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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.8 São Paulo  2000

 

DOSSIÊ

 

Novas narrativas para os autismos: algumas contribuições de Winnicott para uma teoria e clínica dos autismos1,2

 

New narratives to the autisms: few winnicows contributions to an autism theory and clinic

 

 

Ana Elizabeth Cavalcanti

Psicanalista, membro da equipe do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem (CPPL) e sócia do Círculo Psicanalítico de PE

 

 


RESUMO

Neste trabalho proponho-me a pensar os autismos como formas particulares de subjetivação por meio da invenção e chamo a atenção para a necessidade de desenvolverem-se narrativas no campo psicanalítico que permitam positivar essas formas de organização psíquica. Apóio-me em algumas formulações winnicottianas sobre a maternagem e as relações primárias que me parecem úteis para uma abordagem dos estados psíquicos que parecem construídos para além ou aquém da referência edípica.

Autismos; subjetividade; narrativas; maternagem


ABSTRACT

In this paper, I suggest thinking autism through invention, as a peculiar way of subjectivity, and I draw attention to the need to develop narratives in the psychoanalytic field that allow supportive ways of psychical organization. I rely on some Winnicottian thoughts on nursing and on the psychical states built beyond the Edipus references.

Autisms; subjectivity; narratives; nursing


 

 

"Sempre se pode substituir uma palavra por outra. Se esta não lhe agrada, não lhe convém, pegue outra, coloque outra no lugar."
(Deleuze, 1998)

"Quando se trata de autismos ou de outros estados psíquicos que se organizam além dos limites do Édipo, convém ampliar as narrativas sobre a construção do sujeito existentes no campo psicanalítico, para tentar interpretá-los. Aliás, construir narrativas para aqueles que não têm como falar de seu sofrimento e não têm como serem falados é, ou ao menos deveria ser, uma das especialidades do psicanalista. Talvez essa tenha sido a principal invenção freudiana, preservada por seus seguidores, que, utilizando a investigação psicanalítica, puderam dar voz e escutar as crianças, os loucos, os autistas... Esses sujeitos que não podiam prescindir da construção de novas narrativas para que pudessem falar e serem falados. No entanto, não podemos dizer que nós, psicanalistas, nos desvencilhamos com facilidade da atração quase irresistível de falarmos desses estados de organização psíquica pela negativa. Muitas de nossas narrativas insistem, poderíamos dizer, em dar ao Édipo e à teoria da sexualidade um lugar central e único na teoria psicanalítica, o que impede, ou ao menos dificulta, falar desses estados em sua forma positiva.

Neste trabalho sugiro que não podemos pensar os processos de subjetivação dos autistas e das relações parentais aí estabelecidas pela via da falência, tomando como referenciais alguns paradigmas que não dão conta dessas formas particulares de existência, na medida em que insistem com a idéia de que as crianças autistas não foram objeto de um certo investimento dos pais, indispensável para inseri-las no campo do psíquico, Ha linguagem e da cultura. Proponho, ao contrário, que elas são inventadas por seus pais, como qualquer outro sujeito3. Uso a palavra "invenção" para denominar esse ato dos pais sobre os filhos, pondo-os no circuito de seus desejos, de seu tempo e de sua cultura. Assim, não poderíamos pensar que os autistas não foram inventados por seus pais. O que acontece é que essa invenção, como toda invenção, aliás, tem características muito próprias, o que nos obriga a pensar os processos de subjetivação dos autismos mediante parâmetros também muito próprios.

Para sustentar esse ponto de vista, recorro às concepções winnicottianas sobre as relações primárias e a maternagem, uma vez que, me parece, ajudam a pensar sobre a invenção de um bebê pelos pais, assim como no impacto do imprevisível e do estranho na construção das subjetividades.

Finalmente procurarei fazer uma breve reflexão sobre os desdobramentos dessas posições nos dispositivos clínicos postos em prática no espaço institucional do CPPL, sobretudo no que se refere àquele que denominamos grupo de pais.

"Um bebê é algo que não existe." Foi com essa frase curiosa que Winnicott surpreendeu a todos numa reunião científica da British Psychoanalytic Society, na década de 40, querendo dizer com isso que, ao encontrarmos um bebê, encontramos a maternagem, ou os cuidados maternos, e que sem eles não existiria - bebê algum. Winnicott falou, assim, do papel decisivo da maternagem para a construção do sujeito, aderindo à posição de que a vida psíquica não é dada, não é pura conseqüência de mecanismos biológicos e funcionais que independem da ação do outro. O outro, aqui tomado como o meio ambiente representado por aquele que cuida e materna, é o agente indispensável para a construção de um bebê.

Assim, um bebê não existe, a não ser que a mãe que cuida e materna o suponha e o invente. Uma mãe que cuida carinhosamente do seu bebê o frui e o cria. Aí reside para Winnicott o paradoxo da relação mãe-filho: a mãe (ambiente) torna possível o self em formação. É assim que poderíamos entender as formulações winnicottianas acerca das possibilidades de identificação da mãe com seu bebê e de sua capacidade de adaptar-se a ele para fazê-lo existir.

Para Winnicott a relação mãe-bebê constitui um espaço de experiência construído numa situação de dissimetria. Ou seja, a mãe introduz na relação uma "capacidade amadurecida" que a torna dissimétrica. No entanto, é interessante observar como num texto de 1960 (Winnicott, 1960) ele se refere à relação mãe-bebê como uma parceria mãe-bebê. Parece-me importante essa chamada porque diz de uma posição winnicottiana que valoriza, na construção do espaço de experiência, algo que vem do bebê enquanto necessidade, relativizando a arbitrariedade, digamos assim, da mãe na construção/invenção do seu - bebê4. O bebê winnicottiano é, portanto, um bebê com potencialidades e capacidades inatas para existir, que, em relação com o meio ambiente representado pelos cuidados maternos, participa ativamente da construção do espaço de experiência. A mãe winnicottiana, por outro lado, é uma mãe que acima de qualquer coisa se põe a tarefa de cuidar do seu bebê como se adquirisse, pela preocupação materna primária, a capacidade de desviar temporariamente o interesse do seu próprio self para o bebê (Winnicott, 1960).

Winnicott desenvolveu o conceito de mãe suficientemente boa para falar da mãe que desenvolve essa capacidade, e sobre ele vale tecer algumas considerações. No que pesem as imprecisões e ambigüidades geradas pelos sentidos que a terminologia adquire em português, mãe suficientemente boa nada tem a ver com mãe onipotente que se basta a si mesma, capaz de satisfazer plenamente o seu bebê. Longe disso, como compreendo, é uma mãe contingente, e o desempenho de sua função vai depender de suas condições psíquicas e de algumas formas de sustentação do meio ambiente. "A mãe é capaz de desempenhar esse papel se se sentir segura; se se sentir amada em sua relação com o pai da criança e com a própria família; e ao sentir-se aceita nos círculos cada vez mais amplos que circundam a família e constituem a sociedade" (Winnicott, 1960). Eu acrescentaria que o desempenho dessa função depende ainda das teorias que ela tem acerca do que é uma mãe, um filho, uma mulher, enfim, de todas as crenças construídas nos jogos de linguagem em que está inserida.

Resumindo, Winnicott concebe a relação mãe-bebê como uma área de experiência concernente aos dois. Construída por um bebê que procura - não que alucina, e isso é uma diferença fundamental - e encontra, quando a mãe apresenta algo no lugar mesmo em que ele esperava encontrar, fomentando-lhe a ilusão de que aquilo que lhe é externo foi uma criação sua5. Mas a ilusão não é uma experiência apenas do bebê, é também uma experiência materna. A mãe também se ilude. Se a ilusão do bebê é de que criou a realidade -a realidade é um achado, uma invenção -, a mãe acredita que pode identificar e satisfazer as necessidades dele, e não dela. Assim ela cria, acha, inventa ali um bebê quando ele lhe dá os sinais de que isso aconteceu. Ao mesmo tempo, ela cria, inventa ali uma mãe na relação com ele.

Coube a Winnicott, assim como a alguns outros psicanalistas, pôr um foco privilegiado na maternagem para a constituição do sujeito. O esforço de debruçar-se sobre os tempos primeiros da constituição do psiquismo trouxe a possibilidade de estender o campo psicanalítico a uma série de estados de sofrimento humano que a teoria da sexualidade e do Édipo não dariam conta. Não é - fácil manter essa posição winnicottiana, uma vez que é difícil abrir mão de uma certa normatização de que foram imbuídas as teorias da sexualidade e do Édipo em psicanálise. Os efeitos disso fazem-se sentir de várias maneiras. Um dos mais evidentes, ou o que mais nos interessa aqui, diz respeito à impossibilidade de positivar algumas formas de existência, que, embora se organizem para além ou aquém do Édipo, são narrados na negativa, já que ao Édipo é atribuído um lugar referencial na constituição do sujeito.

Na clínica do autismo foram inúmeros os efeitos dessa tradição. Tomemos como ilustração o exemplo da linguagem. Em seu texto pioneiro de 1943, Kanner (1997) descreveu os autistas como indivíduos sem linguagem e não hesitou em afirmar que, mesmo quando ela estava presente, não era usada para a comunicação. Para ele, não havia diferença alguma entre aqueles autistas que nada falavam e os que emitiam frases, repetiam trechos de música ou declamavam salmos, embora uma pesquisa que realizou trinta anos mais tarde tenha constatado que as crianças com maior evolução foram aquelas que apresentavam esse tipo de manifestação lingüística.

A afirmação de ausência de linguagem parece ter-se estendido a todos os demais processos psíquicos, descritos desde então como ausentes nos autismos, e, como bem chamou atenção Marie Christine Laznik-Penot (Laznik-Penot, 1997), marcou decisivamente várias gerações de terapeutas e professores que se ocuparam dos autistas ao longo desses quase cinqüenta anos. E, entre nós, psicanalistas, não podemos dizer que algo muito diferente aconteceu. Apesar de inseridos em diferentes tradições e filiações teóricas, poderíamos dizer que é quase consensual entre os psicanalistas, descrever o autismo como um colapso da vida psíquica, como uma patologia que se desenvolve na ausência de algumas das condições constituintes do psiquismo. Ora privilegiando os mecanismos internos, ora voltando o olhar para o meio ambiente, para as interações ou para as relações desejantes, dependendo do referencial teórico que se tome, é freqüentemente de um colapso que se vai falar. Assim, os autistas foram sendo descritos como "carapaça", como "fortaleza vazia", como seres fora do campo da linguagem e da cultura6. Essas mesmas idéias respaldaram as construções acerca dos pais dos autistas, desde as famosas "mães geladeiras" de Kanner, até as mães produzidas no campo psicanalítico: mães que não investem, não antecipam, não exercem a capacidade de sonhar (a rêverie materna), não conseguem atribuir significações ao filho etc. Os autistas e seus pais passaram a ser definidos pela negativa - sempre referidos a um modelo, o único positivado -, descritos pelo que não são, e não pelo que são, enquanto um modo particular de existir.

A cena de uma sessão de Manuel, um garotinho de 3 anos, e seu pai, a quem devo muito das formulações que faço aqui, parece-me uma boa ilustração do que estou dizendo. Manuel havia iniciado recentemente o seu tratamento no CPPL e participava de uma sessão de grupo com outras crianças, em que seu pai estava presente. Manuel entrou na sala e em seguida jogou pelo chão todos os brinquedos que havia num cestinho. Olhava fixamente para eles, quando a analista do grupo disse: "Eita! Caiu! Vamos apanhá-los?" Manuel prontamente recolheu todos os brinquedos, e, construindo uma brincadeira, voltou a derrubá-los e apanhá-los algumas vezes mais. Logo em seguida convidei os pais a irmos a uma outra sala para dar continuidade à sessão de "grupo de pais"7. O pai de Manuel nada comentou sobre o que ocorreu nessa sessão durante algum tempo. Era muito reservado, avesso a qualquer intervenção e vivia reclamando da escola, dos profissionais médicos que não sabiam dar diagnóstico e das babás que maltratavam as crianças na ausência dos pais. Esse "grupo de pais" é particularmente acolhedor, e aos poucos ele foi se tornando menos "arisco", como ele se dizia. Até que um dia me contou o seguinte: "Não gostava de vir para esse grupo, não sabia o que vinha fazer aqui. Mas agora já entendo. Aqui nós podemos ver nossos filhos de outra maneira. Desde o dia em que descobri que Manuel podia entender o que se dizia para ele [referia-se ao dia em que a psicanalista o convidou a apanhar os brinquedos], tudo mudou entre mim e ele. Eu - sempre achei que não adiantava pedir nem mandar ele fazer as coisas, porque ele não entenderia mesmo. O grupo tem me ajudado muito a viver com Manuel".

Essa fala provocou-me de forma particular e foi sob seu impacto que passei a questionar mais enfaticamente qualquer posição que tente descrever a relação "pais-filhos autistas", pela ausência, na negativa. Estava claro que esse pai produziu uma teoria acerca do filho. Longe de não poder inventá-lo, pelo contrário, o havia inventado como todos os pais fazem com seus filhos, atribuindo-lhe significações, tomando-o como alvo de suas projeções, de seus desejos e crenças.

Propus-me então a procurar, construir e adotar uma narrativa que tornasse possível falar dos autistas e seus pais, positivando suas particularíssimas formas de existência. Assim, retomando alguns dos pressupostos que expusemos acima, passei a propor que, na relação dos pais com seus filhos autistas, não é que eles não inventem um bebê, nem tampouco que deixem de se inventar como pais. Longe disso. Nessa narrativa inventa-se um bebê: estranho, ameaçador e imprevisível. O bebê, por sua vez, não é uma fortaleza vazia, uma carapaça fechada em si mesma. Ele sofre os efeitos e é, de certa forma, co-autor da construção desse modo particular de existir. Ao mesmo tempo, com esses bebês, os pais também se inventam estranhos e ameaçadores para eles. Constroem assim um discurso de que não são capazes de entender seus bebês e satisfazê-los, ou, ao contrário, que são os únicos que sabem sobre os filhos, os únicos capazes de cuidar deles.

Vale salientar ainda o caráter muito particular dessas invenções. Elas são, com freqüência, profundamente rígidas, parecem ter uma tendência a transformar-se em verdadeiras crenças e terminam por sofrer uma espécie de naturalização, engendrando um discurso muito comum em que tudo que acontece com a criança é atribuído ao autismo, à "doença". Uma outra cena, a de uma sessão de Márcio, ilustra essa tendência à naturalização das crenças a que estou me referindo. Cláudio, um dos pais participantes do grupo, me contava que "os meninos" têm muitas manias, e isso é próprio da "doença". A última "mania" de Márcio, seu filho de 6 anos, era deitar-se sobre a mãe, levantar-lhe a saia e ficar se balançando sobre ela. Ele só veio a se dar conta dos sentidos que poderiam ser atribuídos à tal "mania" quando, no grupo, um outro pai deu uma gargalhada e disse que Márcio não tinha nada de besta. Ele riu, muito surpreso, e afirmou nada ter dito ao filho até então, porque, segundo entendia, nada do que dissesse teria efeito, uma vez que o que ele fazia era próprio de sua "doença".

A tentativa de compreender os movimentos que induzem à naturalização dessas crenças, tornando-as quase sempre tão rígidas e - inquestionáveis, que causam uma espécie de cegueira e uma surpreendente surdez para os dados da experiência, levou-me a retomar Winnicott e suas formulações acerca do espaço de ilusão e das experiências transicionais8.

Winnicott atribui às experiências de ilusão as bases da criatividade, e, segundo ele, elas podem representar uma raiz privilegiada de agrupamento entre os homens quando compartilhadas nas religiões, nas artes e em outras experiências culturais. Se um adulto reivindica veracidade para suas experiências ilusórias, exigindo demais da credulidade do outro, diz ele, o tachamos de louco, se não, podemos compartilhar ou sobrepor nossas experiências ilusórias às suas. Daí sua conhecida idéia de que, uma análise acontece na superposição de duas áreas do brincar: a do analisando e do analista. Assim, as relações construídas dessa forma preservam uma dimensão de áreas de experiências, em que o novo pode sempre aflorar, em que há certa tolerância para o imprevisível, para o que surpreende e transforma. Nas palavras de Winnicott, algo pode ser buscado porque há a esperança de ser encontrado, achado. Como diria Deleuze, podemos construir um problema, antes de encontrar a solução (Deleuze, 1998). Mas e quando o imprevisível é só o que se pode esperar? Lembro-me de um pai que dizia acerca do filho de 6 anos: "É melhor não esperar nada dele. Ele é tão imprevisível, que nos deixa loucos. Pelo menos, se nada esperarmos, ou se esperarmos que ele faça sempre a coisa errada, nossas chances de sobreviver são maiores".

Ao ouvir esse pai, supus que se remontarmos às relações primárias, essa exposição ao absolutamente imprevisível, ao que irrompe incessantemente como estranho é tão intolerável para o bebê quanto para os pais. De forma similar, ambos parecem tentar assegurar-se, desenvolvendo mecanismos que parecem transformar o mundo em algo absolutamente previsível e controlável9, acreditando aumentar, como nos disse o pai, as chances de sobrevivência diante do imprevisível e do estranho em sua assustadora radicalidade. Assim, as crenças naturalizadas dos pais poderiam ser uma espécie de contraface dos rituais obsessivos das crianças autistas que tendem a transformar o mundo em algo rígido e controlável10. Essas crenças tornam-se de tal forma indiscutíveis, que os dados da experiência parecem não ter ressonância alguma, como se a relação pais-filhos perdesse a dimensão de "espaço de experiência", a que se refere Winnicott.

Isso jogou uma luz diferente sobre nossa escuta dos movimentos de resistência dos pais diante dos avanços das crianças durante o tratamento, tão recorrentes na clínica dos autismos. Se, por algum tempo, pudemos compreendê-los pelas mais diversas vias, entre elas, as das competições e disputas conosco atualizadas - na transferência, esses movimentos nos revelam agora o horror dos pais, por não conseguirem reconhecer o filho fora do âmbito das crenças que foram construídas para tornar possíveis suas existências.

Nessas circunstâncias, a sujeição radical é um traço marcante da transferência dos pais. As relações em torno de si e de seus filhos parecem perder a dimensão criativa a que se refere Winnicott, e o "meio ambiente", personificado nas palavras dos médicos, terapeutas e outros especialistas, passa a ter uma feição imperativa que exige uma adaptação compulsória. Esse lugar, atribuído aos que cuidam ou tratam da criança, parece igualmente formulado quer por uma via positiva - o que falam é imperativo -, quer por uma via negativa - o que falam de nada serve. Nesse sentido, tudo de que falamos, escrevemos e produzimos na cultura sobre autismo contribui para a construção das crenças desenvolvidas pelos pais acerca de si e de seus filhos autistas.

Essas idéias nos levam a pensar o espaço terapêutico como o lugar da desconstrução, da introdução do questionamento e da dúvida onde há apenas certezas rígidas e imutáveis. O lugar em que se devolve às crenças a dimensão de crenças que, como tais, nada têm de naturais, de imutáveis. O lugar em que se torna possível encontrar possibilidades, narrativas diversas onde se supunha haver apenas uma.

Nessa perspectiva, o "grupo de pais" parece-nos um espaço privilegiado no tratamento das crianças autistas no CPPL. Não se trata de um grupo de terapia ou análise dos pais, embora não se possa duvidar de seus efeitos terapêuticos. O "grupo de pais" é, antes de tudo, um espaço privilegiado de desconstrução e construção, em que os pais encontram interlocutores até então inexistentes e constróem uma espécie de esboço de tecido social em que possam sentir-se inseridos com suas crianças. É, ao mesmo tempo, o lugar da desconstrução e construção de um saber próprio sobre eles e seus filhos, mas também sobre o mundo, sobre esse mundo que, à luz da problemática dos filhos, muitas vezes é tomado como insistente e cruel perseguidor. Parafraseando Maria Rita Kehl11, diria que o "grupo de pais" é o espaço em que são construídas relações fraternas, indispensáveis para relativizar os efeitos avassaladores de uma transferência marcada pela sujeição radical à palavra do outro. É, portanto, o lugar do encontro com o familiar, da possibilidade de construção de um campo identificatório que os desloque da condição de estranheza permanente em que se vêem postos no convívio com a família e com a sociedade, em que impera a lógica das identidades - viram simplesmente pais de autistas. É no âmbito das relações estabelecidas no grupo que os pais podem construir laços identificatórios e dar conta das diferenças entre as crianças, e - entre eles também. Quando percebem que, embora com sintomas semelhantes, cada criança é singular, como o são todas as pessoas, absolutamente particulares, respondendo a um nome, jamais a uma entidade psicopatológica. Da mesma forma, também eles se descobrem únicos, embora compartilhem de situações semelhantes, porém jamais com as mesmas significações para todos.

É importante observar que esse processo de desconstrução e construção se dá num jogo permanente de tensões. Coexistem um movimento ao aprisionamento da rigidez das crenças, ao assujeitamento transferenciai em que o outro - personificado pelo analista, pela instituição, pelo médico, pela sociedade ou qualquer outra instância - é posto no lugar imperativo de que falamos e um outro movimento que permite a indagação, o questionamento, a busca de novas saídas e a construção de novas narrativas.

Jamais me esquecerei da fala de um pai, e com ela gostaria de encerrar este texto. Dizia-me ele: "Esta clínica deveria mudar de nome. Em vez de CPPL, deveria se chamar CPF - Clínica Pais e Filhos. Porque aqui é o lugar em que descobrimos que podemos ser pais de nossos filhos. É o lugar em que descobrimos que precisamos e podemos ter uma vida".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Deleuze, G. (1998). Diálogos. São Paulo, SP: Escuta, pp.10 e 11.         [ Links ]

Kanner, L. (1997). Os distúrbios autísticos do contato afetivo. In P. Rocha (org.). Autismos. São Paulo, SP: Escuta.         [ Links ]

Laznik-Penot, M.-C. (1997). Rumo à palavra. São Paulo, SP: Escuta.         [ Links ]

Meltzer, D. et al. (1980). Exploration dans le monde de l'autisme. Paris, Payot.         [ Links ]

Rocha, P. (1997). Terror do mundo novo ou a interpretação autista do velho mundo. In P. Rocha (org.). Autismos. São Paulo, SP: Escuta.         [ Links ]

Tustin, F. (1981). Estados autísticos em crianças. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1981.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1951). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1978.         [ Links ]

_____. (1993). A família e o desenvolvimento individual. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1993, pp.3 e 21.         [ Links ]

_____. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago.         [ Links ]

 

 

Recebido em 04/2000.

 

 

NOTAS

1 Este trabalho foi apresentado pela primeira vez no I Simpósio sobre Autismo e Psicoses Infantis realizado em novembro de 1999 em Recife e guarda ainda o tom coloquial da versão original.
2 Agradeço a Teresa Campello as constantes conversas que temos mantido sobre esse assunto, a leitura cuidadosa do texto e as valiosas sugestões dadas.
3 Agradeço a Teresa Pinheiro as idéias que trocamos a esse respeito quando de sua vinda a Recife para participar de uma jornada do CPPL. Foi a partir dessa conversa sobre estados melancólicos e autismos que pude desenvolver com maior clareza o argumento de que há investimento parental nos autismos, questão que me persegue há algum tempo e, com certeza, continuará me instigando, uma vez que não a esgotarei neste texto e pretendo desenvolvê-la em trabalhos posteriores.
4 Sobre isso, ver "O mito psicanalítico do desamparo", de Jurandir Freire Costa, texto apresentado no V Fórum Brasileiro de Psicanálise, realizado em julho de 1999 em Recife. Esse texto está disponível em disquete produzido pela organização do V Fórum Brasileiro de Psicanálise.
5 O conceito de ilusão, espaço de ilusão, como sabemos, ocupa um lugar de muita relevância na teoria winnicottiana. Sobre isso, ver Winnicott, 1951.
6 Sobre as diversas concepções de autismo, ver a revista Autismo, editada pela Letra Freudiana, Rio de Janeiro, RJ: Revinter, 1995.
7 O "grupo de pais" é um dos espaços terapêuticos do Serviço de Terapia Intensiva do CPPL, destinado ao tratamento das crianças autistas e seus pais. O grupo funciona em dois tempos: um primeiro momento, em que permanecemos na sala junto com as crianças e seus analistas de grupo, e um segundo, em que os pais dão continuidade à sessão em outro ambiente, enquanto as crianças permanecem em sua sala. Esse atendimento acontece geralmente em sessões de uma hora, duas vezes por semana.
8 As noções de espaço, objetos e experiências transicionais são uma das contribuições mais originais e criativas de Winnicott para a psicanálise. Sobre isso, ver Winnicott, 1975.
9 Tornar o mundo controlável e previsível é a função dos objetos autísticos, sempre inanimados e, portanto, susceptíveis de controle absoluto. Sobre isso, ver Tustin, 1981, p.129, e Rocha, 1997, p.106.
10 Meltzer refere-se a esse aspecto da organização psíquica dos autistas quando desenvolve suas formulações acerca dos rituais obsessionais nos autismos (Meltzer et al, 1980). Paulina Rocha também aborda a questão do controle nos autismos, utilizando o conceito de pulsão de dominação (Rocha, 1997).
11 Maria Rita falou sobre esse assunto em sua conferência "Existe uma função fraterna?", proferida na XVI Jornada do Círculo Psicanalítico de PE, em outubro de 1999, em Recife.