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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.6 São Paulo jul. 1999

 

DOSSIÊ

 

A pastoral educativa

 

The educational pastoral

 

 

Sandra Corazza

Doutora em Educação pela UFRGS; professora da Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre

 

 


ABSTRACT

A Pastoral Educativa - A partir das palavras de Jesus, no Evangelho de São Marcos, e as iniciais de Comenius, na Didactica Magna, realizo uma análise interdiscursiva, ao modo de Foucault, para responder à questão "E os pequeninos, Senhor?" Inscrevo tais positividades em uma mesma série histórica, por encontrar a constância enunciativa do infantil girando sobre dois eixos: o de sua inocência e o da culpa efetiva. Argumento que assim se constituiu o jogo de poder-verdade-subjetividade de nossa Pastoral Educativa.

Educação; história; infantilidade; governo; poder


ABSTRACT

The Educational Pastoral - Grounding on Jesus' words in St. Mark's Gospel and Comenius' foreword in Didactica Magna, I carry out an interdiscoursive analysis, in Foucault's manner, to answer the question "What of the small children, my Lord?" I inscribe those positivities into one single time series, as I find the narrative constancy of the infant as spinning round two axles: the one of her innocence and the one of her effective guilt. I claim that the game of power-truth-subjectivity of our Educational Pastoral is established this way.

Education; history; childishness; government; power


 

 

1. DEIXAI VIR A MIM

Algumas pessoas traziam-lhe crianças para que as acariciasse.
Mas os discípulos ralhavam com elas. Vendo isto, Jesus se indignou e lhes disse: "Deixai vir a mim as criancinhas, e não as impeçais, porque o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas. Eu vos declaro esta verdade-, quem não acolher o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele".
E ele as abraçava e abençoava, e lhes impunha as mãos.
Jesus e as crianças Bíblia, s. d., Evangelho de São Marcos, 10, 13-6, p.1037
1

Em razão de seus latinismos, especialmente dos termos gregos explicados por meio dos correspondentes latinos, pode-se afirmar que essas palavras de São Marcos2 foram escritas, provavelmente, em Roma, pelo ano 67 ou 68, tendo por destinatários principais os cristãos convertidos do ambiente pagão. Os exegetas apontam que este Evangelho caracteriza-se por ser o "dos fatos", produzido de modo intencional com uma linguagem simples e popular, destinada a transmitir e explicar, aos neo-conversos, muito mais do que as palavras de Cristo: sua figura de homem.

Se foi necessário, como consigna a Bíblia3, que esse homem Jesus, do qual Marcos se ocupa, para vir à Terra - depois de nascer de uma mulher e antes de ser homem - se fizesse "filho" e, por isto, alguém em estado e condição diferente de "homem", pode não parecer estranho que ele próprio atribua um lugar específico àqueles seres que, no século I de nossa era, eram chamados de "criancinhas". O que hoje pareceria, para nós, perfeitamente "natural", em termos de etapas da vida, na História Sagrada nem sempre foi assim. Trataremos de verificar sob que condições passa a ser exercida a função de enunciado4 que assegura, no discurso da Escritura, a existência do "filho" e da "filha", bem como a da "criança".

Conforme o Antigo Testamento, no livro do Gênesis, após ter criado o Céu e a Terra, e todas as coisas que neles havia, Deus disse:

Façamos o Homem à nossa imagem, como nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, todos os animais selvagens e todos os répteis que rastejam sobre a terra. E Deus criou o Homem à sua imagem; à imagem de Deus Ele o criou; homem e mulher Ele os criou.

E os abençoou, ordenando-lhes que procriassem: "Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a". No discurso bíblico, estavam estabelecidos, por determinação divina, os descendentes do homem e da mulher; porém, não será ainda aqui, neste momento de total intimidade divina, que se falará dos filhos e das filhas.

Depois de sete dias de criação, Deus pôs o homem e a mulher no "Jardim paradisíaco do Éden, para o cultivar e o guardar", dizendo-lhes que comessem de todas as árvores do paraíso, com exceção de uma, que estava no meio do jardim: a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. O restante da história é conhecido: ao desobedecer a Deus, cometendo o pecado de comer o fruto da árvore proibida, homem e mulher foram castigados. Àquele, Deus responsabiliza por ter escutado a voz de sua mulher5, e amaldiçoa a terra inteira por este ato, tornando penoso todo seu trabalho vindouro, obrigando-o a comer o pão com o suor de seu rosto, até que volte à terra, tornado pó. À mulher, Ele disse: "Tornarei penosa a tua gravidez, e entre penas darás à luz teus filhos. Contudo, sentir-te-ás atraída para teu marido, mas este te dominará".

No Jardim do Éden, os/as filhos/as-crianças existiam apenas enquanto possibilidade, determinada pelos imperativos divinos da fecundidade e da multiplicação. Somente após o Pecado, e a concomitante expulsão do homem e da mulher do Paraíso, é que o filho-homem entrará em cena: "O homem Adão se uniu a Eva, sua mulher, que concebeu e deu à luz Caim. 'Adquiri um homem', exclamou ela, 'com o auxílio de Javé Deus.' Deu também à luz seu irmão Abel".

A partir daqui, o Antigo Testamento é pródigo em narrar os filhos (no masculino), os homens "unem-se" às mulheres, ou as "conhecem", e seus filhos passam a ser nomeados - "Adão mais uma vez se uniu a sua mulher, e ela deu à luz um filho, ao qual impôs o nome de Set, 'porque', disse ela, 'Deus me deu outro filho em lugar de Abel, que Caim matou'6. Set teve um filho a quem chamou de Enós. Foi então que se começou a invocar o nome de Javé".

Será dito de todos os patriarcas antediluvianos que estes têm "filhos e filhas", mas apenas os filhos-homens são referidos como aqueles "gerados às suas semelhanças, como suas imagens". Na parte intitulada Depravação humana é relatada a constatação de Javé acerca da maldade do homem sobre a terra e de seus maus pensamentos ao longo dos dias. Aí as filhas-mulheres ingressam no discurso da Bíblia, no exato momento em que os "filhos de Deus"7 passam a ter relações sexuais com as filhas dos homens: "Quando os homens começaram a se multiplicar sobre a terra, e lhes nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram boas para se casarem e tomaram para eles mulheres entre todas as que eles distinguiram".

Tendo comprometida sua vocação sobrenatural, o homem passa a ser carne e, por isto, deve ser castigado, para sua própria purificação. Então Deus reduzirá o tempo de sua vida para 120 anos e, de modo geral, se arrependerá de tê-lo criado: "Disse Javé: 'Exterminarei da face da terra o homem que criei - e junto com o homem os animais, os répteis e as aves do céu -, porque estou arrependido de tê-los criado'.".

No livro criacionista da genealogia de Adão encontra-se: 1. a fecundidade e a multiplicação, como ordem de Deus, para que homem e mulher povoassem a terra e a submetessem; 2. durante a estada no Paraíso, não há qualquer referência a filhos nem a filhas, mas ao homem, "Macho e Fêmea"8; 3. somente após o Pecado, isto é, após o conhecimento do Bem e do Mal, e a posterior expulsão do Éden de Delícias, é que Adão se une a Eva, que concebe e dá à luz, por vez primeira, a dois filhos-homens, Caim e Abel; 4. as filhas (no feminino) são inscritas no dramático momento em que a Bíblia refere as relações sexuais e a depravação humana, antes que as águas do dilúvio cubram toda a terra, por quarenta dias e quarenta noites, como castigo para as perversões da carne.

Se as crianças-filhos/as não estavam no Paraíso, nem foram as que pecaram contra Deus, elas surgem no discurso bíblico como os "frutos" - filhos e, mais marcadarhente, filhas - dos pecados humanos. Elas não eram culpadas do Pecado, mas dele participavam como seu produto, especialmente as crianças-filhas. Já podemos visualizar o aparecimento de uma regularidade enunciativa - que, sem dúvida, não foi dada desta vez para sempre -, constituinte do discurso ocidental acerca do infantil e operada por dois eixos ativos: 1. o da isenção da culpa primordial e, portanto, inocência; 2. o da participação indireta na culpa e, portanto, possibilidade de culpa.

As palavras evangelizadoras de São Marcos acerca de Jesus e as crianças nada mais fazem do que articular a relação entre o eixo da inocência infantil com a posição diferenciada que Jesus, na Galiléia, atribuiu às criancinhas. Fazendo-se homem, para viver entre os homens, com a intenção de os salvar, Jesus veio ao mundo nascendo como uma criança- filho9, a qual, por estar isenta do pecado original, perante os olhos de Deus, deveria receber, além de um lugar distinto, também um estatuto privilegiado. As crianças não eram responsáveis pela queda humana, sendo portanto abençoadas; e Jesus as chama para perto de si e estabelece, como condição a seus seguidores adultos, que sejam como elas, que se façam tais quais elas - criancinhas, pequeninas -, para acederem ao Reino Bem-Aventurado de Deus Pai.

Esse elevado estatuto espiritual, atribuído pelo discurso cristão aos filhos-crianças - e, em menor grau, às filhas-crianças -, concebidos à semelhança do Menino Jesus, será mais tarde retomado pelo discurso educacional parental e escolar: retomado e recopiado, deslocado e transformado, recorrentemente redistribuído, a partir de outras condições históricas e práticas sociais. O sistema de dispersão e difusão de tal discurso não terá poucos efeitos de verdade e de poder sobre o infantil: fixará a unidade do objeto "infância"; estabelecerá as formas e os tipos de sua enunciação; determinará o sistema dos conceitos permanentes e coerentes que o põem em jogo; reanimará a permanência do tema "infantil" pela definição de um campo de possibilidades estratégicas.

Ao inventariar a análise interdiscursiva, nos campos do discurso religioso e educacional, terei, no momento oportuno, condições de examinar alguns deslocamentos desse duplo eixo, cuja arqueologia encontra um de seus pontos de inflexão no texto da Bíblia. Por enquanto, ainda descrevo o primeiro eixo - o da inocência, e a conseqüente dominação espiritual das criancinhas -, o qual será utilizado pelo discurso educacional em processo de ordenamento racional e de institucionalização escolar, muitos séculos mais tarde: na época em que as Luzes celestes começam a bruxulear, por terem iniciado seu encontro com as terrenas.

 

2. JUMENTINHO ATADO: CELESTE PRIVILÉGIO

Se no princípio de tudo era a Palavra, esta, de origem divina, é que delega às "crianças" uma exemplaridade e mestria espiritual sobre os outros, no caso, os "adultos"10 . Em um dos cruzamentos do discurso cristão com a nascente positividade da educação escolar, encontra-se também tal forma de relação de poder.

Em meados do século XVII, o pastor11 checo Jan Amos Comenius12 ao pôr sua Didactica Magna - ou Tratado da arte universal de ensinar tudo a todos13 - em um ordenamento baconiano14, faz com que "Comenius" passe a ser o nome próprio singular ocupante de uma posição de funcionamento na discursividade educacional, o qual potencializará práticas escolares de mais de três séculos nas sociedades ocidentais: aquelas que, para falar do infantil, articulam poderes e saberes religiosos com os científicos e políticos.

Comenius introduz as primeiras referências às crianças pelo mesmo versículo de São Marcos para justificar que elas não sejam apenas o objeto, como também o exemplo da verdadeira regeneração humana, a cujo serviço põe sua obra de reforma escolar. Escutemos Comenius inscrevendo esse lugar cultural reservado à criança, bem como sua identidade social, ao tomar por fundamento a Palavra Sagrada. Após fazer a "Saudação aos leitores", dirige suas palavras "a todos aqueles que presidem as coisas humanas, aos ministros de Estado, aos pastores das igrejas, aos diretores das escolas, aos pais e aos tutores", rogando que a estes "seja dada a graça e a paz de Deus, pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, no Espírito Santo"; para então referir o Gênesis, onde é narrada a criação do homem - "a mais amada das criaturas" -e sua colocação num paraíso de delícias - "a parte mais amena do mundo" (Coménio, 1985, p.55).

Nas cinco páginas seguintes, Comenius trata da perda do Paraíso, advinda da fraqueza e da traição do homem, dizendo que Deus se lamentará disso e o abandonará por algum tempo. Porém, por obra de Sua infinita sabedoria, graça e misericórdia, aquela criatura ingrata poderá reconquistar o que perdera:

"Com o machado e a serra e a foice da sua lei, cortadas pelo pé e podadas as árvores meio mortas e secas do nosso coração, aí plantou novos rebentos escolhidos no paraíso celeste; e, para que estes pudessem pegar e crescer, irrigou-os com o seu próprio sangue, e nunca mais deixou de os regar com vários dons do seu Espírito Santo, que são como que arroios de água viva: e mandou também os seus operários, jardineiros espirituais, tratar com cuidado fiel a nova plantação de Deus" (Coménio, 1985, p.58).

A Igreja de Comenius - no caso, a reformada - é a instituição que, por meio de seus jardineiros espirituais, faz reverdecer o Paraíso; porém, vem fracassando nesta missão, pois a nova plantação se abastardou, se perverteu, degenerou e depravou. Deus, na Sagrada Escritura, e os homens sábios têm se lamentado por isso: "Invertido e estragado, tudo está destruído ou arruinado". Contudo, resta um duplo conforto: primeiro, na Vida Eterna, o reencontro com o Paraíso Perdido, em que os homens "readquirirão a perfeição e até uma perfeição mais plena e mais sólida do que aquela primeira perfeição, agora perdida"; segundo, o conforto de que, nesta vida aqui na Terra, também se pode renovar o Paraíso. É neste conforto, necessário e possível, que Comenius fundamenta a Didactica Magna, constituindo-a e justificando-a como parte do caminho em direção a Deus, em que concorreríamos para o aperfeiçoamento de nossa vida, que só pode ser renovada por "uma reta formação da juventude". Após esta argumentação, é que começa a tratar da criança.

Vamos retornar ao ponto de partida, para ouvir a voz de Comenius indagar, em relação às palavras de São Marcos - "Mas que palavras são estas?" -, e responder:

"Ouvi-as bem e examinai-as atentamente todos, para ver que coisa queria dizer o Mestre e Senhor de todos. Como proclama que só as criancinhas são merecedoras do reino de Deus, admitindo a participar na herança apenas os homens que se tenham tornado semelhantes às criancinhas!" (Coménio, 1985, pp.60-2).

As narrativas da Sagrada Escritura, trazendo os gestos e a significação de Jesus para com as criancinhas - como deixar que dele se aproximem, abençoá-las e, mais do que isto, apresentá-las aos adultos como modelos a serem seguidos em direção à Salvação Eterna -, parecem não ter sido de pouca valia para o século XVII e sua sociedade profundamente constituídos pela religiosidade cristã, de um modo tal, que Comenius dirige-se às próprias crianças, para exaltá-las em seu celeste privilégio:

"Oxalá vós, diletas criancinhas, possais entender este vosso celeste privilégio! Eis no que ele consiste: é vosso o resto de dignidade que ficou ainda no gênero humano, ou seja, o direito que ele tem ainda à pátria celeste! Cristo é vosso, vossa é a santificação do Espírito, vossa a graça de Deus, vossa a herança da vida futura: sim, tudo isto é vosso, pertence-vos a vós particularmente e infalivelmente, pertence mesmo só a vós, a não ser que qualquer outro, convertendo-se, se torne como vós" (Coménio, 1985, p.63).

Apresentando a condição de que os adultos, convertendo-se, façam-se iguais às crianças, o discurso educacional escolar, cujo conjunto de enunciados passa a ser especificado nessas primeiras linhas da Didactica Magna, estabelece a centralidade que às crianças será atribuída por este discurso, como o cristão já fizera. Tal hierarquização interior a cada um desses dois campos discursivos - e, a um só tempo, comum a ambos - será alterada por injunções mostradas a seguir. Permanecendo um pouco mais nas reterritorializações bíblicas de Comenius, nelas encontramos que as criancinhas, não estando ainda manchadas pelos pecados, nem degradadas pela queda, tampouco desgraçadas pela incredulidade, são proclamadas "as legítimas herdeiras do patrimônio celeste". Elas são as "criaturinhas inocentes" de Deus, que, tendo recebido Suas graças, ainda não perderam o paraíso das delícias espirituais e corporais; diferentemente do homem ingrato, que, construído à imagem divina, não se mostrou digno dela, renegando esta prova suprema de Seu amor.

Se a corrupção, produzida pela soberba de Adão, invadiu toda a substância do ser humano, Cristo, ao enxertar no próprio pecador, a árvore da vida - "a natureza humana" -, não exclui senão a quem se exclui a si mesmo, por não crer. E se alguém quiser saber por que é que Deus tem em tão grande consideração as criancinhas e as aprecia tanto, por mais que reflita, não encontrará uma razão mais forte do que esta: "As criancinhas têm todas as faculdades mais simples e mais aptas para receber os remédios que a misericórdia divina oferece para a cura das coisas humanas, em estado tão deplorável".

Comenius fala aqui de "remédios" para a cura das coisas humanas, para sua condição degradada, dos quais, além de não escapar, as crianças serão suas principais destinatárias - e certamente acabarão tomando os amargos. Ao modo do discurso de Jesus registrado pelos evangelistas, Comenius apresenta-as como mestres exemplares aos adultos, confirmando não somente sua posição diferencial dos adultos, como sua superioridade espiritual sobre estes:

"Eis que nós, adultos, que julgamos que só nós somos homens e vós sois macaquinhos, só nós sábios e vós doidinhos, só nós faladores inteligentes e vós ainda não aptos para falar, eis que, enfim, somos obrigados a vir à vossa escola! Vós fostes-nos dados como mestres, e as vossas obras são dadas às nossas como espelho e exemplo!" (Coménio,1985, p.64).

Nessa exortação de Comenius, deparamos com um dos enunciados do conjunto interdiscursivo formado pelo discurso cristão e o educacional que mostra a regularidade moderna de práticas discursivas e não-discursivas do infantil: a regularidade de sua inocência15. Porém, mais do que deslocar tal enunciado do campo religioso para o educacional, mais do que manter o estatuto infantil de "mestria", de "espelho" e de "exemplo" para os adultos, Comenius condiciona o exercício dessa função aos seguintes critérios: "que as crianças saibam conservar a graça de Deus já recebida" e "manter-se limpas no mundo". Porque realiza esse deslocamento crucial, o pastor prescreve a educação como "o meio por excelência" para a consecução de tais critérios, já que "estas coisas podem ensinar-se mais facilmente às crianças que aos outros, pois não estão ainda dominadas pelos maus hábitos".

Comenius chama as crianças de "plantazinhas do céu", "plantazinhas do Paraíso", "plantazinhas de Deus", comparando-as a "novas arvorezinhas", a quem se deve tratar com muito cuidado, para que cresçam "belas e fortes" e seja possível "renovar o pomar", pois suas mentes são "simples e não ainda ocupadas e estragadas por vãos preconceitos e costumes mundanos", e, por isto, "mais aptas para amar a Deus" (Coménio, 1985, pp.65, 67, 132 e 133).

Cita, como alegórica, uma passagem do Evangelho de São Lucas, em que, no momento de partir para Jerusalém, Jesus ordenou que dois de seus discípulos fossem buscar uma jumenta e o jumentinho, filho da jumenta: "Ide a essa aldeia, que está fronteiriça; entrando nela, encontrareis um jumentinho atado, em que nunca montou pessoa alguma". Os discípulos foram e lhe trouxeram o que fora ordenado; não é na jumenta, e sim no jumentinho - que estava atado - que Jesus monta. Como acredita Comenius, em cada passagem do Evangelho nada está ali por acaso, nem as vírgulas, mas cada uma dessas passagens contém um mistério a ser decifrado para nossa instrução, pois, mesmo que Jesus chame a si os velhos e os jovens, são os mais jovens, não ainda subjugados pelo mundo, aqueles mais aptos para se habituarem ao jugo de Cristo do que aqueles a quem o mundo já estragou e viciou, mantendo-os sob os seus graves tributos. A eqüidade exige, portanto, que a nossa infância seja conduzida a Cristo; e Cristo tem prazer em colocar a infância sob o seu doce jugo e sob si mesmo (Coménio, 1985, p.66).

Porque Deus tem em tão alta consideração as criancinhas, obriga a nós, adultos, a ir junto delas, a desaprender todos os males que contraímos com uma má educação e com os maus exemplos do mundo, assim como a nos desabituar com o que estávamos habituados. Para os adultos, a missão é a de regressar ao primitivo estado de simplicidade, de mansidão, de humildade, de castidade, de obediência, de inocência; ou seja, ao estado espiritual natural das crianças, oposto ao estado de natureza corrompida, próprio dos adultos.

É ao crescimento quantitativo da instrução - em que as escolas e o método propostos por Comenius serão, ao mesmo tempo, uma arma de combate contra a Igreja de Roma e um atendimento às necessidades práticas de uma nova sociedade que se reestrutura -que será atribuída a principal responsabilidade por essa reeducação, embora ela seja bem difícil: "Não há coisa mais difícil que voltar a educar bem um homem que foi mal educado". Em sua emergência, o discurso educacional escolar, tal como o cristão, porá, de um lado, as crianças em estado de graça, e, de outro, por oposição, os adultos, em estado pecaminoso, devido a sua má natureza, herdada de Adão, que se deixou tentar pela Árvore do Saber, que, antes, tentara a mulher.

A expressão "É de pequenino que se torce o pepino", ainda corrente, é explicada por Comenius de modo comparativo:

"Na verdade, uma árvore, tal como cresce, alta ou baixa, com os ramos bem direitos ou tortos, assim permanece depois de adulta e não se deixa transformar. Os pedaços de madeira, curvados para fazer as rodas, endurecidos ali no seu posto, quebram de preferência a tornarem-se direitos, como a experiência o mostra de modo evidente. Acerca dos homens habituados a fazer o mal, Deus afirma o mesmo: "Acaso um etíope pode mudar a cor da sua pele e um leopardo as suas malhas? Acaso podeis fazer o bem, vós que não aprendestes senão a fazer o mal?" (Coménio, 1985, p.65).

Fica então apontada esta conclusão necessária: a reforma da Igreja e da sociedade, diz Comenius, deve começar pela educação das criancinhas; pois, se é necessário que se apliquem remédios às corruptelas do gênero humano, deve-se fazê-lo de modo especial por meio de uma educação sensata e prudente da juventude. Importa realizar esta educação como aquele que quer renovar um pomar, o qual tem necessariamente de plantar novas arvorezinhas e de as tratar com muito cuidado, para que cresçam belas e grandes.

Infância, meninos de peito, meninos acabados de desquitar, juventude, os mais jovens, criancinhas, crianças, arvorezinhas de Deus, jumentinhos de Jesus, nova idade, são todas palavras que Comenius utiliza para interpelar aquelas que não são os adultos, concedendo-lhes qualidades diferentes destes e mais elevadas, por considerar sua semelhança com Jesus e sua proximidade a Deus. Satanás prefere as criancinhas para tentar, por isto, foram-lhes dados os anjos da guarda; bem como seus pais foram escolhidos como os principais educadores, para que as ensinassem e corrigissem, em conformidade com a doutrina do Senhor.

Mas, diferentemente dos anjos, que velam e protegem as criancinhas, dia e noite, em todas as situações, os educadores parentais precisam ser afastados, porque não cumprem seu dever, já que pouco de bom lhes foi ensinado, assim como poucos são os mestres que conseguem transmitir coisas boas: "Todos estão corrompidos e tornaram-se abomináveis em todas as suas paixões" (Coménio, 1985, p.69). Só uma melhor maneira de conduzir a juventude, de que todos participem, poderá integrar "a salvação comum", ou então, em caso contrário, "aguardar o castigo de Deus". Caso queiramos

"Igrejas e Estados bem ordenados e florescentes e boas administrações, primeiro que tudo ordenemos as escolas e façamo-las florescer, a fim de que sejam verdadeiras e vivas oficinas de homens e viveiros eclesiásticos, políticos e econômicos. Assim facilmente atingiremos o nosso objetivo; doutro modo, nunca o atingiremos" (Coménio, 1985, p.71).

Para crianças doentes de uma humanidade doente, o melhor de todos os remédios é a "Escola", verdadeira e viva oficina de homens e viveiro eclesiástico, político e econômico. Remédios? São dados a quem está doente. Terão os jumentinhos atados de Comenius adoecido? Que mal os terá feito decair do pedestal em que Jesus e o pastor os haviam colocado?

 

3. DOENÇA E MORTE DAS PLANTAZINHAS DO PARAÍSO

Com a articulação feita, inscrevi as positividades da Bíblia e da Didactica Magna em uma mesma série regular de acontecimentos, no que se refere à produção discursiva do infantil. Série que demonstrou estar constituída pelos seguintes elementos comuns: 1. um lugar diferenciado dos adultos atribuído pelo discurso religioso e pelo discurso educacional que se escolariza; 2. uma forte potência de dominação dada a este lugar e à identidade infantil que o ocupa; 3. a necessidade de afastar os adultos parentais da educação das crianças e, em seu lugar, pôr aqueles que são aptos para educá-las; 4. a concepção de criança como ser humano inocente, puro, imaculado, em estado de graça, igual ao Menino Jesus, que o mundo se esforçará por degradar e manchar; 5. uma figura de criança não carente, nem desprivilegiada, nem indefesa, nem necessitada da tutela dos adultos, pois, além de ser modelo, Deus lhe deu até anjos da guarda para protegê-la.

O poder exercido nessa série histórica configurou uma forma de "poder espiritual"16 que não foi mais do que um modo particular de relações entre os indivíduos, no caso, entre os adultos culpados e as crianças inocentes. Seu traço distintivo teria sido o de que os modos de ação das crianças, por seu caráter exemplar, pudessem governar os modos das ações dos adultos, sujeitando-os não a este tipo de poder, mas à força espiritual que sobre esta relação de poder se exercia. Porém, como nunca foram encontradas relações de poder sem resistência, tanto a individuação infantil quanto as formas de subjetivaçâo dos adultos, implicadas por esse poder, não teriam sido jamais "perdoadas" por nossas sociedades: muitas "desforras" contra o ser infantil assim enunciado - não apenas diferente, mas hierarquicamente superior -, que, desde o poder espiritual, começava a ser positivado, seriam logo perpetradas, modificando esse modo de objetivação pelo qual o humano ocidental tornou-se um sujeito da infantilidade17.

Se, por um lado, a infância, tal como a conhecemos, parece ser uma produção histórica do poder disciplinar dos tempos modernos, por outro, tal como vem sendo possível descrever, o infantil pode ter emergido bem antes disto, com avatares diferenciados daqueles com os quais estamos familiarizados/as, e a partir de outras relações de poder. Ou seja, ao contrário da referida "dependência" das crianças em relação aos adultos18, aqui, no domínio do poder espiritual, são estes que dependem daquelas. O pêndulo da balança, ao menos até este momento, está em declarada vantagem para o lado das crianças.

A Bíblia e a Didactica Magna seriam, para a história propriamente dita -a história tout court -, dois "livros", duas "obras", pertencentes a duas épocas cronologicamente distintas, mas que cunham, no âmbito da análise enunciativa, um mesmo tipo de poder: o que adota como estratégia o assujeitamento dos adultos às criancinhas, com base no eixo de sua inocência em face do Pecado Original. Logo mostrarei de que modo o poder espiritual desloca seu descontínuo, ainda em Comenius, para o segundo eixo: o da possibilidade da culpa, e mesmo o da culpa efetiva. Eixo pelo qual tanto a concepção de infantil será modificada quanto o poder espiritual se transformará por efeitos das práticas educacionais, de maneira mais ou menos duradoura.

Se foi possível realizar uma comparação entre duas formações discursivas, resultando daí uma constância enunciativa - em relação à concepção e ao lugar espiritual da infância como superiores aos dos adultos, justamente por sua forma de participação na história da cristandade -, relações modificadas de poder e de saber foram constituídas no Seiscentos, as quais, poder-se-ia pensar, teriam fornecido a Comenius outras condições de possibilidade para escrever os fundamentos de sua Didactica. Importa problematizar essa força dominante das criancinhas, em quem os adultos deveriam mirar-se e a quem deveriam seguir no caminho para a vida eterna, para verificar em que medida as transformações do século de Comenius possibilitaram e favoreceram sua obra.

Caso continuássemos pensando na mesma operação de poder de um e outro discurso, por que então Comenius dedicaria tanto esforço para produzir seu "método universal de ensinar tudo a todos", e convocaria todos os cristãos e todos os Estados para que fundassem e mantivessem uma "rede universal de instrução de tempo inteiro", em que "as escolas existissem para as crianças desde o regaço materno até sua morte"? Se a criança fosse tão modelar e perfeita, de onde o pastor Comenius, todos os reformadores, os humanistas, os utopistas, os outros pastores, os moralistas, os legisladores, os revolucionários da burguesia, os educadores, tirariam qualquer necessidade de que ela fosse educada? Por que e para que educar um ser perfeito e modélico? Em que sentido importaria falar de remédios para um ser identitariamente completo? Em outras palavras: quais necessidades práticas dariam suporte para que, desde o século XVII, fosse constituída para o infantil a Escola universal e obrigatória?

Essas perguntas poderiam ser respondidas, apelando-se para algumas das vastas unidades que integram a assim chamada "História da Civilização Ocidental" e ali encontrando, no Quinhentos e no Seiscentos, elementos tais como a Reforma e a Contra-Reforma, a Revolução, o Renascimento, os quais "explicariam" a produção comeniana, por constituir seu pano de fundo, sua conjuntura econômica, social e política, seu contexto intelectual e religioso. Lembremos a expansão dos conteúdos humanistas por toda a Europa; a formação de novos conjuntos estatais e sociais, distintos das democracias comunais anteriores; as novas relações sociais e de trabalho, ocorrendo nas nascentes cidades, integradas por artesãos, camponeses e pobres em geral; a assunção das exigências humanistas aristocráticas e a mediação entre estas e as reivindicações ascético-populares para envolver, nas reformas religiosa e social, as classes subalternas; a reação contra essas tentativas de renovação, por parte do catolicismo e das cúpulas do papado e do império; a rejeição das relações de poder do mundo medieval; as influências de outras culturas dos novos continentes "descobertos"; o advento da burguesia moderna e as necessidades da nova organização do poder, do trabalho e da divisão social que isso acarretou.

Sob a influência dos movimentos populares heréticos e dos reformadores, passa a ser difundida a instrução não só para que cada um pudesse ler e interpretar pessoalmente a Bíblia, sem a mediação do clero, mas como elemento de disputa na luta contra a Igreja Católica, Apostólica, Romana. Diz-se que a instrução socialmente útil para as classes populares, inspirada pelos reformadores humanistas, foi uma das mais fortes estratégias sociais e políticas dessa disputa.

Já em seu manifesto da escola alemã, Carta aos regedores de todas as cidades da nação alemã para que estabeleçam e mantenham escolas cristãs, de 1524, Lutero atribui um valor laico e estatal à instrução, a ser propiciada aos meninos e meninas, aos homens e também às mulheres, que deveriam ser educados e educadas não somente para a continuação dos estudos, como também para o trabalho na emergente sociedade industrial, em que ciência e técnica predominarão: "Mesmo se não existisse nem alma nem inferno", escrevia ele, "deveríamos ter escolas para as coisas deste mundo" (Lutero, 1524, p.197). É uma nova escola esta que Lutero propõe - efetivada em experiências isoladas por alguns de seus colaboradores, tanto na Alemanha, quanto na Suíça -, para fazer frente à dominação de Roma, a suas escolas catedralícias de apostolado, à língua latina, às universidades, e também para engrossar as fileiras do luteranismo. Com os reformadores, a instrução deixaria de ser privilégio dos clérigos e passaria, de forma quase definitiva, a ser concebida como dever dos novos Estados administrativos.

Também os utopistas, como o primeiro, Thomas Morus, além de Tomás Campanella e Francis Bacon, dedicam à educação um não pequeno espaço, em suas obras. Na Cidade do sol, de Campanella - católico e inimigo dos reformadores -, os cidadãos criticam o ensino servil da gramática e da lógica aristotélica e, no lugar destas coisas mortas, ensinam as ciências, os costumes e as histórias pintadas nas paredes da cidade, para que as crianças as aprendam, brincando.

Bacon positiva a utopia da Casa de Salomão, dedicada a experiências e inovações, à observação das obras e das riquezas humanas, referenciado nos conhecimentos científicos que a Bíblia atribui a este rei. Os habitantes de sua Nova Atlântida instruem os viajantes europeus, descrevendo-lhes as artes mecânicas, os laboratórios científicos, as máquinas e os engenhos para qualquer tipo de movimento ou impulso, os institutos de matemática e o Instituto dos Monstros e dos Prodígios (Manacorda, 1989, p.219).

Será dito que, junto com Giordano Bruno, Campanella e Bacon integrarão o quadro de referência constante para os educadores inovadores do Seiscentos - considerado "o século das utopias especificamente pedagógicas" -, alicerçado na chamada "Nova Ciência", nas lutas religiosas, nas relações estabelecidas pelo capitalismo dos armadores, dos banqueiros e dos mercadores.

Poder-se-ia então indicar como dadas todas essas condições necessárias para que Comenius elaborasse seu projeto cultural e escolar, contra-hegemônico à educação realizada na época, desenvolvendo o modelo de escola que ele chama Oficinas de Humanidade, as quais contribuiriam, "em verdade, para que os homens se tornem verdadeiramente homens, isto é: I. Criatura racional; II. Criatura senhora das outras criaturas (e também de si mesma); III. Criatura delícia do seu Criador. O que acontecerá se as escolas se esforçarem por produzir homens sábios na mente, prudentes nas ações e piedosos no coração" (Coménio, 1985, p.146).

Mas, se tais condições são certamente importantes, não são suficientes para a análise deste ensaio, já que a problematização por ele trabalhada não se contenta em afirmar que, instituída uma nova configuração estrutural, então o saber e o poder de educar também mudarão, por instituir um outro saber e um outro poder sobre a infância. Devido a essas insuficiências, ficaremos um pouco mais no texto comeniano, tratando-o em sua materialidade repetível de acontecimento e na pergunta intrigante que esta implica, qual seja: firmemente fundado na inocência e na superioridade do infantil, deslocadas dos evangelistas, de qual categoria enunciativa Comenius retira a necessidade premente de educar todas as crianças, pelo tempo inteiro de suas vidas, desde o regaço materno até que morram?

A resposta é simples: podemos encontrar, em primeiro lugar, a constatação de que a natureza humana é boa e completa; porém, após a queda, o mundo a transforma em natureza de corrupção, advinda da "doença hereditária, descida até nós a partir das duas primeiras criaturas". É preciso educar os humanos infantis, porque embora sejam, como todos, essencialmente bons, o mundo é mau, e os tenta com seus perversos exemplos e corrupção crescente. As crianças devem ser educadas porque, estando no mundo, ficam sujeitas a suas tentações - aos pecados carnais, ao ócio, aos delitos de sangue, à cobiça, aos maus atos, desejos e pensamentos, à infidelidade a Deus, etc. -e, para que isto não ocorra, e, em não ocorrendo, para que se tornem em tudo, e cada vez mais, e sempre, semelhantes a Cristo, realizando na plenitude sua humanidade. É preciso educá-las para que sejam "verdadeiros homens", isto é, "criaturas racionais": "Em primeiro lugar, todos aqueles que nasceram homens, nasceram para o mesmo fim principal, para serem homens, ou seja, criatura racional, senhora das outras criaturas, imagem verdadeira do seu Criador" (Coménio, 1985, p.139).

Pouco a pouco, em seu texto - e de um modo que se torna definitivo -, Comenius introduz a imperfeição também das "plantazinhas do Paraíso", e a conseqüente necessidade de sua educação, com argumentos que desmantelam o eixo da inocência e da pureza infantis, e que apontam para o segundo eixo: o da participação das crianças na culpa humana, tendo, portanto, possibilidade de serem também culpadas, condição que logo atingirão, caso não sejam educadas. Embora não tenham participado do Pecado, a ele as crianças estão indiretamente ligadas, já que são seus rebentos, e ao mundo estão diretamente ligadas, pois que vivem nele. Se não foram, primordialmente, culpadas, poderão vir a sê-lo, integrando, como de fato integram, a humanidade pecadora. Uma das passagens mais expressivas desta posição é a citação que Comenius seleciona de Cícero:

"Nas nossas faculdades espirituais estão inatos os germes da virtude, os quais, se pudessem desenvolver-se e crescer, seriam suficientes, por natureza, para nos conduzir à beatitude (isto é exagerado!). Porém, apenas somos dados à luz e começamos a ser educados, rebolamo-nos continuamente em toda espécie de imundícies, de tal maneira que parece que, juntamente com o leite da ama, bebemos os erros" (Coménio, 1985, p.110).

Pronto! A criança que, no discurso da Bíblia, ainda não tinha vida, mas estava imersa em relações do poder espiritual, por efeitos da homogeneidade enunciativa da culpa - obtida pela descrição deliberada do cruzamento do discurso educacional que se escolarizava com o discurso bíblico -, decai de sua posição de modelo dos adultos. Então, não mais os sujeitando, fica igualada a eles como pecadora, e terá necessidade de ser purificada, de ter sua natureza sanada e redimida, de ser reconduzida para a fonte de onde derivou, isto é, à imagem e à semelhança de Jesus Cristo. Somente as escolas, afirma Comenius, possibilitam que ela desenvolva os três graus de preparação para a eternidade, quais sejam: "Conhecer-se a si mesma (e consigo todas as coisas), governar-se e dirigir-se para Deus" (Coménio, 1985, p.95). Tendo esses graus desenvolvidos, as plantazinhas "aprenderão a ver Deus por toda parte, a louvá-lo por toda parte, a aproximar-se dele por toda parte"; e, deste modo, "aprenderão a passar com maior alegria esta vida de misérias e a esperar, com maior desejo e maior esperança, a Vida Eterna" (Coménio, 1985, p.143).

O que vemos acontecer, neste deslocamento, nada mais é do que duas cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito infantil em outra posição e função culturais: 1. de um estado e de uma condição superior e exemplar, as crianças são igualadas aos adultos como pecadoras; 2. no mesmo passe, por sua condição de "mais aptas a aprender", de "mais bem educáveis", são lançadas em um estado de carência culposa, necessitadas de educação, mais do que o restante da humanidade. A partir de agora, para que cada indivíduo e toda a espécie humana seja, aja e viva melhor, dirigindo-se para a beatitude da Vida Eterna, as crianças devem ser educadas. Pode ser que, para elas, tenha acabado de ser atribuída uma tarefa bem mais pesada de remissão da dívida e da culpa humanas, sob a forma de pagamento por aquela posição de dominância espiritual sobre os adultos, advinda do poder espiritual.

Comenius achava difícil voltar a educar aquele homem que estava corrompido: "No homem, as primeiras impressões estampam-se de tal maneira, que é um autêntico milagre fazê-las tomar nova forma" (Coménio, 1985, p.131). Por serem as crianças as "plantazinhas de Deus", Comenius diz que, dos anos de infância e da educação depende todo o resto da vida: "Se os espíritos de todos não forem preparados desde então para todas as coisas de toda a vida, está tudo perdido" (Coménio, 1985, p.152).

Recorrendo às analogias - com ceras, árvores, madeira, plantas, lã, vaso de barro, arcos de roda, etc. -, o título do Capítulo VII aponta para a facilidade e a conveniência exclusiva de formar o homem na infância: "A formação do homem faz-se com muita facilidade na primeira idade, e não se pode fazer senão nessa idade" (Coménio, 1985, p.127). Por esta condição única de ser um infantil educável, Deus concedeu aos homens "a graça de retardar o nosso desenvolvimento", para que fosse mais longo o espaço de tempo para nos "dedicarmos aos estudos", tornando-nos, durante tanto tempo, "inábeis para os negócios econômicos e políticos". Isto para que, durante o tempo restante de nossas vidas, "e também na eternidade", nos fizéssemos mais hábeis nesses assuntos (Coménio, 1985, p.131).

Incorporando, como homem de seu tempo, algumas das qualidades requeridas pelos Estados nacionais, Comenius estabelece aqui uma das principais naturalizações do tempo de infância, ao afirmar que este é formado pelos melhores anos para educar - "como mostra a natureza" -, já que neles, sendo "a criança inábil para outras coisas", apenas é apta para ser formada. Instituía-se a designação da infância para a escolarização e convocavam-se todos os governantes, pastores, educadores, para a missão da educação universal e liberal, que não mais se extinguira.

Comenius exige providências que, já no século XVII, apresentam um caráter de urgência:

"Portanto, na medida em que a cada um interessa a salvação dos seus próprios filhos, e àqueles que presidem às coisas humanas, no governo político e eclesiástico, interessa a salvação do gênero humano, apressem-se a providenciar para que, desde cedo, as plantazinhas do céu comecem a ser plantadas, podadas e regadas, e a ser prudentemente formadas, para alcançarem eficazes progressos nos estudos, nos costumes e na piedade" (Coménio, 1985, p.132).

Por efeitos dessa conclamação, Comenius joga uma pá de terra sobre a criança ocidental primogênita - dominadora, inocente e exemplar -, "filha legítima" de mãe e pai religiosos. A segunda cria - dependente, culpada e carente -, que desta morte advirá, será sempre uma "filha bastarda"19 no sentido de que, para concebê-la, o saber educacional moderno toma o infantil do discurso cristão para combiná-lo com disposições científicas, políticas, econômicas. Passará um longo tempo antes que esta criança se transmude numa outra por efeitos de novas tecnologias e estratégias de poder, saber, verdade. É justamente aí, nessa encruzilhada da história, que a criança moderna, ao perder a supremacia modelar e especular, vê começar, de modo correlato, a produção de sua vida, da qual compartilhamos.

 

4. DUAS HORAS: CARNE CULPADA E CORPO CAÇADO

Como é que essa vida se gera? Podemos pensar que a Bíblia e a Didactica Magnanão são dois discursos de dois mundos, mas dois momentos de uma mesma formação discursiva de um mesmo mundo, sua meia-noite e seu meio-dia: a hora em que os dados são lançados e a hora em que caem os dados20. Mas como é possível que a escritura deste ensaio afirme que o século dos evangelistas e o de Comenius constituam dois momentos de um mesmo discurso de um mesmo mundo? - perguntará, de modo sarcástico, a "história propriamente dita".

Justifico esta posição, a partir da perspectiva adotada por esta escritura e de seus esforços para encontrar, no campo da cultura e da educação ocidentais, não estruturas atemporais acerca da infância, mas algumas das condições enunciativas que produziram a qualidade, o modo, o estado, a propriedade de "ser infantil": em uma palavra, que produziram a "infantilidade", esta de nosso presente. Por afirmar que a aproximação descrita não teve a função de esclarecer nenhuma continuidade cultural, nem de isolar o momento originário em que o enunciado "infantil" nasceu, nem sequer descrever algum mecanismo que tenha sido a causa de seu aparecimento. E sim, apenas, por ter liberado o jogo de verdade, em que esse enunciado integrou o conjunto interdiscursivo intencionalmente delimitado. Por ter atribuído ao discurso religioso cristão e ao educacional escolar a relativa autonomia das práticas não-discursivas que a eles pertence, submetidos como estavam às regras do jogo anônimo, as quais se impuseram, segundo uma espécie de anonimato uniforme, a todos os indivíduos que falaram no interior de tal conjunto. Por tratar seus discursos como práticas, que formaram sistematicamente aquele objeto "infantil" do qual falaram. Por haver operado nos espaços de rarefaçào dessas formações discursivas, em que o conjunto dos atos e discursos das "duas épocas" ocupou pequenas regiões descontínuas; enquanto as mutações intrínsecas pertinentes eram integradas a estas práticas discursivas, sem que fosse alterada a forma geral da regularidade por elas fornecida ao enunciado "infantil". Também por ter desalojado algumas regras locais de transformação interdiscursiva que definiram a existência e a identidade deste enunciado; para o qual somente a descrição do uso que dele se faz e da maneira pela qual é manipulado poderá multiplicar suas rupturas, permutas e transformações; bem como definir se o que temos aqui e acolá é, exatamente, o mesmo enunciado.

Joguemos os dados que tomamos emprestado de Nietzsche. Hora em que os dados são lançados: a hora do cristianismo que inventa a má consciência, isto é, a culpa e a responsabilidade. Em função de sua própria existência, enquanto integrante da espécie humana, o infantil foi culpabilizado; por sua vida, gerada no turbilhão irracional das tentações da carne de um mundo em pecado, ele foi responsabilizado21. Para o infantil, articulado pelo dispositivo de infantilidade, a invenção cristã reserva um papel central de sofrimento, já que ele é o que nasce da equação pecadodor-castigo, ou da equação mulher-pecado-criança, o que dá no mesmo. Sua vida é o testemunho e a prova irrefutável da queda: vida que precisa ser justificada, pelo sofrimento, para ser redimida e, só assim, ser possível de reconciliação com a perfeição. Do infantil, o cristianismo fez um ser faltoso e culpado, alguém que deve sofrer e expiar simplesmente por existir.

Essa primeira hora é a que, definitivamente, invalida, impossibilita e elimina o eixo da inocência soberana do que é infantil e põe, em seu lugar, o exercício recorrente das relações do poder adulto com uma infância faltosa e carente. Então é hora de fazer de sua vida, de seu corpo e da sua alma, fenômenos morais e políticos, por lhes imputar os mesmos erros, por recriminá-los amargamente, por acusá-los sem cessar. Essa "culpa do infantil" passa a integrar a epistemologia ocidental que pensará cientificamente a criança, pensando-a sempre no registro moral; o elemento genealógico privilegiado das práticas educacionais; o princípio, a um só tempo transcendental e muito concreto, de nossa desmedida "vontade de infância", a ser fortalecida e solidificada pelo dispositivo de escolarização. Essa é a hora que permite afirmar: - É por tua culpa que decaímos - diz-se à criança. - Deves interiorizar toda nossa dor, até que chegues a dizer: - Sim, é por minha culpa.

Segunda hora, a da caída dos dados: aquela em que os séculos que se iluminam com as Luzes Humanas configuram o Sonho da Razão e os campos da Cultura, da Família, da Escola, produzindo a nova vida da criança, após sua morte-em-vida. Hora em que o humano busca afastar o divino e o espiritual e inicia sua caça à infância tomada em situação de menoridade racional e moral, da qual ela própria é culpada. Hora de atribuir a esse ser "de menor" a incapacidade de fazer uso de seu próprio entendimento e de fixar sua necessidade inelutável de ser dirigido pelos indivíduos adultos22. Hoje, temos trezentos anos mais do que naquela época e ainda jogamos com os mesmos dados?

Se interrogarmos cada uma dessas horas não do lado de seu sentido, mas do lado de sua função, não negaremos as mutações na base enunciativa daqueles que adquirem o direito de proferir o enunciado "infantil", dos espaços institucionais de onde este enunciado emana, e das posições que os sujeitos desta enunciação ocupam. Se interrogarmos cada uma dessas horas do lado de sua função, reporemos os dois momentos desse discurso em seu elemento genealógico que são as relações de poder. Assim, não diremos que um dos dois discursos é mais verdadeiro do que o outro, nem que eles dizem a mesma coisa acerca do infantil, ou que eles adotam a mesma perspectiva, tampouco que falam do mesmo ponto de vista. Não diremos isso, porque, do ponto de vista da produção da infantilidade, as relações desses dois momentos do discurso com o poder são diferentes.

O que diremos é que o primeiro momento, da Bíblia, enfatiza o nível estratégico de poder para a produção do infantil: toma o poder espiritual desencarnado da infância sobre os adultos e, quase no mesmo movimento, passa a reorganizar e fundamentar o poder corporal sobre a infância; o segundo, de Comenius, opera em um nível tático, porque fala com propriedade do poder corpóreo que se exercerá sobre a criança, falando dele para melhor o exercer. Ambos encontram seu ponto máximo de inflexão na educação escolar.

No âmbito da sociedade humanista, afirma-se que, para Sócrates e Platão, o fim da educação devia ser a formação do homem moral; também para Aristóteles, a finalidade da educação era o bem moral: tanto para uns quanto para o outro a via para atingir tais fins era a mesma, ou seja, o Estado, e à educação se reconhecia um valor decisivo na vida social e individual. Em muitos dos textos de História da Pedagogia e da Educação, essas três linhas - Estado, educação, formação moral - foram apresentadas como invariantes: mudam as práticas educacionais, as experiências e as teorias pedagógicas, os métodos e as técnicas de ensino, as categorias epistemológicas e as formas de governo com os quais os diferentes séculos pensaram e praticaram estas linhas, mas elas se manteriam.

Para continuar um exercício analítico desse tipo, alguém pode propor a substituição de "Estado" por outras instituições sociais, tais como a "Família" ou a "Comunidade" (na educação cristã primitiva); ou pela "Igreja" (materializada nos mosteiros, escolas catedralícias, paroquiais ou universidades, da educação medieval); ou por "Estado-Cidade" e pelas "Cortes" (no século XV); mesmo pelos "Sistemas Nacionais de Educação" (desde a educação religiosa reformada do século XVI e XVII até hoje). Desse modo, encontraria o discurso sobre a finalidade da educação sempre como uma certa tática moral, mesmo que este "moral" tenha sido qualificado como religioso, político, ético, jurídico, divino, virtuoso, ascético, autônomo, afetivo, guerreiro, heróico, existencial, livre, interessado, útil, ideológico, democrático, cidadão, etc. A educação seria necessária para a sociedade e implicaria preparar a infância de modo que esta fosse moralmente adequada ao Estado, à Família, à Comunidade, à Igreja, que desta ou doutra forma a exigia.

Teria esse alguém achado um triângulo: o apontamento da finalidade moral e a necessidade de educação; um menor humano a ser instruído, formado, guiado, preparado, treinado, atualizado, desenvolvido, etc.; e instituições sociais que se organizam para assim proceder, às quais é delegada esta responsabilidade. Se isso fizesse algum sentido, outro alguém poderia formular a questão do seguinte modo: onde estão as descontinuidades no que se refere à educação do infantil? Por que não operar numa historiografia de sucessão linear, cuja significação de conjunto teria sido formada desde a educação greco-romana até hoje, já que as intenções e os meios da educação da infância permanecem os mesmos? Por que afirmar que a qualidade do infantil como um ser educável é produção da Moder- nidade? Justamente porque, dirá o tipo de problematizaçâo que ocupa esta escritura, antes dos tempos modernos, não existia um corpo infantil, sobre o qual o poder disciplinar, que é o que constitui a educação escolar, pudesse se exercer em seus níveis estratégico e tático; assim como este corpo não atendia a uma categoria política chamada Estado, na acepção atribuída a tal categoria pelas Luzes.

Nos espaços e tempos históricos que existem entre a Bíblia e Comenius, o que há é uma individualidade de "criança incorpórea", embora seja carne, e carne culpada, sofrida, atormentada. Por isto, esta carne era, ora surrada e submetida, ora declarada livre de toda coação exterior, soberana, exemplar. Mas era uma carne genérica e vaga, metafísica até, cuja necessidade de moralização será também geral. Uma carne que começara a ser guiada nas instruções catequistas e continuada pelo exame e direção de consciência, instrumentos apropriados pelo cristianismo do mundo greco-romano e depois dispersos em outro tipo de práticas.

O humanismo da Renascença começará a pedir clemência para essa carne mortificada, exigindo a diminuição do látego e a supressão de seu aniquilamento, para poder construir o corpo infantil. Fará isso menos por força de seu sentimento humanitário e muito mais porque este corpo era necessário para as novas relações comerciais, para a riqueza econômica, para o novo sistema de crédito, para as possibilidades culturais e artísticas, para a urbanidade, a civilidade, as boas maneiras, a governa mental idade que se anuncia. Parece que tal corpo necessário, inicialmente, foi o das minorias. Nas cortes e nas cidades, retirada a divindade, "o homem" foi posto no centro. Ora, só a "um homem" - grande ou pequeno - se atribui um corpo. Mas era

"o homem" de um certo segmento social, era o "homem padrão", como costumávamos pensar. Depois, bem depois, isso foi estendido, multiplicado, redistribuído.

Antes desse tempo, como vimos na Bíblia, existia apenas o filho: Jesus feito Menino, filho, portanto. A formação cristã tratou da criança-filho, não contemplou "a criança": filho não é corpo, é pedaço de carne de seu pai (e de sua mãe); filho é homem (e mulher) que ainda não cresceu, não se desenvolveu; filho é para realizar o que o homem (e a mulher) não pôde fazer; filho é o que é o homem (e a mulher), só que em versão ainda pequena: a criança religiosa da cultura ocidental é o filho (a filha). "A criança", apartada de alguma maneira do filho e da filha, somente será criada pelo humanismo, seguida da produção do "aluno" e da "aluna", apenas criados pelo poder que disciplina, por educar e escolarizar.

Isso tudo acontece quando a educação torna-se política, quando passa a ser um dos ramos da política e do bom governo do Estado, como afirma Carlos III, no século XVIII:

"A educação da juventude pelos mestres das primeiras letras é um dos ramos da política e do bom governo do Estado, e mesmo o principal deles, pois da melhor instrução da infância poderá experimentar a Causa pública o maior benefício, capacitando-se os homens daquela idade não só para fazer progressos nas Ciências e nas Artes, como para melhorar os costumes" (Carlos III citado por Luzurianga, 1977, p.158).

Aí então se precisará fabricar mais do que "homens", como queria produzir Comenius em suas "Verdadeiras e Vivas Oficinas de Homens": em nossos modernos "Viveiros Eclesiásticos, Políticos e Econômicos", precisar-se-á também de crianças e de seus corpos. Para fazê-los, é preciso conhecê-los, em suas mais ínfimas particularidades e idiossincrasias, para os classificar, dentro da massificação populacional. Somente as ciências - aquelas denominadas "do homem" - sistematizarão os saberes e os poderes necessários para normalizar esse novo "infantil". A partir delas, nunca mais as palavras e as coisas de infância serão enunciadas apenas pelo poder espiritual, consubstanciado em "Jesus e as crianças", mas disciplinadas e dispostas como peças na complexa construção estratégica de dominação moderna: para aquém e muito além dos eixos enunciativos da inocência e da culpa.

 

5. A VONTADE DE VIVER

As modernas tecnologias do poder-saber educacional, já arquitetadas por Comenius - a serem modificadas, distinguidas e totalizadas nos séculos ulteriores -, organizar-se-ão primeiramente sob a forma de "arte", isto é, uma técnica em conformidade com certas regras. Arte de governar que - do modo como Foucault descreve o poder pastoral exercido pelo Estado da cultura antiga - adota por modelo a Deus quando impõe suas leis sobre suas criaturas, do mesmo modo que o Rei imita o governo da natureza por Deus, ou o governo do corpo pela alma.

Mas, assim como para os Estados modernos, nem o poder do Rei nem o de Deus fornecerão os mecanismos suficientes para governar os novos corpos infantis. A partir do momento em que eles passam a ser concebidos como parcela de uma população - constituindo algo parecido com uma "população infantil" -, para governá-los será preciso um outro tipo de poder: o poder moderno surgido em relação com uma questão de governo. Tal poder, para se exercer, precisará de outra racionalidade - não aquela da obediência inquestionável à palavra divina, nem mesmo a de uma violência soberana que proteja a sociedade -, que será fornecida pela razão de Estado, servindo apenas para reforçar o próprio Estado. Estado que, no século XVIII, de modo definitivo, integrará numa nova forma política a antiga tecnologia de poder pastoral, originada nas instituições cristãs, e a ampliará por todo o corpo social, encontrando apoio não mais em uma instituição religiosa, mas numa multiplicidade institucional, da qual fará derivar sua tática individualizante, a um só tempo pastoral e política.

A educação escolar, mais do que ser tributária da racionalidade desse Estado, nasce dela e só nela encontra suas justificativas. Por isso, Comenius, embora inicie a Didactica Magna pelo pensamento cristão sobre as crianças, põe-se na diagonal da imagem pastoral da infância, no preciso momento em que convoca todos os homens de Estado para organizar as escolas. E, assim fazendo, mais do que preparar o caminho para a felicidade celeste e para a vida eterna, constrói sua arte de ensinar para reforçar a produtividade de um Estado que os séculos XVI e XVII estavam criando. A criança-aluna - não mais somente filho e filha, não mais apenas criança - e sua educação só podem ser pensáveis pela razão de Estado, que é a que fornecerá os domínios, técnicas e estratégias para educá-la.

Para Comenius - e para as "pastoras" e os "pastores" que o seguirão -, sua alegada "arte universal de ensinar tudo a todos" não é nenhuma virtude de taumaturgo, nem uma arte de educar segundo leis divinas ou da natureza -embora a Didactica Magna tenha, em cada página, muitas referências a elas -, e sim uma nova arte, cada vez mais racional e mais política, que entra em consonância com a potência de um Estado cuja meta é aumentar esta mesma potência, tanto em intenção quanto em extensão.

Outro não é o papel do poder de polícia, entendido por Foucault como uma técnica de governo própria dos Estados modernos, já encontrada, por exemplo, em Turquet de Mayenne, quando este apresenta seu projeto aos Estados Gerais da Holanda, em 1611. Secundando o rei, o utopista visualiza quatro grandes dignitários: um encarregado da Justiça, outro do Exército, o terceiro da Fazenda e o último da Polícia, cuja função era essencialmente moralizadora, e cuja administração abarcava todas as outras.

Ora, como já vimos, no texto de Comenius, diferentemente do texto bíblico, as "arvorezinhas do Céu", no fim das contas, deviam ser podadas e transplantadas aqui na Terra mesmo, e não para qualquer finalidade que não fosse essencialmente moral23 para que se tornassem criaturas racionais. Ou seja, é do poder de polícia que a Didactica Magna trata: um poder que estende suas atividades a todas as situações, a tudo o que é realizado pelos humanos e que vigia o humano, enquanto ser ativo, vivo e produtivo.

Tal intervenção moral-racional, no domínio da educação escolar, exerce seu poder político sobre as crianças, proporcionando-lhes um pouco mais de vida, e, ao fazê-lo, proporciona também ao Estado, um pouco mais de força. O objetivo específico da polícia define-se como a vida em sociedade de indivíduos vivos; por isto, a polícia vela sobre o que está vivo: "A vida é o objeto da polícia: o indispensável, o útil e o supérfluo". É sua missão garantir que o humano sobreviva, viva e mesmo faça algo mais do que viver.

Calcada na racionalidade do Estado moderno, a forma de educação comeniana cria regras de poder que, por sua vez, criam o tipo de razão dominante da educação escolar. Essas regras corporificam-se em uma máquina física universal, embora subordinada à concepção religiosa e humanitária - idéias de Deus e de Natureza -, a qual, para funcionar, pressupõe a constituição de um certo tipo de saber, correlato à da razão de Estado: um saber concreto, preciso e ajustado à potência do Estado.

Se a Estatística foi o domínio em que o saber de Estado desenvolveu-se, a Pedagogia será o domínio em que a arte de governar as crianças e suas vidas se produzirá. A Pedagogia consubstanciará a educação escolar, sendo, ao mesmo tempo, uma arte de governar e um método para analisar tanto as populações quanto cada indivíduo pedagogizado, porque sua racionalidade foi, desde o princípio, individualizante e totalitária, como pode ser constatado na Didactica - magna enunciação do poder de polícia pedagógica.

A partir de então, os discursos sobre a vida de cada infantil e sobre a população infantil - seu bem-estar e felicidade - entram em um espaço de fermentação no próprio campo do exercício do poder de polícia pedagógica: incitação institucional a falar da infância e a falar cada vez mais, tendo em vista a arte de torná-la governável - isto é, capaz de levar uma vida útil, dócil e prática - para, entre outras necessidades estratégicas, aumentar as forças do nascente Estado capitalista.

Nas súplicas que Comenius dirige aos governantes, ao final do livro, o poder de polícia de seu programa moralizador faz-se visível:

"Peço-vos, por Cristo, suplico-vos, pela salvação de nossos filhos, escutai-me! A coisa é séria, muito séria, pois diz respeito à glória de Deus e à salvação dos povos. Estou convencido de vossa devoção, ó pais da Pátria, e, se viesse alguém prometer-vos conselhos sobre o modo de fortificar, com pequena despesa, todas as nossas cidades, sobre o modo de instruir toda a juventude na arte militar, de tornar navegáveis todos os nossos rios e de os encher de mercadorias e de riquezas, ou sobre o modo de conduzir o Estado e os particulares a uma maior prosperidade e segurança, os vossos ouvidos, não somente ouviriam esse conselheiro, mas até lhes ficariam gratos por se ter mostrado tão devotamente solícito do vosso bem-estar e do dos vossos concidadãos. Ora, no nosso caso, trata-se de algo muito mais importante, pois mostra-se o caminho verdadeiro, certo e seguro de conseguir, com abundância, homens tais que, para negócios deste gênero ou outros semelhantes, servirão a Pátria sem fim, uns após outros. Se, portanto, Lutero, de santa memória, exortando as cidades da Alemanha a erigir escolas, escreveu com razão: "Quando, para edificar cidades, fortalezas, monumentos e arsenais, gasta-se uma só moeda de ouro, devem gastar-se cem para educar bem um só jovem, para que este, quando homem feito, possa guiar os outros pelo caminho da honestidade. Efetivamente, o homem bom e sábio (acrescenta Lutero) é o mais precioso tesouro de todo o Estado [...]" (Coménio, 1985, pp.474-6).

Será, entre outros, Rousseau quem, no Oitocentos, falará até a exaustão dessa arte de governo das crianças, associando o infantil, após uma longa gestação, ao primitivismo, ao irracionalismo e ao pré-logismo. Da infância assim significada só poderá falar porque as Luzes estarão enterrando um antigo regime social, político, econômico, cultural, e também um antigo modo de relações entre crianças e adultos. Estes não são mais os mesmos, desde que começaram a ser vistos e enunciados a partir da atitude de Modernidade, qual seja, a concepção do humano como sujeito individual, autônomo, racional; aquelas também não são mais as crianças que eram, pois estarão tomadas, a partir de agora, em referência a tal sujeito: aqui é que começa a produção de sua vida como o "outro" do adulto, posta sob a égide da menoridade, dependência, carência, inferioridade, necessidade de suplência; pois, se não são ainda moralmente autônomas e racionais, deverão vir a ser por esforços da escolarização.

Finalmente, terá emergido o corpo infantil que só apareceu porque decaído. A educação escolar fará sua parte, enquanto tecnologia de governo que, se parecia fazer entrar a alma moral da criança no palco da história, não é menos do que uma das transformações históricas nos modos como esse corpo vem sendo investido pelas relações de poder-saber que estabelecemos com o infantil.

Relações que, desde duas tramas históricas distintas, em dois campos homogêneos, o da Bíblia e o da Didactica Magna, aconteceram em um espaço, segundo uma lei e como efeito de raridade, pelos quais não houve reduplicação, nem texto embaixo da superfície. Ao contrário, deram-se pela descrição explícita de uma infância tornada um "caso de polícia", por efeitos da qual poucas coisas puderam - e podem - ser ditas acerca do infantil, a não ser as seguintes regularidades enunciativas: 1. o infantil existe; 2. é específico; 3. é inocente; 4. integra a humanidade; 5. é culpado: pecou, é irracional, é imoral; 6. deve ser educado - racionalizado, moralizado, salvo.

O infantil foi subjetivado, na história da infantilidade, pelo conjunto daquilo que foi dito no grupo de todos os enunciados e daquilo que foi exercido por todas as práticas não-discursivas que o nomearam, recortaram, descreveram, explicaram, contaram seu desenvolvimento, indicaram suas diversas correlações, julgaram-no e eventualmente lhe emprestaram a palavra, articulando, em seu nome, discursos que deviam fazer passar por seus; além de conformar, sem conjurar, todas as vicissitudes que lhe tocou viver.

 

6. E OS PEQUENINOS, SENHOR?

A partir das palavras de Jesus, no Evangelho de São Marcos, e as iniciais de Comenius, na Didactica Magna, realizei uma análise interdiscursiva, de inspiração arqueológica, ao modo de Foucault, para responder à questão "E os pequeninos, Senhor?" Inscrevi as positividades da Bíblia e da Didacticana mesma série histórica, por haver encontrado um intrigante isomorfismo: a constância enunciativa do infantil, girando sobre dois eixos, o de sua inocência e o da culpa efetiva.

Para esse tipo de análise, o infantil não emergiu carente, mas dotado de elevado estatuto modelar sobre os adultos, exercido pelo poder que chamei "espiritual". Entretanto, por sua participação indireta na culpa humana, como "frutos" do pecado original da Carne, as "plantazinhas do Céu" decaem de seu lugar de mestria. Igualadas então, como pecadoras, terão necessidade de salvação; terão necessidade da Educação que opera a morte de uma identidade e a ressurreição em outra vida. Para crianças doentes, da humanidade doente, o melhor de todos os remédios é a Escola: "oficina de homens e viveiro eclesiástico, político e econômico".

É assim que se constituiu o jogo de poder-verdade-subjetividade de nossa Pastoral Educativa:consubstanciado nas antividas e nos além-mundos, na purificação moral e na redenção racional do infantil; operado pela renúncia a si e à realidade; e sancionado pelo Juízo-Exame Final. Aconteceu tudo isso com a mais pura escatologia messiânica ao fundo, no sistema de uma Santa Aliança, para realizar o advento da Terra Prometida: a do Sujeito-Verdadeiro, função-lugar de linguagem que, no quadro da finitude moderna, não por acaso se autorizara a tomar o lugar de Deus.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 02/99

 

 

NOTAS

1 Em forma de poesia, como em Jesus e as crianças, de Gomes Leal (1848-1921): "Repele alguém do Mestre, brutalmente,/ Os louros querubins de rostos finos./ Mas o sábio Rabi lhes diz, clemente:/ 'Deixai virem a mim os pequeninos.// Deixai-os vir a mim. Sou o ceifeiro/ Que nada perde, e os mundos vem ceifar./ Feliz de quem como estes é rasteiro./ Ai daquele, cruel, que os molestar"' (Leal, 1954, p.197). Ou sob a forma de sermão, tal como na Epifania de São Leão Magno, papa de 440 a 461: "Cristo ama a infância, pela qual ele começou, tanto na alma quanto no corpo. Cristo ama a infância, mestra de humildade, regra de inocência, modelo de doçura. Ele faz anciãos a ela voltarem. Fornece-a como exemplo a todos quantos eleva para o Reino dos Céus. Mas não sejais crianças no que diz respeito ao Juízo, tomai-vos criancinhas no que diz respeito à malícia" (Leão Magno citado por Zind, 1987, p.37).
2 Este Marcos provavelmente era um judeu-cristão que gozava de muita autoridade na comunidade: alguém que emigrou da Palestina para Roma, passando para a missão gentio-cristã. Em geral, é identificado com João Marcos, em cuja casa Pedro refugiou-se (Bíblia, 1982, p. 1212).
3 A palavra Bíblia vem do grego e significa "lista - ou cânon - de livros sagrados" (Bíblia, 1982, p.13). Foi escrita em três línguas diferentes: hebraico, ara-maico e grego - "no tempo de Jesus, o povo da Palestina falava o aramaico em casa, usava o hebraico na leitura da Bíblia, e o grego no comércio e na política" (ib., p.14). A Bíblia dos católicos é composta por 73 livros, reunidos na tradução grega do Antigo Testamento - o Septuaginta ou Setenta -, feita no Egito no século III a.C, para os judeus imigrantes; e divulgada pelos apóstolos, quando saíram da Palestina para pregar o Evangelho aos outros povos; os protestantes ficaram com a lista mais curta e mais antiga da Bíblia hebraica. A Bíblia é considerada um dos livros mais lidos de toda a história da humanidade-. "Só neste nosso século, mais de 1 bilhão e 500 milhões de exemplares da Bíblia já foram impressos e divulgados no mundo inteiro, traduzidos para mais de mil línguas diferentes" (ib., p.ll). Estes livros não foram escritos de uma só vez: "Levou muito tempo, mais de mil anos. Começou em torno do ano 1250 a.C, e o ponto final só foi colocado cem anos depois do nascimento de Jesus". Aliás, é muito difícil saber quando foi que se começou a escrever a Bíblia, pois, antes de ser escrita, a Bíblia foi narrada e contada nas rodas de conversa e nas celebrações do povo: "Antes de ser narrada e contada, ela foi vivida por muitas gerações num esforço teimoso e fiel de colocar Deus na vida e de organizar a vida de acordo com a justiça".
4 Para as questões "de método" deste trabalho - que não são imperativos metodológicos, mas "prescrições de prudência" -, ver as seguintes produções de Foucault: 1968; 1972; 1981; 1990a, b; 1991a, b, c; 1995.
5 Bem como disse Nietzsche: "No pecado original, a curiosidade, as falsas aparências, o arrebatamento, a concupiscência, em suma, uma série de defeitos femininos são considerados como a origem do mal. Assim o crime para os arianos (gregos) é masculino; a culpa, para os semitas é feminina" (Nietzsche citado por Deleuze, s.d., p.34).
6 Que, como é sabido, mata seu irmão Abel, por ciúmes da preferência que Javé lhe dedicara. Borges (s.d., p.54) conta a seguinte "Lenda" sucedida após este acontecimento: "Abel e Caim encontraram-se depois da morte de Abel. Caminhavam pelo deserto e reconheceram-se de longe, porque os dois eram muito altos. Os irmãos sentaram-se na terra, acenderam um fogo e comeram. Guardavam silêncio, à maneira da pessoa cansada quando declina o dia. No céu assomava alguma estrela, que ainda não havia recebido seu nome. À luz das chamas, Caim percebeu na fronte de Abel a marca da pedra e deixou cair o pão que levava à boca e pediu que fosse perdoado seu crime. Abel respondeu: - Tu me mataste ou eu te matei? Já não me lembro; aqui estamos juntos como antes. - Agora sei que em verdade me perdoaste - disse Caim -, porque esquecer é perdoar. Eu procurarei também esquecer. Abel falou devagar: -Assim é. Enquanto durar o remorso, dura a culpa".
7 "Os 'filhos de Deus' poderiam ser os descendentes de Set, e 'as filhas dos homens', descendentes de Caim" (Bíblia, 1982, p.33).
8 "Macho e Fêmea Ele os criou, e os abençoou: e a eles deu o nome de homem no dia mesmo em que Ele os criou" (Bíblia, 1982, pp.24-5).
9 Talvez do modo como Saramago (1992, pp.82-3) descreve tal nascimento, em O evangelho segundo Jesus Cristo: "Dentro da caverna fazia escuro, a enfraquecida luz exterior detinha-se logo à entrada, porém, em pouco tempo, chegando um punhado de palha às brasas e soprando, com a lenha seca que ali havia, a escrava fez uma fogueira que era como uma aurora. Logo, acendeu a candeia que estava dependurada numa saliência da parede, e, tendo ajudado Maria a deitar-se, foi por água aos poços de Salomão, que ali são perto. Quando voltou, achou José de cabeça perdida, sem saber que fazer, e não devemos censurá-lo, que aos homens não os ensinam a comportar-se utilmente em situações destas, nem eles querem saber, o mais de que hão-de vir a ser capazes é pegar na mão da mulher sofredora e ficar à espera de que tudo se resolva em bem. Maria, porém, já está sozinha, o mundo acabaria de assombro se um judeu deste tempo ousasse cometer esse pouco. Entrou a escrava, disse uma palavra animadora, Coragem, depois pôs-se de joelhos entre as pernas abertas de Maria, que assim têm de estar abertas as pernas das mulheres para o que entra e para o que sai, Zelomi já perdera o conto às crianças que vira nascer, e o padecimento desta pobre mulher é igual ao de todas as outras mulheres, como foi determinado pelo Senhor Deus quando Eva errou por desobediência, Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos nascerão entre dores, e hoje, passados já tantos séculos, com tanta dor acumulada, Deus ainda não se dá por satisfeito e a agonia continua. [...] O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo".
10 Não estou afirmando que o poder "concreto" das crianças se exercesse, na sociedade romano-cristã, do modo como vem sendo dito: é apenas uma forma de tematizar a analítica de um poder que chamo de "poder espiritual". Assim como não estou propondo qualquer essência de "criança" ou de "adulto", pelo singelo motivo de que tal proposição inviabilizaria a feitura deste estudo; ao menos a partir da perspectiva arqueológica foucaultiana, que nos leva a questionar as identidades históricas de personagens por demais familiares.
11 Esta sua condição de "pastor", sem dúvida, não foi de pouca importância para que Comenius desse continuidade ao tipo de poder pastoral sobre a infância, exercido desde as escolas catequistas, monásticas e paroquiais; e para que, com este poder, realizasse uma virada pedagógica a fim de constituir sua/nossa "Pastoral Educativa".
12 No período da Guerra dos Trinta Anos (1618-48), que dilacera política e religiosamente o Império, e da Revolução Inglesa (1642-58), que marca a passagem do domínio de classe no âmbito de uma grande nação, as minorias perseguidas do Império encontram acolhida e proteção nos Países Baixos, na Inglaterra e na Suécia. Entre estes exilados estava Jan Amos Comenius, "em cuja obra sistematiza-se o velho e o novo da pedagogia" (Manacorda, 1989, p.220). Comenius é a forma latina do nome tcheco Komensk - que significa "habitante de Komna", localidade da Morávia, de onde era originária sua família. Neste trabalho, será usada a grafia latina de seu nome - Comenius -embora as notas bibliográficas acompanhem a grafia portuguesa de Portugal - Coménio -; bem como o Comenius de quem se falará será, especialmente, aquele que escreveu a Didactica Magna.
13 "Ou Processo seguro e excelente de instituir, em todas as comunidades de qualquer Reino cristão, cidades e aldeias, escolas tais que toda a juventude de um e de outro sexo, sem excetuar ninguém em parte alguma, possa ser formada nos estudos, educada nos bons costumes, impregnada de piedade, e, desta maneira, possa ser, nos anos da puberdade, instruída em tudo o que diz respeito à vida presente e à futura, com economia de tempo e de fadiga, com agrado e com solidez. Onde os fundamentos de todas as coisas que se aconselham são tirados da própria natureza das coisas; a sua verdade é demonstrada com exemplos paralelos das artes mecânicas; o curso dos estudos é distribuído por anos, meses, dias e horas; e, enfim, é indicado um caminho fácil e seguro de pôr estas coisas em prática com bom resultado" (Coménio, 1985, p.43).
14 Ordenamento estabelecido com base no método indutivo, pelo qual os fatos particulares devem ser objeto de agrupamento, experimentação e comprovação para chegar aos conceitos gerais. E, como todo conhecimento deri- va das percepções sensíveis, uma educação fundada em tal método começa e desenvolve-se pelo estudo da natureza, pelo conhecimento das coisas.
15 Regularidade que, na linguagem do historiador da infância Philippe Aries (1975, 1981, 1986), constitui a "primeira concepção moderna de infância": a inocência.
16 Sem que a esta formulação seja atribuída qualquer oposição entre "espiritual" e "material", já que, para este ensaio, "o" poder só existe em ato: ato de exercício das relações de poder. A produção do poder, as formas em que este se exerce, não derivam de um Logos, de uma Lei Fundamental e claramente localizada. As disposições de poder não revelam nenhuma trama transcendental, não são lidas em referência a juízos a priori da razão prática. O poder é apenas exercício do poder: multiplicidade de disposições, organismos, manobras, funções, táticas, multiplicidade que não é correlata do Uno, campo de forças que não expressa cogitos unificantes.
17 Ver: Corazza, 1998a, b.
18 por exemplo, tal como afirmam Alvarez-Uria y Varela, 1991; Narodowski, 1994; Lerega, 1983.
19 Entre "filha legítima" e "filha bastarda" não estabeleço nenhuma hierarquia de valor: é apenas um modo de nomear duas condições diferentes de filiação.
20 "O jogo tem dois momentos que são aqueles que constituem um lance de dados: os dados que se lançam e os dados que caem" (Nietzsche citado por Deleuze, s.d., p.40).
21 Hora em que também o louco será culpabilizado e responsabilizado por sua loucura. A estratégia dos quakers era fazer com que cada interno do Retiro, dirigido por Tuke, assumisse a responsabilidade de seu crime ou doença. Para isso, o terror livre da loucura precisou ser substituído pela angústia fechada da responsabilidade: "O medo não impera mais do outro lado das portas da prisão, vai doravante grassar nos subterrâneos da consciência". O asilo organiza a culpabilidade do louco para o louco, "como consciência de si e como relacionamento não recíproco com o guardião"; organiza-a "para o homem razoável como consciência do outro". A constituição desse novo milieu asilar envolve uma complexa série de arranjos institucionais, dentre os quais a intervenção terapêutica punitiva passa a ser o modelo padrão de tratamento. Através dessa culpabilidade, "o louco torna-se objeto de punição sempre oferecido a si mesmo e ao outro, e do reconhecimento dessa condição de objeto, da tomada de consciência de sua culpabilidade, o louco deve voltar à sua consciência de sujeito livre e responsável, e por conseguinte retornar à razão" (Foucault, 1991a, pp.478-9).
22 Não é por nada que Kant, em 5 de dezembro de 1783, inicia sua "Resposta à pergunta: que é o 'Esclarecimento' ('Aufklürung')" pela seguinte definição: "Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a dire- ção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufhlärung]" (Kant, 1985, p.100).
23 Há muitas passagens em que fica visível o privilegiamento que Comenius atribui à educação moral, por exemplo, nesta em que afirma: "Agem como inexperientes aqueles que, encarregando-se da formação de crianças já crescidas e de adolescentes, não começam pela educação moral, para que, doman-do-lhes as paixões, os tornem aptos para as restantes coisas" (Coménio, 1985, p.231). À primeira vista, sim, podemos pensar no texto comeniano enquanto um forte método para ensinar conhecimentos universais a todas as pessoas; mas é preciso atentar que, mais importante do. que seu interesse didático e o ordenamento das ações educativas, seu objetivo central é o de tornar os "alunos dóceis", como uma qualidade imprescindível de sua formação moral: 1. "Efetivamente, se não se aprende, de quem é a culpa senão do professor, que não sabe ou não se preocupa em tornar o aluno dócil?" (ib., p.245); 2. também em: "se não se esforçam, antes de tudo, por tornar os alunos dóceis e atentos" (ib., p.254); 3- ou então: que se deve "excitar seriamente a docilidade do aluno" (ib., p.255). Assim, tal educação moral seria a própria "raiz" (numa linguagem comeniana) das regras de poder sobre a infância criadas por seu texto. Hoskin (1993) assinala a condição etimológica do termo "dócil", proveniente do latim docilis, que significa "ensinável", tendo por isto uma conotação educativa.