sujeito psíquico, obrigando-a a abrir-se para o que ela ancestralmente procurou excluir.
Esta não é uma colocação muito nova e não nasceu de teorias prévias e sim das perplexidades originadas na clínica, na qual um certo tipo de "sintomas" escapa ao olhar do clínico dos órgãos e dos dados conscientemente expostos. Ela vem se constituindo com base em conhecimentos psicanalíticos que, tal como mostram exemplos não apenas da clínica foniátrica, não são obrigatoriamente incompatíveis com a medicina, nem "seu avesso", como afirma Clavreul (1983).
Um primeiro exemplo é o modelo psicossomático da escola de Paris que, apoiada no primeiro tópico, considera importante o papel da "insuficiência representativa do pré-consciente" na gênese de sofrimentos ao nível do corpo e valoriza a escuta, pelo médico, da fala do paciente no que ela pode revelar acerca dessa insuficiência (Ongaro, 1994).
Outra perspectiva, fundamental na clínica dos distúrbios do desenvolvimento, coloca "no centro o conceito de sujeito do desejo, do sujeito do inconsciente" sem que isto implique na "perda de especificidade das disciplinas intervenientes" ( Paes, 1996).
O método clínico que atende essa perspectiva no campo médico tem como objetivo o conhecer sobre processos patológicos mas, também, sobre as articulações, inclusive imaginárias, que se estabelecem entre esses processos e o mundo psíquico dos que pedem a intervenção clínica.
Essa intervenção enfrenta dificuldades e exigências das quais a clínica biológica estrita está livre. Uma delas é a disposição para ouvir informações e, ao mesmo tempo, escutar sentidos não-manifestos. Para ouvir a fala do cliente como relato, como pedido explícito, e também como possível véu encobridor de outra demanda, ela própria com valor de sintoma.
CLÍNICA MÉDICA E LINGUAGEM
Os primeiros estudos de afásicos calcados na anátomo-patologia marcam até hoje a concepção médica biologizante acerca da linguagem: ela é produto da anatomia e da fisiologia. Eles até apontavam onde ela se localizava e as apresentações atuais de tal idéia apoiam e se baseiam na posição inatista, desembocando em explicações behavioristas, no que se refere ao papel do ambiente. Consequentemente, conduzem à utilização do método clínico que busca a relação entre causas, mecanismos patogênicos e sintomas; focalizam as alterações de linguagem valorizando estritamente os conhecimentos biológicos.
O médico concentra seus conhecimentos em órgãos e na patologia em si - cerebral, laríngea, auditiva, nas especialidades tradicionais e na clínica foniátrica que segue os seus passos - européia, por exemplo.
O modelo que se lhe opõe, seguido aqui, ao contrário, focaliza a clínica de linguagem com a concepção de que o ambiente, a família e a cultura são constitutivas, não intervém como puro estímulo; com a idéia de que dinâmicas e produções inconscientes fazem parte do processo clínico e favorecem a sua compreensão, não a obscurecem; o clínico não está fora do processo, livre de se questionar quanto à sua intervenção.
MEDICINA E DISTÚRBIOS DO DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM
Seguindo esse modelo, o diagnóstico de patologias é parte fundamental, mas não exclusiva do estudo clínico, pelo conhecimento de que as mesmas alterações orgânicas configuram quadros clínicos diferentes, dependendo da sua representação na sociedade e no mundo psíquico dos pais. Servem como exemplo os diferentes níveis de linguagem atingidos por pessoas portadoras de surdez de mesmo grau, atribuíveis a diferenças de percurso emocional dos pais, constatação que faz parte da experiência diária e da investigação acadêmica (Harrison, 1994). Da mesma forma, o efeito iatrogênico da palavra do médico, marcando a posição e o desenvolvimento da criança muito mais do que a patologia, quando se ignora, ou despreza, os efeitos dessa fala no psiquismo dos pais e na constituição de crianças afetadas por síndromes.
O fato de não ficar vinculado de forma estreita ao diagnóstico da patologia, não isenta o médico do aprofundamento nessa tarefa. Pode ser tão iatrogênico a displicência com o diagnóstico de afecções orgânicas quanto distribuir rótulos de patologias de forma descompromissada.
O DIAGNÓSTICO DE PATOLOGIAS ORGÂNICAS NOS DISTÚRBIOS DO DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM
Existe enorme quantidade de perturbações orgânicas prejudiciais ao desenvolvimento da linguagem. Uma parte delas assesta-se em órgãos periféricos - do sistema auditivo ou do "sistema" fono-articulatório. Outra localiza-se no sistema nervoso central .
As alterações do sistema auditivo periférico produzem deficiência auditiva que, por sua vez, interfere com o desenvolvimento da linguagem. Elas são, na sua maioria, congênitas, decorrentes de falha genética ou de patologias adquiridas intra-útero, como a rubeola gestacional, ou perinatais, como a anóxia e a doença hemolítica.
No estudo clínico importa realizar o diagnóstico funcional, ou seja, a descoberta da deficiência auditiva, que obriga a uma eliminação de problemas nos quais existem falhas nas respostas aos sons por outras razões, especialmente psíquicas (em autistas e psicóticos) e auditivas centrais, como nas agnosias e disíasias.
Esse diagnóstico diferencial e, mais ainda, a orientação terapêutica e o estudo prognóstico, fazem-se melhor quando se consegue determinar a localização da lesão (ou malformação) e a etiologia. Estes diagnósticos - topográfico e etiológico - costumam estar relacionados: a surdez genética tende a ser coclear; a rubeola e a doença hemolítica tendem a afetar estruturas periféricas e centrais, podendo provocar lesões auditivas centrais exclusivas, com manifestações auditivas que simulam deficiência sensorial (periférica).
O prognóstico referido à linguagem e à orientação terapêutica são muito diferentes em cada uma dessas condições. Se o problema é sensorial, especialmente por patologia coclear, há melhor aproveitamento de amplificação e maior aceitação de aparelho. As patologias que afetam o nervo auditivo e, principalmente, as localizadas nos núcleos e vias subcorticais e nas áreas corticais prejudicam demais a discriminação dos sons, mesmo se os limiares auditivos estiverem pouco ou nada afetados. Chegam a impedir o reconhecimento da fala, apesar da audição tonai não estar afetada, configurando a agnosia auditiva verbal, ou a compreensão da linguagem, sem agnosia, nas disfasias. Em cada uma dessas situações, o uso de aparelho de amplificação sonora individual (AASI) pode ser pouco útil, inútil , ou mesmo prejudicial.
Note-se que patologias localizadas no sistema nervoso central podem produzir quadros clínicos que se confundem com aqueles provocados por alterações no sistema auditivo periférico. Os casos citados, de agnosia auditiva verbal e disfasia, são formas muito severas de distúrbios do desenvolvimento restritos à esfera da linguagem.
Tais formas clínicas - agnosia auditiva verbal e disfasia de desenvolvimento - e outras menos graves, todas caracterizadas pela sintomatologia restrita à esfera verbal (ou quase), e pelo fato de estar presente uma alteração congênita de estrutura participante do "sistema cerebral da linguagem", são colocadas, internacionalmente, na categoria denominada "Distúrbio Específico do Desenvolvimento da Linguagem" (Specific Developmental Language Disorders; Specific Speech-language Disorders; Specific language impairment), ou apenas "Distúrbio Específico de Linguagem" (DEL). Separam-nas de distúrbios de linguagem não específicos, ou seja, participantes de problemas globais de desenvolvimento, como na deficiência mental e na paralisia cerebral; separando-as também de problemas de linguagem nos quais não existe patologia cerebral, como a fissura palatina e a surde 7. periférica.
DEL - QUADROS CLÍNICOS E ESTUDOS SOBRE A ALTERAÇÃO CEREBRAL
As dificuldades com a linguagem aparecem em um ou mais dos seus aspectos - fonológico, semântico, gramatical e prosódico, com pequena ou ausente dificuldade pragmática. Podem estar mais concentradas na produção articulatória, devido à dispraxia motora oral ou à perturbação da imagem auditiva dos fonemas; ou na retenção e seleção de vocábulos, acompanhadas ou não de distúrbios gramaticais. Os casos mais graves são aqueles nos quais existem falhas de compreensão, quando intensas caracterizam os subtipos afásico e agnósico verbal. No caso da disfasia, há menor chance de confusão com a surdez porque tende a haver boas reações aos sons ambientais e produção de alguma fala ou jargão, com razoável qualidade melódica. Há, também, pouca habilidade para todas as formas de linguagem, inclusive a gestual e a escrita. No caso da agnosia auditiva verbal há características semelhantes às dos surdos, boa habilidade linguística geral, o que favorece a aquisição de linguas sinalizadas e escritas.
Em todos eles, os estudos clínicos mostram que a alteração orgânica cerebral não determina sozinha o quadro. Os procedimentos utilizados no diagnóstico desse fator somam-se a outros, destinados a uma compreensão do papel da estrutura familiar, de aspectos não-biológicos e das inter-relações de fatores, presentes toda vez que se trabalha com problemas de desenvolvimento.
A presença de alteração cerebral no DEL é suspeitada ou hipotetizada desde os primeiros clínicos que a ele se referiram, ainda que sob outras denominações. Arnold e Luchsinger (1965) citam trabalho de Seeman, publicado em 1930, no qual o retardo de linguagem é atribuído á falha constitucional de origem hereditária. Eles próprios (1965), assim como Imgram (1969) apontam evidências de alteração cerebral, algumas decorrentes de hereditariedade, outras de patologias intra-uterinas e perinatais.
A confirmação de hereditariedade em uma parte dos casos vem sendo feita em estudos de famílias (Samples and Lane, 1985; Tomblin, 1989), um dos quais mostrou que, naquela família, o distúrbio se devia a um gen autossômico dominante (Hurst et alii.,1990).
A constatação de alteração cerebral tem sido reiterada em necrópsias (Landau, Goldstein & Klefner, I960; Cohen, Campbell & Yaghmai, 1989) e em pesquisas feitas com imagem por ressonância magnética (Plante et alii., 1991), nas quais se observam micro-giria, desorganização das camadas corticais (nas necrópsias), assimetrias cerebrais atípicas, giros atópicos e ectopias corticais, atribuíveis em alguns casos a distúrbio de migração neuronal (Cohen, Campbell & Yaghmai, 1989) .
A repercussão funcional dessas alterações seria a explicação para o que se encontra nas investigações clínicas do processamento auditivo de material verbal, do processamento motor da fala e das inabilidades verbais.
Outras repercussões funcionais são observadas com tomografia por emissão de positrons (PET) e por emissão única de raios gama (SPECT), reveladoras de anomalias na distribuição do fluxo sanguínio cerebral e, portanto, da função de áreas cerebrais específicas (Lou et alii., 1984; Tzourio et alii., 1994).
DISTÚRBIO ESPECÍFICO DE LINGUAGEM, AUTISMO E PSICOSE INFANTIS
Adeptos do modelo médico biológico estrito, buscando explicações para o autismo e para a psicose infantis, formulam , dentre outras, a hipótese de que eles decorrem de distúrbios de linguagem. O problema primário estaria em falhas de processamento auditivo de material verbal que impediria a percepção de modernas e dos traços prosódicos da linguagem (Simon, 1975) ou estaria em uma incapacidade verbal generalizada, característica da disfasia (Churchill, 1972). Ambas condições colocam o problema no campo do Distúrbio Específico de Linguagem.
Outra tendência do mesmo modelo coloca distúrbios de linguagem e distúrbios psíquicos como entidades independentes. O mutismo, a ecolalia, a inversão pronominal, presentes no autismo; a fala delirante, a alucinatória e a incoerência discursiva, presentes na psicose, são postos como próprios do distúrbio psíquico. São alterações da função comunicativa , pragmáticas.
Opostas a elas, estão os distúrbios nas formas verbais, ou seja, inadequações na escolha de vocabulário (paracusias, dificuldades de evocação verbal), na fonologia (falhas aiticulatórias), na gramática (telegrafismo, etc), na prosódia (gagueira , taquifemia). Estas seriam próprias de falhas no sistema orgânico, que processa a linguagem, indepedentes do psiquismo, infrequentes ou irrelevantes no autismo e na psicose infantis.
Os fundamentos clínicos psicanalíticos não fazem desprezar nenhuma dessas características verbais. As pragmáticas marcam a presença de distúrbio na 'função comunicativa' da linguagem, ou seja, na fala que nos arremessa em direção ao outro. As "formais" podem ser consequência apenas aparente de dificuldades fisiológicas, ou produção de sentidos, manifestações inconscientes, assim compreendidas a partir da prática e da teoria psicanalíticas, desde Ereud com a "Psicopatologia da Vida Cotidiana" e com Mannoni (1983), Bergés (1988 ), entre outros.
No autismo e na psicose, haja ou não substrato fisiológico ou fisiopatológico, a linguagem é marca de uma posição psíquica, constituída na rede de desejos presentes nas relações familiares. A presença de patologia cerebral congênita, abrangente ou restrita ao sistema da linguagem, pode, ou não, interferir nessa rede, intensificar, ou não, a chance de perturbações no processo de constituição psíquica da criança.
A experiência clínica cotidiana e estudos controlados ( Bartak, Rutter & Cox, 1977) mostram crianças com dificuldades receptivas verbais severas que não se tornam autistas. Isso pode significar que distúrbios orgânicos de linguagem (e outros) participam da rede psicopatogênica, ou não, dependendo da maneira como são registrados e a criança significada psiquicamente nos pais.
Explicitando: as relações entre patologia cerebral, situações familiares, distúrbios de linguagem e problemas psíquicos não se colocam como opostos, nem de exclusão mútua. Por isso, a analise das manifestações verbais insinua, mas não garante diagnósticos diferenciais. Falhas de evocação, parafasias semânticas e dispraxia verbal, tidas como indicativas do Distúrbio Específico de Linguagem, não asseguram esse diagnóstico. Contextualizadas, podem dizer mais da posição psíquica do que de incapacidades verbais.
Manifestações verbais de tipo dispráxica, dificuldades para evocar palavras, fala telegráfica, tendem a favorecer o diagnóstico de DEL; distúrbios de tipo pragmático como ecolalia, inversão pronominal, fala delirante, tendem a indicar problema psíquico. Esse diagnóstico é reforçado se existe relação alterada com objetos e com pessoas, mas o inverso não o exclui: não são raras as crianças em risco de psicose trazidas à consulta com queixas referidas exclusivamente a aspectos formais da linguagem - "trocas de sons" na fala, dificuldades na leitura e na escrita que configuram falsa dislexia.
Essas considerações orientam o estudo clínico de crianças com distúrbios de desenvolvimento de forma a não fragmentá-lo em olhares separados para linguagem e para o psiquismo. Assim, aconselha-se também a não colocar como excludentes o papel de fatores orgânicos e o das experiências psíquicas. Distúrbios de linguagem e do psiquismo inter-relacionam-se de maneira muito mais rica que por simples oposição ou por equalizaçâo - há boa constituição psíquica apesar de severas dificuldades de linguagem, há perturbações psíquicas que se escondem atrás de boas formas verbais.
CONSEQUÊNCIAS TERAPÊUTICAS
A perspectiva clínica apontada e a sua ética excluem escolhas terapêuticas apriorísticas e corporativistas. A compreensão clínica, na qual se incluem as resistências e as transferências, busca orientar a condução a uma ou outra disciplina terapêutica. Nessa clínica, apesar das especificidades, fonoaudiologia, medicina terapêutica e psicanálise seguem eixo comum, quanto às concepções de sujeito e da função dos clínicos. C) conhecimento das especificidades faz parte do repertório de habilidades clínicas, favorece encaminhamentos adequados. Não os determina, exatamente, pelo privilégio posto nos sentidos que a queixa adquire no processo clínico. Esses sentidos desestabilizam o pedestal biológico das manifestações e diagnósticos parciais que orientam a clínica multiprofissional. O sujeito não dividido em partes sintomáticas é atendido por quem, eticamente, assume a possibilidade de apoiar as forças que lhe permitem se constituir e crescer.
Isso significa assumir a perspectiva clínica no seu caráter inter-disciplinar, que coloca "em permanente questionamento" (Paes, 1996) as suas técnicas e as suas indicações.
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1 O autor refere-se aos 3 mundos de Karl Popper (Popper and Fccles, 1995): 1 - o dos campos físicos, da biologia, da química; 2 - o das experiências psicológicas conscientes e inconscientes; 3 - o do saber humano, das teorias e argumentações.