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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.6 São Paulo jul. 1999

 

ARTIGO

 

Psicanálise e educação: tarefas "intrigantes"?

 

Psychoanalysis and education: intriguing" tasks?

 

 

Alberto Villani

Professor associado no Instituto de Física da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Neste trabalho tentaremos desenvolver uma analogia entre o processo analítico e de educação em ciências, focalizando os paradoxos que parecem implícitos em seu exercício: a impossibilidade de uma satisfação total, as dificuldades para superar as resistências num processo de mudança, o paradoxo da dissolução da transferência.

Ensino de ciências; relação transferencial; insatisfação radical


ABSTRACT

In this work we try to develop an analogy between psychoanalysis and science education focussing the paradoxes that seem to be implicit in their exercise: the impossibility to obtain a complete satisfaction, the difficulties to overcome the resistences for a change, the paradox of the dissolution of transference.

Science education; transference; basic dissatisfaction


 

 

INTRODUÇÃO

O tema psicanálise e educação tem sido objeto de interesse desde os primórdios das descobertas psicanalíticas, e até o final de sua vida Freud tentou obter subsídios da psicanálise para tornar a educação mais eficaz em seu esforço de integração das crianças na sociedade. Entretanto, essa esperança parece uma miragem. Toda vez que a educação enfrenta problemas que, de alguma forma, têm a ver com a subjetividade do aprendiz, aparecem indicações para os educadores se atualizarem nas sugestões da psicanálise. Enfim, essa é pensada como uma muleta para as situações mais dramáticas.

Freud desenvolveu uma série de reflexões que se deslocam dessa perspectiva para focalizar a estrutura da atividade psicanalítica e a da educativa, encontrando semelhanças que podem ajudar cada uma a entender melhor seu trabalho.

Numa das intervenções sobre o tema psicanálise e educação, no final de sua vida, Freud escreveu que existem três profissões impossíveis: curar, educar e governar. Muitos comentaram essa afirmação tentando entendê-la num sentido ou num outro. Alguns parecem querer interpretar a frase como antecipação do fracasso moderno da educação. Para outros, ao contrário, Freud visava a estrutura das atividades em questão. Lajonquière, por exemplo, fala da impossibilidade, comum aos três tipos de atividade, de fazer com que o outro seja uma cópia especular do agente (analista, professor ou autoridade). Cabral (1998) fala da impossibilidade de obter um produto ideal (cura ideal, aprendizagem ideal, sociedade ideal). Kupfer (1988, 1991) explicita a idéia de uma impossibilidade, por parte do professor, de controlar o desejo do aluno e, portanto, a efetividade de sua aprendizagem.

Nossa intenção é apresentar uma interpretação da afirmação de Freud, articulada em quatro pontos: a impossibilidade de promover uma satisfação absoluta na análise e no ensino, a emergência de conflitos intrínsecos e radicais no início dos processos de aprender e de fazer uma análise, a presença de paradoxos nas ações que visam a cura e a educação e a impossibilidade de atingir os próprios objetivos da análise e do ensino.

Nosso trabalho insere-se na perspectiva de exploração do saber psicanalítico no campo da educação via desenvolvimento de analogias e metáforas (Villani & Cabral, 1997; Villani, 1998). Nossa perspectiva é iluminar o campo da educação em ciências, no qual operamos como profissionais, a partir da dinâmica do trabalho psicanalítico, assim como a concebemos, baseados nas informações, infelizmente reduzidas e parciais, que obtivemos com leituras, cursos e com a experiência de análise.

 

A IMPOSSIBILIDADE DA SATISFAÇÃO TOTAL

No início a criança vive num estado mítico de fusão com a "Coisa" materna. Em sua ilusão fundamental, nada lhe falta. Até o momento doloroso em que a falta entra em sua vida, por exemplo, percebendo que não é tudo para a mãe. Nesse caso a mãe sinaliza simbolicamente para o filho que o desejo dela está orientado para o pai e que ela está submetida a lei paterna que interdita o incesto. Termina assim a identificação alienante com a mãe e a dependência total, e começa o processo de separação, ponto de partida para a construção da identidade sexual da criança, sua constituição como sujeito desejante. Processo que continua com uma série sem fim de identificações e separações. A criança deve reconhecer que, não podendo satisfazer seu desejo absoluto da Coisa, deve contentar-se de outros objetos, todos parciais, mas que caracterizarão sua procura de uma satisfação possível.

Lacan, em sua teoria do estado do espelho, descreve o processo de identificação que constitui de certa forma uma referência para as sucessivas identificações. Inicia-se numa situação de desagregação e de despedaçamento, modificada por uma unificação imaginária, a partir da identificação com o desejo da mãe: o sujeito é capturado por uma imagem virtual. A tomada de consciência de si numa imagem alienada, de alguma forma, constitui uma antecipação e um guia do processo de autodomínio efetivo. Essa antecipação é marcada por uma fascinação e constitui um caso particular da função do imaginário no processo de assunção, por parte do sujeito, de sua identidade.

A sucessiva passagem pelo Édipo representa o processo de separação, na qual a lei impõe uma perda, mas introduz um novo referencial, abrindo caminhos para uma satisfação diferente da identificação com a mãe. Em geral o processo de separação inicia-se quando o sujeito consegue se perguntar sobre a satisfação encontrada na identificação. O mítico estado inicial nunca é atingido novamente, e portanto novas tentativas de identificação deverão ser procuradas.

Entretanto, às vezes, o sujeito não consegue desidentificar-se, pois algo ficou retido no inconsciente, às vezes tão emocionalmente carregado, que nem consegue ser simbolizado. Os traços desses recalques aparecem nos sonhos, chistes, atos falhos ou nos sintomas; nos casos mais dramáticos, nos quais faltou a simbolização do trauma em questão, o retorno assume aspectos psicossomáticos. A psicanálise foi inventada para tentar liberar o sujeito desses problemas. Mediante a metodologia da livre associação e com a sustentação do analista, o sujeito é conduzido a localizar suas sucessivas identificações e tentar costurar correspondentes pontos de gozo retidos, até nomeá-los, levando o sujeito a uma correspondente sublimação das pulsões não diretamente satisfeitas. Evidentemente o trabalho de análise não leva o sujeito a obter uma satisfação plena. Nesse sentido a psicanálise não cura o homem de sua falta radical. Conseqüentemente o indivíduo que procura a psicanálise para alcançar sua felicidade está iludido. Poderíamos recuar um pouco e dizer que a psicanálise, mais modestamente, conduz o sujeito a alcançar a satisfação possível. Esta parece ser a perspectiva do indivíduo esclarecido que procura a análise. Nos parece que também essa meta é ilusória, pois a psicanálise visa confrontar o sujeito com sua falta, ao passo que a felicidade humana parece consistir no encobrimento da insatisfação radical. Em nossa opinião, a psicanálise pode ajudar o sujeito de um lado a suportar seu sofrimento inevitável devido ao confronto com seus limites e sua impotência, e de outro lado a movimentar sua busca sem fim de sua verdade subjetiva.

Entendemos que no campo da aprendizagem do conhecimento científico há uma situação semelhante: o processo desenrola-se através de sucessivas identificações que alienam e separações que implementam o processo de subjetivaçâo. Em geral, no início do processo, o aluno encontra-se fragmentado diante do fluxo das informações e dos acontecimentos. Uma primeira unificação consiste em ser capturado pelo saber do professor. Entretanto, ainda se trata de uma experiência alienante, pois o aluno está se identificando prematuramente com algo que não é dele, a partir do desejo do professor. Muitas vezes essa situação irá se repetir durante o tempo escolar do sujeito, em um processo marcado por sucessivas identificações com novos saberes que irão recobrir os anteriores, que, em geral, não serão substituídos de maneira definitiva. A vida escolar encarrega-se de desmanchar as sucessivas identificações com o saber do professor, seja através das mudanças dos professores, que introduzem sempre novos assuntos, conteúdos e sínteses, seja através das inevitáveis decepções que marcam todo o processo de aprender. Aquilo que parecia ter sido uma conquista iluminante na identificação com as palavras brilhantes do professor rapidamente se transforma, para os alunos, em pesadelo de não ter entendido e de não conseguir utilizar quase nada. Os casos mais felizes são caracterizados pela montanha de dúvidas que assombram os sujeitos; os casos mais dramáticos são marcados por um profundo mal-estar, ligado a algum trauma escolástico e desarticulado de qualquer pergunta. Um processo de ensino bem conduzido auxilia o processo inicial passando por identificações sucessivas até a separação na qual os alunos conseguem desligar-se do saber do professor construindo para si um novo saber, cuja amplitude e profundidade variam entre a elaboração de uma síntese pessoal e a produção de uma contribuição absolutamente original no próprio contexto da comunidade científica.

Assim como o saber do professor não constitui um conhecimento absoluto, e portanto nenhuma identificação com ele pode satisfazer totalmente o suposto desejo original e incondicional de saber, também nenhuma conquista nova terá essa característica. Existe a impossibilidade radical do ensino de propiciar ao aluno o conhecimento que o satisfaz totalmente. Analogamente ao caso da psicanálise, poderíamos recuar um pouco e afirmar que o ensino conduz o indivíduo a encontrar a satisfação possível no conhecimento atualmente à disposição. Discordamos dessa perspectiva e sustentamos que a finalidade do ensino é confrontar o sujeito com as falhas do conhecimento possível, para que ele seja convidado a não se satisfazer com isso, mesmo que consista na última "descoberta" científica. Em nossa interpretação, o ensino, por intermédio da figura do professor, de um lado, pode ajudar o sujeito a reconhecer e suportar esses limites humanos e, ainda mais, os limites pessoais e, de outro lado, pode encaminhar e movimentar o processo de busca sem fim do saber que se engancha com sua própria verdade subjetiva.

 

OS PARADOXOS INICIAIS

Às vezes, quando o indivíduo é surpreendido ao perceber que em determinadas circunstâncias o curso de sua vida escapa-lhe, é invadido por uma angústia crescente por constatar que suas ações estão fora de seu controle e ele não consegue recuperar o domínio de si mesmo. O que mais o surpreende nessa situação é que os sintomas repetem-se de maneira que parece aleatória, sem sentido, ou seja, não apontam para nenhuma causa física ou psicológica. Mais ele tenta entender, menos compreende. Freud, ao deparar com os sintomas histéricos das doentes de Charcot, propôs a hipótese de que a origem de tanto sofrimento fosse inconsciente: existiriam no sujeito representações inconscientes, recalcadas numa época anterior e mantidas tais pela consciência, que não as deixaria emergir por medo dos grandes sofrimentos que isso causaria. A perda que mais espanta é a perda de uma identificação alienante. Digamos que certas coisas é melhor continuar a ignorá-las. A situação apresenta-se com uma conotação esquisita. De um lado, o sujeito sofre e procura, conscientemente ele procura como acabar com seu sofrimento; de outro lado, seus sintomas constituem a maneira de as representações inconscientes burlarem a censura que a consciência do sujeito estabeleceu para não tomar conhecimento desse saber inconsciente. O sujeito está radicalmente dividido, pois ele gostaria de acabar com os sintomas, mas não está disposto a pagar o preço correspondente. Mais ele procura saber, mais ele sabota as tentativas de encontrar o que resolveria seu problema, pois maiores se tornam suas resistências. Por isso é necessário que alguém o ajude. A solução, porém, não poderá ser imediata, pois o conflito íntimo entre o procurar saber e o não querer saber tentará atrapalhar também a ajuda a receber. Os casos mais difíceis são aqueles nos quais há somente angústia retida sem nenhuma representação inconsciente, pois nesta situação o processo de retomada do controle do gozo a partir do desejo do sujeito deve ser construído a partir de fragmentos aparentemente sem conexão. Parece uma missão impossível, pois ninguém pode ver no lugar de outro. Somente alguém que já passou por algo semelhante poderá fornecer a ajuda capaz, pelo menos em muitos casos, de superar o impasse.

No caso da aprendizagem em ciências algo de análogo parece acontecer. O sujeito possui um conhecimento espontâneo, fruto de toda a sua interação com o mundo e a sociedade, mas percebe que em determinadas ocasiões ele é insuficiente e por isso gostaria de se apropriar de um novo conhecimento, mais adequado para a solução de determinados problemas. Entretanto, esse novo conhecimento é estranho e, geralmente, está em conflito com outras idéias ou valores ou procedimentos seus, que constituem os instrumentos utilizados para julgar e se apropriar do conhecimento. Em resumo, foi apontado (Pintrich et al,1993) o paradoxode que é a ecologia conceituai que fornece os critérios para a modificação das concepções do sujeito e, simultaneamente, é quem deve sofrer modificações para se tornar compatível com o novo conhecimento. O filtro, que seleciona os conhecimentos e as informações apropriadas para o sujeito, constitui exatamente aquilo que deve ser alterado para poder dominar algo de radicalmente novo. O sujeito precisa de ajuda. No entanto, a ajuda não poderá ser imediata, pois o mesmo filtro que rejeita os novos conhecimentos tentará rejeitar também a ajuda. Parece uma missão impossível, pois ninguém pode aprender no lugar do outro. Somente alguém que já passou por algo semelhante poderá fornecer a ajuda capaz, pelo menos em muitos casos, de superar o impasse.

 

OS PARADOXOS DA TRANSFERÊNCIA ANALÍTICA E PEDAGÓGICA

Como é resolvido o impasse do conflito intrínseco referente à cura e ao ensino? No item anterior acenamos para a possibilidade de uma ajuda externa: um analista ou um professor. Neste item procuraremos elucidar os enigmas dessas ajudas. No campo da psicanálise o problema pode ser definido dessa maneira.

A insatisfação pela situação vivida leva um indivíduo a procurar um analista, com a ilusão de que este possa resolver seu problema, possivelmente sem muito esforço, sofrimento e mudanças radicais. Entretanto é mediante essa ilusão que se estabelece uma relação de transferência imaginária, assim chamada porque o indivíduo imagina, sem fundamentos, qual será o resultado da interação com o analista. Isso permite que o indivíduo comece a falar de seus problemas, e o analista possa intervir com suas questões, considerações e suposições, até que finalmente se realize uma "retificação subjetiva" do analisando. Isso significa este modificar sua posição inicial de espera passiva da liberação de seus sintomas, para uma posição ativa de responsabilidade, na qual tanto o analisando quanto o analista estão implicados no esforço de decifrar a mensagem implícita nos sintomas. É a transferência analítica operando, simultaneamente como motor e empecilho da análise. Como motor enquanto levanta o enigma do sujeito, como empecilho enquanto introduz uma nova barreira no campo da procura da verdade subjetiva: a identificação com o analista.

A idéia é que existe uma relação estreita e permanente entre a maneira de o sujeito se apresentar aos outros e a maneira de ele administrar e escamotear seu desejo; uma ruptura na primeira, mediante a técnica da associação livre, introduz uma perturbação na segunda e permite as várias manifestações do desejo inconsciente. O analista irá pontuar essas manifestações com suas perguntas, cortes e sínteses promovendo assim uma progressiva percepção, por parte do sujeito, das várias identificações, desde as mais recentes até as mais remotas. A análise e o sucessivo trabalho de reflexão constituem, então, o espaço privilegiado da construção e articulação das dúvidas do analisando que levam à localização das suas identificações básicas. Isso implica a desmontagem de todas as identificações a partir da interferência do analista, que promove algo que o analisando não conseguiria sozinho; o efeito dessa operação é uma satisfação desmedida, um sentimento de onipotência do analisando, que se sente progressivamente livre das amarras que seguravam sua vida. Entretanto, a finalidade da análise não é conduzir o analisando a uma satisfação baseada na identificação com o próprio analista, que foi o pivô da operação. O analista quer que o analisando rompa também com essa última identificação, aceite viver sozinho a perda de todos os suportes e toque no "real de sua verdade", que não pode ser dita toda. Parece ser este o paradoxo mais intrigante: o analista consegue influenciar o analisando na medida em que este está identificado com aquele. Mas como influenciar alguém para que a influência acabe? A resposta é impossível; de fato não existe uma maneira certa, um método seguro, a ser posto em prática pelo analista, para conduzir o paciente a não precisar mais do analista. Apesar disso, às vezes, o analisando chega à conclusão de que não precisa mais do analista, e essa conclusão não constitui uma fuga diante de um problema que não quer enfrentar: resolveu que pode se confrontar com suas questões sozinho. E o analista?

Parece que o essencial é entrar em ressonância com o analisando, ou seja, fazer suas intervenções sustentando o trabalho do analisando, não como alguém que exerce um poder sobre o outro, nem como um mestre que sabe como o outro irá parar, mas deixando-se surpreender pelos caminhos do outro. No fundo, trata-se de intervir acreditando que o analisando um dia conseguirá dar o salto, isto é, conseguirá romper sozinho a última ligação que o amarra ao analista. O analista está implicado e, portanto, movido por essas crenças particularmente duras: acreditar que o analisando poderá chegar a dar o salto, acreditar que ele está conduzindo o processo de maneira adequada e, mesmo desconhecendo qual será o resultado do salto do analisando, aceitá-lo de antemão. Uma energia especial deve sustentar essa posição: o desejo de analista, ou melhor, a identificação do analista com esse desejo impessoal, silenciando os outros desejos pessoais. O desejo de desaparecer no final da relação analítica parece uma sublimação da pulsão de morte. Mas é também um desejo de introduzir alguém na causa freudiana, a causa do desejo inconsciente, do desejo da diferença que renova continuamente a humanidade. Morte que gera vida, então.

No campo da educação parece ocorrer algo de semelhante.

Inicialmente os alunos consideram o professor como aquele que sabe e que tem de transmitir o conhecimento: a habilidade do professor consiste em levá-los a tomar consciência de que é uma ilusão esperar que a aprendizagem seja efeito apenas da atuação esclarecedora do professor. Mesmo que esta atuação do professor gere muitas vezes uma visível satisfação no estudante e até uma identificação (aparente) dele com o novo saber, esta ilusão não deve durar muito tempo. Em geral, basta que o professor convide os estudantes a utilizarem de maneira levemente nova o conhecimento adquirido, para que estes percebam a gravidade de suas falhas e procurem auxílio para resolvê-las. Nessa situação, a meta a ser atingida é fazer o estudante perceber que o problema está em suas mãos, e que ele deverá trabalhar com seus conhecimentos para torná-los compatíveis com o saber científico, pelo menos em parte e em situações escolares.

Entretanto, não basta que o professor preocupe-se com o envolvimento do aluno no processo de aprender; de maneira que este consiga separar-se de todos os saberes com os quais estava identificado anteriormente e se identificar com o saber do professor. Sua meta deveria ser uma progressiva modificação dos estudantes rumo à produção de questões e perspectivas próprias: isso quer dizer separar-se do saber do professor para produzir um saber próprio. A apropriação do conhecimento científico deverá tornar-se um meio para delinear e construir um problema pessoal abrangente,a ser pesquisado num contexto científico. Em outras palavras, em vez de visar a satisfação do aluno ao se apropriar do novo conhecimento teórico, o professor deveria ter como meta produzir no aluno um desejo de alcançar conclusões mais convincentes e precisas, a partir da experiência de ter conseguido resultados parcialmente satisfatórios na solução de problemas complexos (Villani & Cabral, 1998). Em outras palavras, o professor quer que o aluno pare de basear-se no saber dos outros e assuma o desarvoramento de sustentar seu conhecimento sozinho e enfrente o mistério do real que não pode ser conhecido totalmente. Como é possível que o professor, usando seu conhecimento científico, consiga fazer com que o aluno ultrapasse esse conhecimento? Evidentemente o aluno deve dar um salto para além do que está em jogo. Um conjunto de crenças radicais deve sustentar a ação do professor: a crença de que o aluno é capaz de dar o salto para essa desconhecida reorganização do conhecimento, a crença de que ele próprio será capaz de acompanhar o processo sem atrapalhar e com aceitação do resultado do salto, qualquer que esse seja. Uma energia interna deve sustentar essa crença para a qual não existe nenhuma garantia: o desejo de professor deve silenciar os desejos particulares do professor em questão. Será esse desejo especial de desaparecer no final de uma relação pedagógica bem-sucedida uma outra forma de sublimar a pulsão de morte? Mas também é desejo de introduzir alguém na cultura viva. Desejo que o aluno opere novos horizontes, que contribuam para renovar a busca da humanidade. Morte que gera vida, então.

 

A IMPOSSIBILIDADE FINAL

A análise pode terminar porque o analisando já está satisfeito com aquilo que obteve: uma libertação de amarras que o prendiam (fase terapêutica). Pode também acontecer de o analisando não agüentar o desarvoramento: pode querer voltar às antigas identificações e procurar o saber objetivo da medicina, dos medicamentos. Pode procurar outro saber subjetivo que lhe devolva sua segurança (por exemplo, entregando-se passivamente a uma religião ou a uma crença esotérica...) ou até saídas mais emocionantes (como, por exemplo, as drogas...).

Entretanto, se ele suportar viver sua busca sozinho, pode chegar ao fim específico da análise: a destituição subjetiva, na qual o sujeito aceita haver uma verdade não assimilável totalmente. A cura total é impossível, mesmo no sentido restrito da eliminação dos sintomas. Em outras palavras, parece intrínseco à vida humana que, no processo de constituição do sujeito, realizado no nível imaginário (identificação) e simbólico (separação), algo sempre escape, tornando-se ponto de gozo sem sentido, verdade sem um saber correspondente, verdade aprendida em fragmentos. O inconsciente é o discurso do Outro e discurso indizível do real. Aprender a lidar com isso parece ser a finalidade última do processo psicanalítico, pelo menos na concepção lacaniana. Nessa visão existem duas maneiras de expressar que o analisando terminou sua análise: mediante a travessia de fantasia fundamental e a identificação com o sintoma básico. Com isso o sujeito reconhece dois vínculos correlacionados. De um lado ele percebe que sempre tentará recobrir a falta fundamental por intermédio de um sonho de unidade reconstituída: no final da análise ele sabe a que tipo de sonho está amarrado. De outro lado o saber inconsciente da castração que permanece em parte recalcado, apesar de todas as análises, precisa encontrar um sintoma para ser dito. No final da análise o analisando acaba de identificar e identificar-se com seu sintoma básico no qual seu saber inconsciente se expressa. Já não tenta mais se livrar dele, mas reconhece nele o que há de mais singular em sua vida psíquica. Uma outra maneira de falar de fim de análise é dizer que o analisando, após ter-se libertado do outro e de suas identificações e amarras, encontra-se na possibilidade de seguir sua verdade organizada por sua lei particular, ou seja, sua maneira particular de viver a impossibilidade de satisfação total e a procura sempre renovada de bens a partir de seus limites.

Entretanto sempre resta a possibilidade de uma saída perversa, na qual o sujeito não reconhece nenhuma lei, entregando-se ao gozo puro. Ele escolheu renunciar definitivamente a seu desejo, recusando que este organize seu gozo.

Também no campo de aprendizagem das ciências há mais do que pura racionalidade. Bachelard (1980) reconheceu isso ao analisar a relação entre a fantasia e a racionalidade. Há uma impossibilidade no nível do próprio objetivo de ensinar o conhecimento científico, que visa a modificação da maneira de ver dos alunos de uma perspectiva dominada pelo imaginário e pelas crenças do senso comum, para uma perspectiva dominada por razões e conhecimentos científicos. De fato, sempre há furos (Mortimer, 1995), como crenças não justificadas, pontos aceitos acriticamente, imagens intuitivas, sensações ainda nebulosas e pouco objetiváveis, por mais que o processo seja conduzido de maneira criativa e competente. O próprio conhecimento científico não escapa dessa limitação fundamental, como bem descrevem os trabalhos de Kuhn, Lakatos, Feyerabend (Lakatos & Musgraves, 1970), Laudan (1977) e outros, que consideram mítica a pretensão de o conhecimento científico ser considerado verdadeiro ou, pelo menos, radicalmente justificado. O saber científico é simultaneamente discurso do homem e discurso indizível do "real". Enquanto discurso humano ele sonha ser completo; enquanto discurso do real contém sementes de sua superação. Digamos que o objetivo último da educação científica é aprender a lidar com essa limitação intrínseca, explorando de maneira conseqüente o conhecimento adquirido e elaborado. Uma outra maneira de dizer isso é considerar o fim da aprendizagem como o momento no qual o sujeito aceita a impossibilidade de um saber definitivo sem, no entanto, renunciar a ultrapassar o velho e procurar o novo. Ele obedece de forma singular a essa lei: por exemplo, o cientista teórico tentará produzir novos conhecimentos científicos, mesmo sabendo que não serão definitivos; o experimental procurará fornecer informações que capturem o mais possível do real, mesmo sabendo dos limites de sua procura; um professor de ciência procurará ampliar os limites da relação entre o saber científico e os alunos, mesmo sabendo que seus esforços terão sucesso limitado, outro ainda visará explicitar mais as características dessa relação, apesar de estar consciente de que o resultado será ambíguo. Enfim, as formas mais diferenciadas de viver um compromisso quase trágico serão o resultado de um processo de confronto do estudante com o saber científico.

Parece-nos possível também ampliar as analogias entre o final do ensino e da análise.

Já vimos que a retificação subjetiva corresponde ao trabalho de desidentificação com os sintomas que representam e explicitam seu conhecimento espontâneo e a construção de um novo saber. O efeito terapêutico disso é evidente: o aluno começa a gostar de pensar e refletir, começa a gostar de um saber mais geral, etc. Entretanto, de repente pode parar de indagar e construir seu saber. O que aconteceu?

Pode ter ficado satisfeito com o trabalho realizado e sentir-se onipotente com o novo saber, que lhe permite enxergar melhor o mundo que o circunda. Pode também não conseguir agüentar a aridez, a falta de sentido do novo conhecimento e sua dificuldade de aplicação. Assim prefere voltar ao antigo senso comum, que lhe oferecia mais suporte para o dia-a-dia, e não o obrigava a responder sozinho por aquilo que acreditava saber. O aluno pode também encontrar outros caminhos, semelhantes aos que já vimos no final da análise: procurar outro conhecimento que pareça mais satisfatório (como uma religião que oferece respostas certas, ou uma crença iluminada...) ou partir para outras experiências mais substantivas e emocionantes (drogas...).

No entanto, existem aqueles que querem continuar e que aceitam o desafio de ficar sozinhos com o novo conhecimento. Para eles é reservado como meta o "distanciamento epistêmico" da ciência, que envolve avaliar as pretensões do conhecimento e decidir em quais acreditar (Norris, 1997). Envolve sobretudo adotar uma atitude em relação à ciência (baseada na falibilidade, aproximação, ambigüidade e alternativas implícitas no conhecimento científico). Este processo pode ser semelhante à identificação com o sintoma, pois ao assumir uma distância e uma posição diante da ciência, o sujeito é obrigado, aos poucos, a introduzir o sentido que o conhecimento tem para ele e a definir qual seu apoio último, seu critério pessoal último. Ele assume a paternidade e a responsabilidade de seu saber.

De quebra vai também uma "travessia da fantasia" que regula sua maneira de trabalhar o conhecimento, as imagens que o movem na procura do saber e em sua construção, etc. Essas imagens tendem a recobrir a falta de conhecimento do sujeito, mas sua travessia implica reconhecer essa característica, mesmo não a podendo evitar.

Finalmente, também nesse campo é possível uma saída perversa: alguém que conseguiu dominar o conhecimento científico de maneira pessoal, mas não reconhece sua lei particular de contribuir para esse conhecimento. O conhecimento virou instrumento puro de gozo, instrumento de poder.

 

ALGUMAS CONCLUSÕES

Nossa argumentação sobre os paradoxos da análise e da aprendizagem em ciências não seria completa se não tentasse alcançar um maior entendimento e uma maior eficiência do ensino de ciências. Entretanto nossa primeira conclusão é.que não há nenhum método, nem técnica, nem estratégia que garanta um resultado do tipo conduzir os alunos até atingirem sua independência. O aluno e sua subjetividade estão envolvidos de maneira radical. Porém, mesmo não existindo um método que conduza à meta esperada, podemos observar que alguns professores conseguem resultados bem mais satisfatórios que outros. O que eles fazem? Como se posicionam em relação aos alunos?

Se nos limitarmos ao ensino de terceiro grau, que é o nível de ensino do qual se pode esperar um resultado do tipo da mudança proposta, algumas sugestões podem ajudar a reflexão do professor.

Como ponto de partida, consideramos que a competência do analista em fomentar a modificação de sua relação com o analisando ao longo do processo está baseada em sua longa experiência em localizar e trabalhar suas sucessivas identificações imaginárias, até reconhecer e admitir, de maneira radical, que, apesar de nenhuma satisfação poder ser plena, a procura deve ser contínua. De maneira análoga, estamos sugerindo que a competência profissional do professor em modificar continuamente a relação com seus estudantes rumo à autonomia intelectual e subjetiva destes está baseada em sua longa experiência de localizar e trabalhar suas concepções espontâneas básicas e sua visão de mundo, até reconhecer e admitir que, apesar de nenhum conhecimento ser absoluto, a procura deve ser contínua (Villani, 1999).

Uma primeira sugestão refere-se a escutar o discurso dos alunos. Consiste em liberar os sujeitos da necessidade de nos agradar, permitindo que eles flutuem entre as imagens que amarram sua maneira de pensar e com as quais eles se identificam. Não sendo vinculados a exprimir-se de um determinado jeito, eles podem pensar de diferentes maneiras. Se o processo for conduzido de maneira adequada, instaurando perguntas no lugar de fornecer respostas, pondo os alunos na posição de terem de produzir justificativas sobre as afirmações feitas, os alunos aos poucos começam a reconhecer as implicações de suas falas e a reelaborar os significantes aos quais eles estão amarrados. Aos poucos os esquemas repetitivos revelam aprisionar o gozo dos estudantes e eles têm chance de modificar suas preferências. Se quisermos resumir isso num mote para o professor, podemos dizer: pense na estratégia de que quem não sabe deve falar e quem sabe deve perguntar (Baldino et al, 1996).

Uma segunda sugestão consiste em empurrar continuamente os alunos a se envolver em problemas locais com os quais eles tenham alguma ressonância (Freitas & Villani, 1998). Isso aumenta a probabilidade de que, de repente, algo maior comece a aparecer: um problema que conquistou o aluno de tal forma, que não encontrará paz até tê-lo enfrentado de maneira sistemática. Se quisermos resumir isso num outro mote para o professor, podemos dizer: seja como um agente de viagens, que chega com a mala cheia de fotos, guias, mapas, folhetos e se propõe a servir de guia para viajantes num roteiro por eles escolhido (Freitas, 1998).

Uma terceira sugestão consiste em aproveitar das ocasiões que aparecem para pensar junto com os alunos. O professor poderá dessa forma levantar problemas que ele considera efetivos e mais importantes; não somente o resultado dessa prática será uma participação crescente dos alunos na "tempestade de sugestões", mas também poderá ocorrer que algumas delas adquiram um sentido mais radical para os alunos. Se quisermos resumir isso num mote para o professor, podemos dizer: arrisque-se a pensar em voz alta, facilmente encontrará alunos que seguirão o exemplo pensando junto com você (Villani, 1998).

Uma outra sugestão para o professor consiste em puxar o tapete debaixo do aluno, para abalar as certezas (e as ilusões) que ele tem. Como no caso de uma aluna que, ao ler a transcrição de sua fala junto com as pontuações do professor, comentou: "Você tem a mania de estar sempre descobrindo tudo... Nossa, eu falei tudo isso e nunca tinha me dado conta do que dizia. Estou em crise de identidade. Que professora vou ser?" (Baldino, 1998). Se quisermos resumir isso num mote para o professor, podemos dizer: promova interpretações oportunas sobre as falas dos alunos de maneira que eles fiquem perturbados e comecem a se separar de você.

Finalmente uma última recomendação, a mais evidente, mas mesmo assim não fácil de ser posta em prática, consiste em não resistir ao afastamento dos alunos, ou seja, em não boicotar as tentativas, mesmo que grosseiras, de os alunos produzirem algo de próprio. Se quisermos resumir isso num mote para o professor, podemos dizer: não faça chantagem, não use o poder que lhe advém de sua função (e da transferência) para manter os alunos presos a sua pessoa ou a seu saber.

Naturalmente muitas outras sugestões podem ser dadas. Consideraremos um resultado satisfatório de nosso trabalho se outros pesquisadores se interessarem pelo tema e produzirem suas reflexões a respeito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 09/98

 

 

* Um agradecimento ao dr. Leandro de Lajonquière, da Faculdade de Educação, pelas sugestões e por ter permitido a apresentação desse trabalho durante o curso de pós-graduação por ele ministrado, e à dra. Lia Lage, da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção São Paulo, pela leitura crítica e sugestões.