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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo  1998

 

ARTIGOS

 

A garatuja como vestígio das letras

 

New perspectives on psychomotor performance

 

 

Esteban Levin

Psicomotricista, psicanalista. Diretor da Escuela de Formación en Clínica Psicomotriz de Buenos Aires. Professor convidado da Universidad de Buenos Aires e da Universidade Federal de Fortaleza

 

 


RESUMO

Análise da configuração das letras e do cenário gráfico a fim de compreender a singularidade de gestos motores como as primeiras garatujas das crianças. Define-se uma letra como o vestígio de uma garatuja e essa última como a lembrança de um gesto que se dá a ver para um outro/Outro.

Alfabetização; psicomotricidade; clínica infantil.


ABSTRACT

This paper brings an analysis of letters and graphic scenario configurations in order to understand the singularity of motor gestures as the children first scribbling. A letter is defined as a vestige of a scribbling and the latter as the remembering of a gesture to be seen by the other/Other.

Literacy; psychomotor performance; child clinic.


 

 

Ao examinarmos superficialmente os primeiros traços e desenhos realizados por crianças - estamos nos referindo a essa etapa de escrita não figurativa que se observa aproximadamente aos 2 anos - descobrimos que os pequenos realizam marcas, riscos, linhas, que se entrecruzam sem um sentido preestabelecido. São as chamadas garatujas.

Esses traços iniciais configuram uma primeira escritura em imagens, em que persiste uma falta de destreza e habilidade manual para realizar uma figura socialmente legível. Por exemplo, a criança faz um traço, uma garatuja e afirma que é um gato, um cachorro, uma menina, uma casa, um carro ou o que no momento esteja captando sua intenção, seu desejo.

A falta de destreza e domínio práxico-motriz não impede que se realize essa verdadeira representação de escrita. Nesse sentido, a criança antecipa-se mentalmente (simbolicamente) à possibilidade efetiva e eficaz de seu controle práxico-manual.

Esse ato singular de escrita não figurativa delimita, no mesmo momento em que se inscreve, uma presença no ato irrepetível do sujeito. Esse traço unitário, essas marcas, não fazem signo, enunciam a existência do sujeito na própria escrita da letra1.

Os movimentos da mão possibilitam a escrita desses primeiros traços; neles se ata o movimento da mão a uma superfície que transforma o espaço num vestígio, numa presença de existência subjetiva. Nessa presença, o movimento da mão se perdeu; seu vestígio configura o traço, essa marca imóvel que liga o movimento do corpo à escrita.

Esse movimento desordenado da mão inscreve-se numa superfície em que o próprio ato de escrever impõe-se à criança como ligadura que alinhava, compõe, o garatujar ao significante que representa essa garatuja para outro significante, numa série em que o sujeito se representa no campo do Outro. Só ali a criança encontrará a sanção que confirma seu traço, sua garatuja, como lugar de presença em que sua existência coloca-se em ato.

O pequeno garatujador precisa que o Outro lhe confirme que, nessa garatuja que ele criou, efetivamente há um "gato", ou uma "casa", ou um "papai", ou uma "mamãe", ou qualquer outro significante com que ele nomeie esse traço. Nesse sentido, também é habitual ouvir a seguinte pergunta da criança sobre sua garatuja: "Mamãe, o que está dizendo aqui no desenho?" ou "Que letra escrevi?" ou "Você lê o que fiz?".

Esse verdadeiro ato gráfico, essa primeira produção escritural, determina sua posição no discurso e a ligação do movimento corporal com a estrutura.

Nesse brinquedo sobre o papel a criança vai registrando que, quando desenha movendo sua mão, configuram-se ali superfícies que não existiam. Poderíamos conjeturar que a criação e a combinação das linhas geram uma passagem da unidimensionalidade à bidimensionalidade; e com ela a fabricação de uma superfície. Talvez seja na busca de reconhecimento do Outro que a criança comece a intuir a tridimensionalidade.2

A possibilidade da escrita delimita na criança outro ponto de encontro - tyché - entre o desenvolvimento e a estrutura.3 Quem escreve é um sujeito-criança mas, para fazê-lo, necessita de sua mão, de sua orientação espacial (lateralidade), de um ritmo motor (relaxamento-contração), de sua postura (eixo postural), de sua tonicidade muscular (pressão fina e precisa) e de seu reconhecimento no dito ato (função imaginária).

É na apropriação da letra escrita (escrita-leitura) onde a criança se comprometerá, mais uma vez, em seu desejo de usar a mão para desenhar seu próprio dizer numa dimensão de existência.

Esses pequenos conquistadores - as crianças - realizam entre os dois ou três anos um descobrimento apelativo e essencial - descobrem que os livros falam pela voz do Outro que os lê. As letras, os desenhos e as imagens estruturam-se na relação com a voz do Outro que os interpreta e os diferencia. Desse modo, na voz do Outro entrecruzam-se as imagens, as letras e o som.

Posteriormente, a criança pede ao Outro que repita o mesmo conto da mesma maneira, que o leia de novo, que o conte do mesmo modo, participando do conto, entrando nele e na cena que se monta na repetição. Quando a criança aceder à leitura-escrita, essa cena adquirirá todo o seu brilho, se ressignificará no desejo de saber ler e escrever. O interesse pela leitura-escrita terá, nesse primeiro cenário relacionai, sua origem virtual.

O desejo de aprender a ler e escrever poderá se desenvolver se por ali circular o enigma, o enigma que começou a ser tecido entre o livro, a voz, a imagem, os desenhos, as garatujas e o Outro. Pois o que se diz e se articula na voz pode ser escrito, e o que se escreve, inscrevendo-se num papel, pode ser dito.

Se a criança quer escrever é porque essa letra, esse desenho ou esse número serão lidos e interpretados por outros. Embora inscrever-escrever um desenho não seja o mesmo que fazê-lo com letras, estas têm sua origem nos primeiros grafismos lúdicos que são as garatujas e os desenhos. Para esse processo é fundamental ir dominando a mão, esquematizá-la, orientá-la no universo simbólico. O garatujar, o desenhar não figuradamente e o jogar sobre qualquer superfície adquirem um papel estruturante deste caminho, cujo alvo final será a escritura alfabética.

Escrever não é desenhar, pois o escrever implica inscrever, marcar, subtrair, gravar uma superfície, deixando um vestígio para ser lido por outro. Esse traço escriturai não resvala na superfície "sensível", fere-a, causa uma escansão dela, marca-a orientando a superfície; a escrita conforma suas bordas, cava uma profundidade.

Ajuriaguerra considera a escritura uma verdadeira práxis motriz. Sua prática e o desenvolvimento da habilidade manual "permitirão que se organizem (sic) gradualmente, se tornem ágeis, suaves e rápidos, econômicos e automáticos". De nossa perspectiva, o desenvolvimento motor não tem sentido sem a articulação subjetiva. Sem sujeito não há escrita, nem leitura.

Na ligação significante entre o desenvolvimento neuromotor, a imagem motriz, a constituição subjetiva e o impulso motor, a escrita como própria se transforma em um gesto dado a ver ao Outro. É nesse valor simbólico que a criança toma a letra para transformá-la em sua própria escrita. Se tal acontecimento se realiza, no ato de escrever, a mão práxica funciona como representação; desse modo, a criança poderá "esquecer-se" da mão para poder escrever e, ao fazê-lo, inscrever seu próprio destino no escrito de seu dizer.

A letra não é a voz nem a palavra, mas no escrever o gesto gráfico-psicomotor serve de ponte, ligando a voz e a letra à palavra onde um sujeito inscreverá seu singular estilo. Não é pelo movimento práxico em si mesmo que a criança desejará escrever; o sujeito poderá fazer de suas práxis uma ferramenta significante para seu escrever porque há estrutura subjetiva.

No desejo de escrever as letras que o representam - a primeira coisa que se quer escrever são as letras do próprio nome - a criança precisará de suas práxis, de seu eixo postural, de sua tonicidade, de sua lateralidade e de seu ritmo. É justamente aí que poderemos encontrar os problemas psicomotores mais característicos que enunciam o sofrimento de um sujeito.

No mesmo momento em que o movimento da mão deve perder-se para transformar-se em notação alfabética, em escrita, costumam aparecer as dificuldades práxicas, espaciais, temporais, que dificultam sua realização. A dificuldade práxica motriz deixa em seu "desproporcionado" e "desajeitado" traço, a marca, o risco impronunciável de seu sofrimento. Sua mão se torna presente, presentificando seu corpo, seu esquema corporal, que se sustenta na inabilidade e não na imagem, em seu correlato simbólico.

A criança só poderá afirmar-se quando em seu "saber fazer" a mão funcionar como representação, isto é, quando o corpo, situado na qualidade de ausente simbolicamente, der passagem ao fluir do movimento que através de sua mão - práxis - delineia o traço das letras.

As letras das crianças contêm rastros das primitivas garatujas que se foram detendo, inibindo, ordenando e esquematizando. O prazer no movimento da mão inscreveu-se como pegada para transformar-se em notação alfabética.

Finalmente, é importante salientar que o prazer de desenhar a garatuja não se encontra no "sensório-motor" do garatujar, mas na cena e no cenário que configura o Outro ao afirmar sua produção escriturai. Apenas a partir daí o prazer na sua realização articulará a sensibilidade proprioceptiva e práxica tornando estético o movimento dado a ler para um outro/Outro. A garatuja implica um ato lúdico-escritural enigmático que se estrutura como espelho em representação; marcando o trânsito entre a representação e o representado.

A garatuja como tal terá de se incorporar (recalcar-se) para transformar-se em desenho figurativo. O desenho terá de se incorporar para se tornar letra, a letra terá de se incorporar para tornar-se leitura - pois a leitura é a metonímia da letra - e o corpo terá de se representar para que a mão práxica se encaixe na ordem simbólica da escrita e, desse modo, as garatujas configuram-se como moldes do ato escriturai e como vestígios estéticos das letras.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AJURIAGUERRA, J. D. (1977). La escritura del niño. Barcelona: Laia.         [ Links ]

LEVIN, E. (199D. La clínica psicomotriz, el cuerpo en el lenguaje. Buenos Aires: Nueva Visión.         [ Links ]

WALLON, H. (1978). Del acto al pensamiento. Buenos Aires: Psique.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Se considerarmos brevemente a história da escrita propriamente dita, o que se denomina "seqüência linear" data aproximadamente de 3.500 a.C. Mas 30 mil anos antes aparecem incisões e gravuras ritmadas em cavernas pré-históricas. Estas incisões, que antecedem os signos codificados, são consideradas "verdadeiros traços rítmicos corpóreos" que se instalam como pequenas garatujas, não figurativas, nem codificadas nem alfabéticas. No entanto, essas marcas petrificadas, congeladas no tempo, enunciam que por lá passou um sujeito de desejo.
2 A essa altura da infância a terceira dimensão ainda não está diferenciada, não há diferenciação entre um objeto plano e outro com volume. Nem sequer o aspecto projetivo está diferenciado, não se podendo distinguir entre a superficialidade e a profundidade.
3 Cf. La infância en escena, Buenos Aires, Nueva Visión, 1995.