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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.6 no.11 São Paulo  2001

 

DOSSIÊ

 

Entre o pedagógico e o terapêutico Algumas questões sobre o acompanhamento terapêutico dentro da escola1

 

Between the educational and the therapeutical-some question on therapeutic follow-up in primary schools

 

 

Vendiana FraguasI; Manoel Tosta BerlinckII

IPsicóloga, psicanalista e acompanhante terapêutica; mestranda pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP e pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental (PUC-SP)
IISociólogo, psicanalista, Ph.D. pela Universidade Cornell, professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, dirige o Laboratório de Psicopatologia Fundamental (PUC-SP)

 

 


ABSTRACT

O presente trabalho pretende discutir unia prática que vem surgindo recentemente em algumas instituições de ensino particulares: o acompanhamento terapêutico (AT) dentro da escola. Trata-se de escolas regulares (ou seja, para crianças "normais") que têm uma proposta de inclusão de crianças com graves distúrbios do desenvolvimento. Nessa perspectiva da inclusão, o acompanhante terapêutico teria a íunção de fazer a integração da criança com o restante do grupo e com o professor, como uma forma de ajudá-la a se vincular ao processo de aprendizagem. Nota-se que existe, então, um entrecruzamento entre objetivos pedagógicos e terapêuticos. Pelo relato de uma experiência de AT dentro da escola, nos propomos a discutir algumas questões relativas à função terapêutica desse trabalho.

Pedagogia; psicoterapia; acompanhamento terapêutico; escola; psicanálise


ABSTRACT

The present paper comments oh the clinical modality of thev.ipeutic follow-up, or therapeutic monitoring, recently carried in a number of private schools thai are basically structured for "normal" children but which also propose to include children with serious developmental disturbances. In these settings, the therapeutic monitor is responsible for processing the inclusion, or integration, ol the handicapped child into his or her class and with his or her teachers, with the objective of helping the child to fit into and accept the learning process. There is therefore a combination of educational and therapeutic objectives. The article is based on the account of an experience in therapeutic monitoring inside a school, and discusses issues related to the therapeutic function involved in this type of work.

Education; therapeutic monitoring; psychotherapy; school; psychoanalysis


 

 

O acompanhamento terapêutico é uma prática originalmente pensada como recurso auxiliar no tratamento de pacientes psicóticos, com o objetivo de inserção destes pacientes no universo social. Constitui um tratamento indicado para períodos pós-crise, com uma proposta de "sair às ruas" com o paciente, ao invés de mantê-lo o tempo todo restrito ao espaço dos manicômios. O acompanhante terapêutico seria o mediador e um elemento facilitador neste processo de reinserção social.

Mais recentemente, o acompanhamento terapêutico tem sido pensado como recurso auxiliar no processo educacional de crianças com graves distúrbios de desenvolvimento. Algumas escolas regulares2 da rede particular têm desenvolvido projetos de inclusão de crianças "portadoras de necessidades educativas especiais" (Assali et al., 1999), e aí se insere o trabalho do AT enquanto um agente facilitador do processo inclusivo. Através de seu trabalho, o AT cria as condições para que a criança possa freqüentar a escola, beneficiando-se do processo educativo.

Esse é um projeto tendo afinidade com a proposta que historicamente deu origem ao acompanhamento terapêutico, pois o processo de inclusão promove a inserção destas crianças na escola, garantindo-lhes, assim, um lugar na sociedade.

Foi a partir de uma experiência de acompanhamento terapêutico desenvolvido junto a uma criança diagnosticada como autista, dentro de uma escola regular, que surgiram as questões que serão abordadas neste texto.

Inicialmente seria importante localizar o leitor a respeito da proposta da escola em questão. Trata-se de uma pré-escola regular, da rede particular, em que se trabalha com crianças especiais (entenda-se, crianças com algum tipq de deficiência mental, com paralisia cerebral, crianças psicóticas ou autistas), dentro de uma proposta inclusiva. Cada classe de crianças "normais" recebe uma criança especial, de acordo com critérios como idade, tamanho e estágio de desenvolvimento cognitivo/afetivo. No caso de crianças psicóticas, autistas ou lesionadas cerebrais graves, existe a proposta de um trabalho de acompanhamento terapêutico destas crianças, por apresentarem maior dificuldade de interação no processo de aprendizagem.

O trabalho do AT dentro da escola consiste em um acompanhamento da criança durante todo o período escolar, dentro e fora da sala de aula, procurando integrá-la ao grupo de crianças, assim como envolvê-la nas atividades propostas pelo professor, sempre levando em conta seus limites e suas potencialidades.

Embora esse trabalho fosse denominado um acompanhamento terapêutico, a escola não colocava a questão terapêutica como objetivo principal de sua proposta, e sim a adaptação da criança ao processo de aprendizagem. No entanto, como foi possível observar, este trabalho teve efeitos terapêuticos importantes para a criança em questão.

Pensando na proposta dessa escola pode-se levantar a seguinte questão: como se entrelaçam os objetivos pedagógicos com os efeitos terapêuticos observados a partir da intervenção de um AT?

A apresentação do caso especifica esta questão.

Quando foi iniciado o trabalho com Pedro ele tinha 5 anos e quase não falava. Não tomava a iniciativa da fala a não ser quando interpelado por alguém e, mesmo nestes casos, respondia apenas com uma palavra. Não apresentava falas próprias e não usava o pronome "eu" para referir-se a si mesmo. Preferia brincar sozinho a entrar em contato com outras crianças. Passava muito tempo entretido consigo mesmo, fazendo movimentos repetitivos, como bater as mãos ou algum objeto no chão ou na parede.

No entanto, apresentava um tipo de produção linguageira conferindo-lhe certo status dentro da escola: Pedro cantava músicas. Ele tinha um vasto repertório e, muitas vezes, cantava músicas relacionadas com determinados contextos. Assim, um dia, quando a professora conversava com as crianças sobre a falta de verbas do governo para manter os programas infantis da TV Cultura, Pedro cantou: "Ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí..."

A música foi um instrumento fundamental para a construção do vínculo entre Pedro e a AT, num primeiro momento. Ele cantava um trecho de alguma música, e a AT continuava a cantar com ele, ou então ensinava uma música nova, e ele aprendia rapidamente e passava a cantá-la também. A AT procurava pensar em músicas dizendo respeito a alguns temas trabalhados em sala de aula ou tendo a ver com brincadeiras propostas pela professora ou mesmo pelas crianças.

Além disso, quando a AT percebia que a música cantada por Pedro tinha alguma ligação com o conversado ou com alguma brincadeira, restituía a ele o sentido que parecia ter a sua cantoria, ou seja, ela lhe dizia entender aquela manifestação como tentativa de compartilhar com o grupo aquele momento. A música tornou-se, portanto, um elemento de ligação entre Pedro, a AT e o grupo.

Estabelecer um vínculo com Pedro constituía pré-condição para esse trabalho. Não seria possível integrá-lo à proposta pedagógica da escola se não pudesse inicialmente se vincular à AT. A demanda da escola em relação ao trabalho de um AT era decorrente do pouco preparo do professor para lidar com crianças com psicopatologias graves. O papel da AT seria sensibilizar o professor para a singularidade da criança, facilitando uma intervenção pedagógica junto a ela. Cuidando do grupo como um todo, o professor não podia oferecer à criança especial uma atenção mais individualizada, e aí entrava a AT. Como dizia a coordenadora da escola, a função da AT era ser "a ponte" entre Pedro, o grupo de crianças e o professor. Mas antes de tudo era necessário ter acesso a esta "ponte"...

Nos primeiros contatos, Pedro parecia muito desconfiado, dirigia seu olhar para a AT, mas, quando percebia que esta também o olhava, desviava o olhar. A AT sempre se sentava a seu lado na roda feita com as crianças no começo da aula. Aos poucos, foi perdendo o receio no contato com ela, a tocava, pegava sua mão, começava, assim, a conhecê-la.

Conquistar Pedro era uma preocupação da AT, que sempre propunha brincadeiras contendo aquilo de que mais gostava, como jogar bola, por exemplo. Aos poucos surgiu um prazer em brincar com a AT. Mas, ao mesmo tempo, havia dificuldades na comunicação verbal.

A AT buscou maneiras de se comunicar com Pedro, apesar de, num primeiro momento, não obter respostas às suas interpelações. Por exemplo, todos os dias, durante o período escolar, quando a AT se ausentava durante 15 minutos para tomar café, ela lhe dizia: "Olha, Pedro, vou tomar café e já volto, tá bom?"

Durante semanas ele nada respondia, mas a AT insistia e o interpelava da mesma maneira todos os dias, na esperança de, em algum momento, obter uma resposta. Certo dia, quando ela lhe disse "Vou tomar café e já volto, tá bom?", ele respondeu: "Tá".

A partir desse episódio, Pedro começou a responder às perguntas da AT. Nestas respostas começou a surgir o uso do pronome "eu" e de expressões como "eu quero", algo inédito até então. Vale ressaltar que até então Pedro não era capaz de tomar a iniciativa da fala, o que ocorreu num momento seguinte.

Estavam todos no parque, era hora do recreio, e a AT notava Pedro bastante entretido consigo mesmo, isolado, fazendo movimentos repetitivos. A AT aproximou-se, angustiada, pensando de que forma poderia tirá-lo daquele estado... De repente, ele olhou para ela e disse: "Eu quero..." Então a AT perguntou, contendo a surpresa: "O que você quer, Pedro?" "Quero colo", ele respondeu. Então ela lhe disse "Vem!", abrindo os braços. Ele sentou em seu colo, ficou ali por alguns instantes e, em seguida, foi brincar no parque, próximo às outras crianças.

Neste momento eram contados dois meses de trabalho.

Nos meses seguintes ocorreram mudanças significativas na fala de Pedro e com uma rapidez impressionante. Surgiam a cada dia mais falas espontâneas, em forma de pedidos, queixas e construção de frases.

As mudanças notadas em Pedro na escola eram percebidas também em casa, quando sua mãe narrava, bastante surpresa, as transformações percebidas. Esta surpresa tinha um misto de contentamento e de descrença quanto às possibilidades de Pedro. Embora Pedro apresentasse alterações importantes em sua fala e em seu comportamento, havia uma atitude ambivalente de seus pais em reconhecer sua melhora. Mesmo os ganhos no rendimento escolar eram subestimados e pouco valorizados. Era possível notar uma dificuldade dos pais em atribuir sentido às produções linguageiras e às importantes modificações no comportamento de Pedro. A AT realizou, então, todo um trabalho no sentido de sensibilizá-los para o significado destas mudanças.

Havia momentos, podendo durar dias ou até semanas, em que Pedro estava mais ensimesmado, falando menos, muito entretido com os movimentos repetitivos. Durante alguns períodos ficava muito triste, apresentando crises de choro e bastante angustiado. Em algumas ocasiões mais específicas era possível identificar o motivo de sua tristeza. Quando sua mãe viajava, por exemplo, ele ficava muito triste, chorava e, quando a AT lhe perguntava sobre o motivo do choro, ele dizia: "Mamãe".

Nesses momentos havia uma preocupação em ajudar Pedro a nomear o vivido. Houve um episódio bastante marcante neste sentido:

A mãe de Pedro sempre atrasava cerca de meia hora para vir buscá-lo na escola, e Pedro ficava muito triste. A AT notou sua angústia toda vez que se aproximava a hora de ir para casa. Um dia realizavam uma atividade física, e, de repente, Pedro parou, sentou-se e começou a chorar. A AT perguntou o que estava acontecendo, e ele disse: "Eu quero a mamãe". A AT mostrou o relógio dizendo: "Daqui a pouco a aula vai terminar, e mamãe virá buscá-lo". Na hora da saída, o tempo foi passando, e a mãe de Pedro não chegava. Ele começou a chorar, a AT perguntou novamente o que estava acontecendo, e ele apontou para o relógio. Entendendo sua tristeza devida ao atraso da mãe, a AT recomendou que não se preocupasse, ela estava demorando, mas viria buscá-lo. Então ele se acalmou, e logo sua mãe chegou.

Dias depois, a mãe narrou o episódio contando ter Pedro dito a seguinte frase, enquanto voltavam para casa: "Você demorou muito. Eu não quero ficar esperando você".

Quando Pedro passou a falar o que queria e sentia, mudou a forma como era visto em casa e na escola. Aquela criança silenciosa, passiva, já não era a mesma; tornara-se alguém podendo se queixar e dizer o que queria. Haviam-se passado, então, seis meses de trabalho.

Com isso, as crianças começaram a se interessar mais por Pedro. Buscavam aproximar-se dele, mas cabe observar que, quando queriam falar com ele, primeiro procuravam a AT. Esta os estimulava a se dirigirem diretamente a ele.

Lentamente, Pedro começava a investir um pouco mais no contato com as crianças e com outros adultos. Delicadamente, se aproximava das crianças, tocava-as, pedia a elas parte do lanche, ou um brinquedo pelo qual se sentia atraído. Começava também a pedir coisas a outros adultos dentro e fora da escola.

As pessoas a sua volta começaram a perceber que Pedro não só podia cantar, como também podia falar!

A música continuou a ser um meio pelo qual Pedro podia se expressar. E foi com ela que pôde falar de sua tristeza a respeito da separação da AT, quando esta deixava o trabalho naquela escola.

Na véspera do último dia de trabalho da AT na escola, Pedro brincava com um caminhão de brinquedo e cantava assim: "Eu hoje fui na praça e encontrei um caminhão..." Pela melodia, foi possível identificar a música que ele cantava: era uma "versão" de A praça. Na verdade, cantava o trecho que na música corresponde ao verso "Hoje eu acordei com saudades de você". Cantava apenas aquele trecho repetidas vezes. Tendo se dado conta disso, a AT decidiu continuar a canção e então chegou-se ao trecho mais significativo:

"A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim, tudo é igual, mas estou triste, porque não tenho você perto de mim".

Nesse dia, uma outra profissional que iria substituir a AT atual estava presente (isso faz parte do procedimento de "passagem" de um AT para outro). A AT atual foi embora mais cedo e Pedro ficou em companhia de sua futura AT. No dia seguinte a nova AT conta que, num determinado momento, Pedro começou a chorar. Então ela perguntou a ele:

AT: "O que foi, Pedro?"

Pedro: "Tô triste".

AT: "Por que está triste?"

Pedro: "A tia Ven foi embora".

Pela primeira vez Pedro falou o nome da AT, justamente quando se deu conta de sua ausência. E assim se fazia presente a tristeza pela sua saída...

Gostaríamos de retomar neste momento a questão apontada anteriormente a respeito da relação entre os objetivos pedagógicos e os efeitos terapêuticos decorrentes do trabalho de acompanhamento terapêutico.

Antonucci (1994) refere-se ao acompanhamento terapêutico com crianças, apontando algumas peculiaridades distinguindo-o do acompanhamento com pacientes psicóticos adultos. Com estes, a proposta seria uma "ressocialização" do paciente, buscando recuperar aspectos perdidos de sua personalidade. Refere-se aqui a pacientes psicóticos tendo seu primeiro surto numa idade adulta.

No caso de crianças com distúrbios como autismo ou esquizofrenia infantil, o trabalho seria criar condições para a ocorrência de uma estruturação da personalidade.

No trabalho com Pedro, a ênfase era na construção de algo que ainda não estava lá, e não num trabalho de recuperar algo já conquistado e perdido posteriormente.

Uma outra peculiaridade desse trabalho, apontada pelo mesmo autor, seria que no caso do acompanhamento terapêutico com crianças "se faz necessário lançar mão não só de expedientes terapêuticos como também pedagógicos" (Antonucci, 1994, p. 551). Ele entende como "conduta terapêutica" do AT toda conduta tendo como conseqüência modificações no funcionamento mental do paciente, e como "conduta pedagógica" toda conduta visando a adaptação ao contexto social.

As intervenções junto a Pedro seriam então condutas "terapêuticas" ou "pedagógicas"? Que funções foram cumpridas pela AT, e quais seus efeitos?

Usando as formulações de Antonucci, a proposta da escola era bem clara: a conduta da AT deveria ser "pedagógica", pois visava uma adaptação de Pedro a sua rotina, assim como a sua proposta de ensino.

No entanto, a pré-condição para responder a esse objetivo "pedagógico" seria a possibilidade de estabelecer um vínculo com Pedro. Proporcionar as condições necessárias para que Pedro se vinculasse à AT pode ser considerada uma conduta do tipo "terapêutica", pois, no caso desta criança, a possibilidade de se vincular a alguém representa uma modificação importante em seu modo de funcionamento mental.

Desse modo, essa distinção entre condutas terapêuticas e pedagógicas serve apenas para fins didáticos, pois há momentos em que estas duas condutas parecem ser indissociáveis.

Kupfer (1997) formula importantes considerações a respeito da relação existente entre o pedagógico e o terapêutico, lançando uma luz sobre esta questão quando afirma que a primeira proposta de tratamento de uma criança psicótica pode ser considerada educativa. Ela se refere ao caso de Victor, menino encontrado num bosque na França, sendo, hoje, provavelmente diagnosticado como psicótico. Ele foi submetido ao chamado "tratamento moral", que consistia em educar a criança. O tratamento era qualificado com o termo moral porque incidia sobre as faculdades mentais, e não sobre o corpo. Afirma Kupfer:

"Tratamento e educação nasceram juntos para cuidar de crianças com problemas graves, e agora se enlaçam novamente para cuidar dos fracassos escolares. Parece não ser mesmo possível desenlaçálos, já que a criança moderna é, por definição, escolar" (Kupfer, 1997, p. 56).

A inclusão escolar é um dos eixos de sua proposta de uma educação terapêutica, definida como "um conjunto de práticas que aliam educação e tratamento para crianças com graves distúrbios do desenvolvimento" (Kupfer, 1997, p. 57).

Kupfer pergunta-se por que a inclusão escolar, enquanto possibilidade de circulação social, pode ser terapêutica. Responde a isso introduzindo a hipótese de que ao dar à criança um lugar na escola se faz uma "atribuição imaginária de lugar social".

Ao indicar à criança um lugar social, atribui-se a ela um lugar de sujeito. Neste tipo de intervenção existe uma aposta imaginária do adulto nas possibilidades da criança, que, por sua vez, pode ou não responder a este investimento, de acordo com seus recursos.

Mas há ainda um outro eixo dessa proposta trabalhando sobre as falhas que estas crianças (com quadros de psicose, autismo e alguns tipos de deficiência) apresentam no registro simbólico. Uma educação terapêutica, nesse sentido, deveria oferecer a elas "(...) palavras e produções da cultura, para permitir que daí advenha algo de significante, de simbólico. Para que um sujeito possa vir a se dizer, precisará de palavras, ou da música, ou do gesto na dança e no teatro" (Kupfer, 1997, p. 59).

As formulações de Kupfer remetem-nos a uma determinada conduta adotada pela AT no caso relatado: o investimento na possibilidade de Pedro vir a falar, com o objetivo de tornar possível para ele comunicar-se com as pessoas por meio de um código compartilhado. Por um lado, esta conduta visava uma adaptação da criança ao ambiente escolar, mas, por outro, não é possível subestimar o alcance terapêutico deste tipo de investimento.

Ao mesmo tempo, o trabalho com a música - produção da cultura - fornecia a Pedro material simbólico para que pudesse vir a falar de seus sentimentos, como aconteceu no episódio da saída da AT da escola.

O texto de Laznik-Penot (1997) traz alguns apontamentos semelhantes aos de Kupfer. A autora relata sua experiência clínica com três crianças autistas, e aponta como algo fundamental neste trabalho a escuta atenta aos enunciados desses pequenos sujeitos. Se tomarmos como mensagem as produções linguageiras destas crianças, isso terá como efeito, a posteriori, o reconhecimento, pela criança, de que ela é o agente dessa fala. Mas, para se atribuir sentido a estas produções, é necessário supor que existe diante de nós um sujeito, ou seja, é necessária uma aposta imaginária.

Nos relatos de Laznik, o tratamento dessas crianças tinha como foco o processo visando a entrada da criança no universo da linguagem e, concomitantemente, sua entrada no circuito das trocas afetivas com outros seres humanos.

Portanto, o fato de Pedro conseguir fazer uso de uma fala própria, expressando seus quereres, suas queixas e seus sentimentos pode ser considerado um efeito terapêutico muito próximo do visado por Laznik no tratamento de suas crianças.

Quando avançamos nessas questões surgem algumas interrogações a respeito da prática do acompanhamento terapêutico. Quais os seus objetivos, quais as suas funções, qual a eficácia terapêutica deste tipo de intervenção?

Fernandes (1991) e Cenamo et al. (1991) fazem um relato sobre suas experiências enquanto ATs no Hospital-Dia A Casa. Os autores indagam sobre quais seriam as funções do AT, tentam sistematizá-las e se perguntam a respeito do caráter terapêutico das mesmas.

Em Cenamo et al., por exemplo, encontramos a seguinte colocação:

"Seguindo a linha de pensamento de Renato Mezan, pode-se concluir que a finalidade do acompanhamento terapêutico está muito mais próxima do que ele chama de psicoterapia, do que de psicanálise" (Cenamo et al., 1991, p. 190).

Tomando como referência o texto de Mezan (1988) intitulado "Psicanálise e psicoterapia", Cenamo et al. apontam que a psicanálise apóia-se sobre três elementos: a abstinência, a interpretação e a transferência. Os autores tentam transpor estes elementos para o acompanhamento terapêutico.

Para eles, nessa prática, a abstinência não seria nem da sugestão nem da ação, mas do desejo pessoal do AT. Quanto à transferência, esta não é interpretada, mas sim manejada, ou seja, utilizada para tornar possível o cumprimento da tarefa do AT.

Quanto à interpretação, argumentam não caber ao AT interpretar o discurso ou os jogos do paciente. O AT se utilizaria de atitudes interpretativas, ou seja, atitudes ou comportamentos ajudando o paciente a discriminar algo de seu mundo interno.

Com base nessas afirmações, é possível refletir sobre o trabalho desenvolvido junto a Pedro dentro da escola. Nos momentos em que a AT restituía a Pedro o sentido contido nas músicas cantadas, pode-se falar numa atitude interpretativa. Pode-se ir um pouco além e falar de intervenções constitutivas de subjetividade.

Duas observações podem ser feitas a respeito do texto de Cenamo et al A primeira, em relação à questão da abstinência do desejo do AT neste trabalho. Quando falam em abstinência, os autores estão tomando como parâmetro o trabalho com uma criança neurótica. Pensando no trabalho com Pedro, se o desejo da AT não estivesse em jogo, ou seja, se não houvesse uma aposta de que Pedro seria capaz de se comunicar, dificilmente seriam observados os efeitos terapêuticos relatados. A outra diz respeito à aproximação entre o trabalho de acompanhamento terapêutico e a psicoterapia, e o afastamento em relação à psicanálse.

Para Fédida, a psicoterapia seria uma "especificação e uma complicação técnica da análise" (Fédida, 1988, p. 38). Ele refere-se a situações em que não é possível trabalhar apenas com a regra fundamental da livre associação, casos que demandam outros tipos de intervenção para além da palavra. Fédida cita situações clínicas em que, se não houvesse uma elasticidade da técnica, não seriam garantidas as condições necessárias para a continuidade do tratamento. O autor não considera que esta elasticidade da técnica seja contraditória com os fundamentos do tratamento psicanalítico, mas com certeza tornam o trabalho do analista mais difícil...

Pode-se dizer, então: o acompanhamento terapêutico é uma psicanálise complicada. Complicada porque, neste trabalho, o lugar do analista está sempre em questão e precisa ser constantemente reinventado.

Terapéia, em grego, significa o cuidado exercido sobre Eros doente. A função do terapeuta - ou seja, daquele que tem a responsabilidade pela terapéia - é dedicar uma atenção delicada ao paciente como se ele fosse um instrumento musical precisando reencontrar sua harmonia. Assim, é possível pensar a função do AT.

Para concluir, gostaríamos de citar uma passagem do texto de Maria Helena Fernandes:

"Não podemos negar as nossas pretensões de sermos terapêuticos" (Fernandes, 1991, p. 152).

Como a AT não podia se desvencilhar de sua formação profissional (psicóloga e psicanalista), era inevitável ter, mesmo trabalhando dentro da escola, uma escuta a respeito do sofrimento psíquico de Pedro, ou seja, de seu "Eros doente", e isso inevitavelmente despertou suas "pretensões terapêuticas" em relação a ele.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Antonucci, R. (1994). Terapias ressocializantes: o acompanhante terapêutico. In Assunção Jr., F. B. (org.). Psiquiatria da infância e da adolescência. São Paulo, SP: Santos.         [ Links ]

Assali, A. M.; Rizzo, C; Abbamonte, R. M. & Amâncio, V. (1999). O acompanhamento terapêutico ha inclusão de crianças com distúrbios globais do desenvolvimento. In A psicanálise e os impasses da educação. Anais do I Colóquio do Lugar de Vida/Lepsi.         [ Links ]

Cenamo, A. C. V.; Prates e Silva, A. L. B. & Barretto, C. D. (1991). O setting e as funções no acompanhamento terapêutico. O caso Júlia. In Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital-Dia A Casa (org.). A rua como espaço clínico. São Paulo, SP: Escuta.         [ Links ]

Fédida, P. (1988). Clínica psicanalítica - estudos. São Paulo, SP: Escuta.         [ Links ]

Fernandes, M. H. (1991). Acompanhamento terapêutico. Relato de um caso clinico. In Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital-Dia A Casa (org.). A rua como espaço clínico. São Paulo, SP: Escuta.         [ Links ]

Kupfer, M. C. M. (1997). Educação terapêutica: o que a psicanálise pode pedir à educação. Estilos da Clinica: Revista sobre a Infância com Problemas, 2 (2), 53-61.         [ Links ]

Laznik-Penot, M. C. (1997). Rumo à palavra - três crianças autistas em psicanálise. São Paulo, SP: Escuta.         [ Links ]

Mezan, R. (1988). A vingança da Esfinge - ensaios de psicanálise. São Paulo, SP: Brasiliense.         [ Links ]

 

 

Recebido em novembro/2001

 

 

1 Este trabalho foi escrito no âmbito cio Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP; foi lido e comentado pelos pesquisadores, a quem agradecemos as contribuições.
2 O termo "regular" é digno de nota, pois carrega em si a possibilidade de exclusão de tudo aquilo que não age conforme as regras, as normas, as leis e as praxes (ver no Dicionário Aurélio, o verbete "Regular").