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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo  1998

 

DOSSIÊ

 

O instante da loucura

 

The madness moment

 

 

Durval Checchinato

Psicanalista de formação lacaniana, foi membro da École Freudienne de Paris. Conduz seminários na Sociedade Campinense de Psicanálise

 

 


ABSTRACT

Lacan precisou de maneira clara aquilo a que se deve o surgimento da loucura: uma falha no Nome-do-Pai. Isto implica a ausência de um significante. Esta ausência abre um buraco na rede e deixa o paciente sem recurso metaforizante para circunscrever o real. Maud Mannoni precisa mais exatamente ainda essa questão: no momento exato da intrusão do real o sujeito apela ao outro e o outro que lhe faltou um dia se apresenta apenas como pura ausência. O sujeito se precipita numa catástrofe imaginária. É o "fim do mundo".

Mannoni; loucura; Nome-do-Pai.


ABSTRACT

Lacan clearly determined what originates the madness manifestation: a failing on the Nom-du-Père. That means the absence of a signifiant that makes impossible to the patient to circumscribe reality. Still, Maud Mannoni states with more exactitude: on the very moment that the reality comes in, the individual appeals to the other. However, this other, once lacked, presents itself as a pure absence. The individual falls in an imaginary catastrophe; it is "the end of the world".

Mannoni; madness; Nom-du-Père.


 

 

Le diagnostic, en effet, se donne au prix d'exclure
et la parole du sujet et
le contexte dynamique et historique dans lequel une souffrance s'exprime,
fût-ce dans un langage sans parole.
M. Mannoni

 

INTRODUÇÃO

A Maud Mannoni devo minha formação lacaniana e meu apreço e carinho do trabalhar com psicóticos. A ela minha admiração e infinita gratidão! Mannoni, tantas vezes publicamente elogiada por Lacan, conseguiu deslindar o linguajar lacaniano no vivo da clínica. Por ocasião do lançamento de O psiquiatra, seu "louco" e a psicanálise, sua atuação vinha ao encontro de todas as reivindicações de maio de 68, sobretudo no respeitante às questões da loucura e do louco. Mannoni se abre à antipsiquiatria e às mais diversas correntes psicanalíticas, mas, na prática, jamais abre mão da episteme psicanalítica. Longe das bravatas e denúncias fáceis, sai a campo e demonstra "por a mais b" como trabalhava (trabalha) com os psicóticos: "um psicótico se faz em três gerações", "nada se pode entender da psicose sem antes verificar a história parental onde o doente surgiu", "a criança é sintoma dos pais"... Mannoni sabe escutar o louco: Bonneuil, Thiais, Frank, Sidonia, Georges, Jacques... e os preciosos e brilhantes comentários clínicos a abrir horizontes para práticos e bisonhos...

A denúncia do discurso psiquiátrico como um discurso pretensamente científico baixando sentença de morte a pacientes ou consagrando falsos débeis! A psicanálise a interrogar a educação e a questão da formação dos analistas são temas que elabora com ilustração, agudeza e bom senso. Lamentável que sua obra tenha sido mal traduzida ao português, inclusive com erros conceituais como demande vertida por exigência. Mannoni, mais atual que nunca, infelizmente, porém, permanece tão pouco conhecida em nosso meio "psi".

Vejamos aqui apenas um tópico, brilhante, o momento da instalação da loucura.

 

O INSTANTE DA LOUCURA

"Para que uma psicose se desencadeie, é necessário que o Nome-do-Pai, 'verworfen' foracluído, isto é, jamais vindo no lugar do Outro, seja aí chamado em oposição simbólica ao sujeito.

"É a falta do Nome-do-Pai neste lugar que, pelo buraco que ela abre no significado, incerta a cascata de remanejamentos do significante donde procede o desastre crescente do imaginário, até que seja atingido o nível em que significante e significado se estabilizem na metáfora delirante" (Lacan, 1966, p.577).

O significante Nome-do-Pai não existe como tal. Existe o pai. Existe o nome dele consignado em cartório. O filho, a filha, recebem o nome do pai. É este nome que prova a filiação, suficientemente, a ponto de ser dispensável um exame de ADN. Mas o filho só pode se designar por esse nome herdado, usá-lo e em nome dele agir se um dia tiver tido a sorte de ter sido designado como um terceiro entre seu pai e sua mãe.

E o que produz, o que opera essa posição terceira que possibilita ao filho ser alguém diante da mãe que simplesmente o tem como complemento de sua realidade feminina? É exatamente algo muito além da materialidade do nome do pai que o coloca no mundo como um cidadão oficial, distinto de todos os outros cidadãos. Esse algo é o que denominamos de função. O Nome-do-Pai é algo além de todas as designações possíveis, o Nome-do-Pai é uma função simbólica, universal, que paira soberana sobre todos os nomes dos pais. O Nome-do-Pai é um significante puro, cuja função é ordenar o neonato ao destino de ser um par humano. Ele rompe a relação do filho com a mãe e lhe possibilita que, despegado do parasitismo materno, passe para a série dos seres humanos, instale-se como terceiro e possa iniciar sua caminhada como sujeito. O Nome-do-Pai instaura a virtualidade de poder falar e, ipso facto, de ser, existir, articular-se, ordenar-se, orientar-se e conhecer o mundo e seus mistérios. O Nome-do-Pai instala a condição humana porque funda o inconsciente: o Nome-do-Pai é o que em primeira e última instância instaura a diferença dos sexos, edifica o sujeito, organiza a família e possibilita a sociedade.

A psicose é um desastre psíquico ocorrido precisamente no momento em que o sujeito se defronta com o apelo do Outro e o Outro falha, não lhe fornecendo a função do Nome-do-Pai que lhe garantiria a nominação do que lhe cai como um abismo, então o inominável. Esta falta do Nome-do-Pai abre um buraco impreenchível no significado, pois não pode existir significado sem a determinação do significante. Nessa queda livre o sujeito abre os pára-quedas de seu imaginário e cristaliza essa precipitação no buraco insondável do apelo sem assistência do Outro. Uma florada imaginária explode de todo lado, o ego perde sua função ordenadora e o sujeito se torna puro objeto das determinações delirantes.

Mas, se insistíssemos sobre o momento preciso dessa instalação catastrófica, o que poderíamos averiguar?

Lacan nos mostra no estudo sobre a fase do espelho que, graças ao Outro (em geral a mãe), a criança pode reconhecer a si mesma na imagem especular como distinta da imagem, rejubilando-se pela identificação alcançada, em que pese a incoordenação motora que não unifica seu corpo.

O jogo de imagens, a do espelho e a que lhe é devolvida pela mãe confirmando que é a dela, constitui o que chamamos de mundo imaginário. Este mundo se compõe do objeto (sempre parcial), aquilo que do real o filhote humano apreende e do ego que se institui como a instância que registra e coordena a apreensão desse objeto. Mas o júbilo da criança denota outra realidade especificamente humana: a criança se distancia do objeto e ao mesmo tempo do outro, e forja uma primeira matriz do que a constitui como terceira na relação edípica, ou seja, é nesse momento preciso que o sujeito se estabelece como Eu. É essa, propriamente falando, a entrada na ordem humana. "O Eu se constitui em relação a uma verdade da ordem simbólica e Lacan mostra como a própria identificação especular (ausente na psicose) não acontece a não ser que uma palavra tenha tornado possível ao sujeito o reconhecimento de sua imagem" (Mannoni, 1970, p.134).

O Eu está relacionado à verdade do sujeito e a verdade é da ordem da palavra, do simbólico. Assim, conclui-se logicamente que "um pano de fundo simbólico é necessário sem o qual a ordem imaginária, pela irrupção de uma imagem de si, introduz uma hiância" (Mannoni, 1970, p.134).

Essa hiância é o buraco de que acima falava Lacan ou o abismo que descrevíamos no despencar da cascata imaginária. Que acontece nesse momento preciso? Exatamente a implantação da psicose: "o outro (o terceiro semblante) assim colocado em cena, o sujeito tem que o reconhecer ao mesmo tempo que a si mesmo e é esse impossível reconhecimento que sela o fato psicótico no qual o sujeito não pode senão permanecer na alternativa: ou a presença ou o desaparecimento de um ou do outro; isto é, ou a vida ou a morte" (Mannoni, 1970, p.134).

O sujeito se vê em duas canoas e, na indecisão de optar por uma ou outra, elas se abrem e ele afunda nas águas do imaginário. Não consegue reconhecer nem a si e nem ao outro porque a presença do Outro não o açode ou é simplesmente insuficiente. "A Verwerfung será então tida por nós como foraclusão do significante. No ponto em que (...) é chamado o Nome-do-Pai, pode então responder no Outro um puro e simples buraco, o qual por carência do efeito metafórico provocará um buraco correspondente ao lugar da significação fálica" (Lacan, 1966, p.558).

Por isso, "a função simbólica é a que vai criar as próprias condições de uma possibilidade de palavra e o acesso do sujeito ao Eu da verdade" (Mannoni, 1970, p.134).

O "efeito metafórico" é nada mais nada menos que a transformação de uma relação imaginária numa relação abissal, alienando o sujeito no parto do Eu. O sujeito tangido pela linguagem passa a habitar "a morada da fala", onde ele verdadeiramente se constitui como homem. Ao mesmo tempo que a fala o corta dele mesmo colocando-o no exílio de si, o encadeia a seu objeto, aquele que o implanta no real e institui seu desejo: o fantasma surge no instante em que o desejo já não mais está a fim de relançar o sujeito no caminho do objeto substitutivo. O sujeito, marcado pelo significante, está ao mesmo tempo separado e encadeado ao objeto do fantasma. Mas o psicótico perde este movimento excelentemente subjetivo e subjetivante da inclusão e exclusão do objeto. E, ao perder sua flexibilidade, estagna-se no nível "em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante" (Lacan, 1966, p.577).

Decorrido um ano de tratamento analítico, já sem medicação alguma e ritmo de vida retomado a pleno fôlego, eis um apanhado desse momento abissal:

"Quatro noites sem dormir. Tinha a sensação clara de minha avó assumindo meu corpo. Eu estava de barriga para cima e havia uma pessoa deitada sobre mim: sem dúvida era minha avó (a avó tinha morrido havia pouco). Essa transição entre um estado e outro foi abrupta. Era um conjunto de sensações e estímulos diferentes. Esse limiar me está claro: a distinção entre o surto (sic) e o estado anterior. Tudo começou comigo inquieto, preocupado porque não dormia.

"Quando senti que minha avó entrou em mim comecei a sentir sensações e excitações externas que eu nunca tinha sentido antes: como se eu tivesse tomado uma droga. Vivi num instante o que nunca vivera antes. Eu não sentia meus braços e os membros inferiores. Eu sentia que alguma coisa em mim estava errada. Eu sabia que eu, pai, mãe, estávamos ali, mas havia algo errado.

"Discuti com meu pai sobre a morte de minha avó. Aí eu disse que não podia dormir em casa. Fui dormir na casa de meu tio.

"No dia seguinte, ao amanhecer, ele (tio) foi me levar à casa de uma amiga dele que lidava com macumba.

"Cinco dias sem dormir, comecei a ter alucinações: minha avó tinha entrado em mim, ela era tão querida. Eu não queria voltar para casa, pois isso tinha acontecido lá.

"Aí eu comecei a perder a noção do tempo cronológico. Isso aconteceu em 30 de dezembro de 1996. Mas a partir daí o tempo não existia mais para mim.

"Chegou a um ponto em minha vida que eu comecei a desacreditar em mim. Nas quatro noites decidi mudar meu comportamento, corrigir minha postura. Comecei a mudar a forma de vida. Eu não fui forte suficiente para mudar até os olhares das pessoas sobre mim. Isso me derrubou. Comecei a acreditar que as duas avós estavam vivas. Comecei a me agarrar a elas. Nas quatro noites eu só pensava na minha avó. Eu estava abalado pela morte da avó."

O sujeito catastroficamente não é mais. Ele é apenas o personagem cristalizado do delírio. "Sozinhas, permanecem então, entre o sujeito e o outro, palavras que dançam, ou lançam ordens, palavras nas quais o sujeito não se reconhece mais" (Mannoni, 1979, p.149). Ele não fala mais. Ele é simplesmente falado, dito: "Avó", "Napoleão", "Collor", "Papa", "vão me raptar e incendiar-me", "vão me matar". Esta é a única "certeza" absoluta no mundo. Mas o custo dessa certeza é a perda da verdade, da única e necessária, pois ela é condição para a busca e a descoberta de todas as outras; "o ser do homem não somente não pode ser compreendido sem a loucura, mas não seria o ser do homem se não portasse em si a loucura como limite de sua liberdade" (Lacan, 1966, p.575). Esse ser dolorosamente precisa da loucura para ser verdadeiramente compreendido, mas essa mesma loucura lhe é um limite, uma ameaça constante que lhe anuncia ininterruptamente que sua liberdade é precária. O paradoxo está em que, embora a loucura lhe seja uma ameaça, é ao mesmo tempo sua companheira de viagem e o parâmetro do real.

Nietzsche, nos Alpes italianos, amargou duramente essa passagem e sem volta. Fernando Pessoa, heroicamente, graças ao recurso da escrita, safou-se desse abismo, embora a vida inteira tivesse circundado sua borda. Mas isso é para outro momento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LACAN, J. (1966). Écrits. Paris: Seuil.         [ Links ]

MANNONI, M. (1970). Le psychiatre, son "fou" et la psych analyse. Paris: Seuil.         [ Links ]

_____. (1979). La théorie comme fiction. Paris: Seuil.         [ Links ]