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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.6 no.11 São Paulo 2001
DOSSIÊ
Impasses vividos pela professora na inclusão escolar1
Impasses lived by the teacher in the inclusion
Marise Bartolozzi Bastos
Psicanalista, membro do Grupo Ponte da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, bolsista da Capes no mestrado em Psicologia Escolar pelo IPUSP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae-SP
RESUMO
Este artigo discute uma particular relação que vemos se instalar entre a professora da escola regular e a criança portadora de DGD, que pela primeira vez vai à escola. A princípio, a professora prefere não ter essa criança em sua classe, mas, a partir do momento em que ela a toma como aluna, vemos se reproduzir uma relação de alienação muito semelhante à dessa criança com sua mãe. Se isso é absolutamente necessário, num primeiro momento, para garantir a permanência da criança na escola, é também necessário que se desfaça para que a escola possa funcionar como dispositivo terapêutico para essa criança.
Nesse sentido vemos a importância de um trabalho junto à professora que lhe possibilite pensar o lugar dessa criança em seu fazer pedagógico e em sua escolha de ser professora.
Inclusão; DGD; professora; escola regular
ABSTRACT
This paper discusses a particular relation that we see between the teacher of the regular school and the child bearer of PDD, which goes the first time to the school. At first, the teacher prefers not having this child in her class, but, from the moment she takes the child as a pupil, we see being reproduced a relation of alienation very similar this child has with her mother. If this relation is absolutely necessary, in a first moment, to guarantee the stay of the child at school, it is also necessary that this is undone so that school can act as a therapeutic device for this child.
In this sense we see the importance of working close to the teacher to make possible to think about the place of this child in her pedagogical practice and her choice of being teacher.
Inclusion; PDD; teacher; regular school
Este trabalho tem como ponto de partida as experiências e reflexões que venho compartilhando com os profissionais do Grupo Ponte (Colli et al., 1997, pp. 139-43), uma equipe formada por psicólogos, psicopedagogos e psicanalistas que funciona, há cerca de seis anos, na Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
A Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida é uma instituição para tratamento de crianças portadoras de DGD2 - distúrbios globais do desenvolvimento - que, utilizando o referencial teórico da psicanálise, realiza um trabalho terapêutico com essas crianças em que o tratamento se entrelaça com a escolarização, uma vez que dar a essas crianças um lugar na escola, atribuindo a elas um lugar social, produz efeitos terapêuticos, como tem demonstrado nossa experiência.
O Grupo Ponte surgiu como resposta a uma demanda nascida dentro da própria instituição para acompanhar a "passagem" das crianças atendidas pela Lugar de Vida quando elas viessem a ter condições de ingresso na escola regular.
Neste trabalho pretendo discutir uma particular relação que vemos se instalar entre a professora da escola regular e essa criança portadora de DGD que pela primeira vez vai à escola, e deverá ser acolhida em sua singularidade.
Notamos que, a princípio, a professora nada quer saber sobre essa criança dita "diferente" e prefere não a ter em sua classe, mas, a partir do momento em que ela a toma como "sua" aluna, vemos se reproduzir uma relação de alienação muito semelhante à dessa criança com sua mãe.
Se isso é absolutamente necessário, num primeiro momento, para garantir a permanência da criança na escola, é também necessário que se desfaça para que a escola possa funcionar como dispositivo terapêutico para essa criança, e não como armadilha reforçadora de seus sintomas.
Nesse sentido vemos a importância de um trabalho junto a essa professora que lhe possibilite pensar o lugar dessa criança em seu fazer pedagógico e em sua escolha de ser professora.
SOBRE A INCLUSÃO ESCOLAR DA CRIANÇA COM DGD
O tema da inclusão escolar vem sendo alvo de vários estudos, pesquisas e debates, sobretudo nos últimos quinze anos, no Brasil. Vem despertando o interesse de educadores, pesquisadores, pais e órgãos governamentais em discutir as questões levantadas em torno deste assunto que se tem mostrado bastante polêmico.
Pensar a escola como um espaço público privilegiado para a construção da cidadania e tomá-la como um instrumento social que possibilite avançar na direção de uma sociedade que não segrega o diferente é uma pretensão, sem dúvida, louvável, mas que padece de inúmeros complicadores e alguns graves equívocos.
Sabemos que a questão da inclusão enquanto direito e garantia da cidadania é. fato indiscutível, mas, trata-se aqui, de pensarmos em que condições e qual o preço a ser pago por todos aqueles envolvidos neste processo.
Kupfer e Petri fazem um alerta a esse respeito dizendo que "esse alto custo inclui, por exemplo, um enorme estrago na saúde mental de muitos professores, que não podem e não sabem abordar a inclusão, e terminam por apelar para o afastamento, a licença médica" (Kupfer & Petri, 2000, p. 110).
Por outro lado, também não é possível negligenciar os efeitos da inclusão nas crianças que já freqüentam a escola regular. Estar diante do "diferente" pode ser uma experiência bastante rica e produtiva para qualquer criança, mas quando o "diferente" é uma criança psicótica pode ser que se produzam efeitos negativos para as outras crianças. Jerusalinsky nos alerta para o fato de que "geralmente as crianças neuróticas na escola estão num momento de sua vida que, embora dentro do normal, do comum e corrente, atravessam situações delicadas, pelo simples fato de estarem numa idade em que as elaborações primordiais ainda se encontram em curso, e a possibilidade de se confrontarem com formas extremamente estranhas e destoantes da própria imagem - situada num semelhante - coloca em questão os pontos de identificação imaginária, de especularização com o outro. Isso porque a criança até a puberdade está submetida aos riscos da ruptura do espelho no qual se reconhece" (Jerusalinsky et al, 1999, p. 145).
Há ainda uma outra questão que diz respeito ao perigo de a inclusão escolar funcionar como uma injunção fálica para as crianças que estão diante da construção de uma estruturação psicótica, o que faria com que essa criança viesse a piorar com a entrada na escola.
Calligaris (1989) aponta que o desencadeamento de uma crise psicótica pode ser provocado quando a escola funciona como algo que exige da criança que ela já esteja operando com uma referência à função paterna. Nesses casos, da criança diante de uma estruturação psicótica, corre-se o risco de a instância pedagógica operar para essa criança como uma injunção permanente que a instale na crise, uma vez que essa referência à função paterna está em questão nesta estruturação.
Nesse sentido, é importante ressaltarmos que a inclusão escolar, sobretudo de crianças psicóticas e autistas, não pode ser feita a qualquer preço, e cabe a nós - psicanalistas e educadores - indagar se essas crianças têm as "ferramentas" necessárias para usufruir daquilo que o convívio escolar deve proporcionar-lhes, enquanto gerador de laços sociais.
Devemos indagar ainda se a escola está aberta a se questionar e se repensar como um espaço para acolher não só as questões relativas ao pedagógico, mas também aquelas que apontam na direção do sujeito, ou seja, trata-se de perguntar se é possível, para a escola, tomar a criança não exclusivamente pela ótica das suas capacidades cognitivas, mas nessa posição de sujeito do desejo, enquanto construção de uma estruturação psíquica que a psicanálise aponta não coincidir com o desenvolvimento biológico.
Vale ressaltar que não estamos advogando a favor de que a psicanálise possa ser aplicada ao campo da educação, e sim de lançarmos uma outra proposta pensando a "educação como um discurso social". E Kupfer quem nos diz que, "ao reconhecer a educação como um discurso social, a psicanálise se põe a dialogar com ela nas escolas, na mídia, na universidade", e ela conclui dizendo: "A psicanálise está na cultura, e é nossa responsabilidade que não se torne um instrumento de alienação..." (Kupfer, 2000, pp. 118 e 120).
É preciso que se deixe de lado o mito de que os professores devem ser especializados para que venham a atender melhor as crianças com dificuldades especiais. Isso acaba por gerar uma "exclusão" do professor que nunca se vê capaz de exercer o seu trabalho e impossibilitado de ocupar seu lugar de educador.
Kupfer e Petri, quando abordam o tema da Educação Terapêutica, afirmam que a inclusão escolar figura como um de seus eixos importantes, pois as crianças com DGD apresentam uma melhora significativa e uma mudança na posição diante do Outro social quando, além do trabalho terapêutico, podem ser inseridas na escola comum. Elas afirmam que, "mesmo decadente, falida na sua capacidade de sustentar uma tradição de ensino, a escola pode ser uma instituição poderosa quando lhe pedem que assine uma certidão de pertinência: quem está na escola pode receber o carimbo de 'criança'. Ir à escola - como observa Jerusalinsky - é melhor que ir ao manicômio" (Kupfer & Petri, 2000, p. 115).
Nossa experiência tem mostrado que a inclusão da criança psicótica na escola regular deve ser pensada caso a caso e, para ser viável, precisa contar com a parceria daqueles que trabalham no ambiente escolar, sobretudo, a professora.
OS IMPASSES VIVIDOS PELA PROFESSORA
Uma particularidade do trabalho do Grupo Ponte é a abertura que se dá às professoras das escolas que recebem as crianças atendidas na Lugar de Vida para participarem, mensalmente, de nossas reuniões de equipe.
Nosso trabalho de escuta dessas professoras, que, muitas vezes, são titulares de uma classe especial e, portanto, bastante familiarizadas com alunos ditos "difíceis", foi revelando que a simples oferta desse espaço de interlocução tem como efeito mobilizar na professora o desejo de discutir e pôr em questão o seu saber pedagógico e seu desejo de ser professora.
Partimos daí para fazer uma reflexão ampla sobre o acompanhamento da escolarização das crianças com DGD e nesse caminho fomos deparando com as possibilidades de articulação entre os campos da psicanálise e da educação inclusiva, passando pelas questões que tocam o ser mulher professora.
Como psicanalistas, passamos longo tempo estudando as possibilidades de tratamento da psicose infantil, mas ao nos endereçarmos à escola, pensando na escolarização dessa criança, percebemos o quanto a professora desempenhava um papel fundamental nas novas perspectivas do tratamento da criança que se abriam a partir de seu ingresso na escola.
Foi partindo de tais observações, e escutando as professoras, que fomos levados a pensar sobre algo que é uma constatação irrefutável: o ambiente escolar é predominantemente feminino, sobretudo na educação pré-escolar e nas primeiras séries do Ensino Fundamental.
Não pretendemos, neste trabalho, enfocar ou problematizar a questão da "feminização" do campo educacional, mas pareceu-nos importante, sim, interrogar o que há de singular na mulher que a leva a essa escolha profissional.
Nesse sentido, cabe pensar que a situação da mulher professora requer uma especial atenção ao constatarmos que no imaginário social muitas vezes se vê a educação na escola como um prolongamento da educação dos filhos e como uma tarefa inerente à condição feminina, como se as mulheres estivessem destinadas ao cuidado das crianças e, portanto, faria parte deste cuidado a tarefa de educá-las (Diniz, 1998; Fernandez, 1994).
Vemos nos relatos das professoras trechos ilustrativos desse modo de pensar que apontam como as mulheres professoras aderem a esse discurso cultural: "Quando vi aquela criança pensei logo no sofrimento da mãe, afinal eu também tenho filhos e pensei como deve ser difícil pra ela ter uma criança assim..." Ou então: "Eu só pensei em poder ficar com esse aluno porque fiquei me perguntando como eu me sentiria se meu filho fosse recusado numa escola".
No entanto, a psicanálise nos impulsiona a pensar a mulher fazendo um descolamento dessas produções ideológicas sobre as "competências" femininas e buscando avançar nas questões do enigma da feminilidade, da inquietante pergunta "o que quer uma mulher?"
Vale dizer que toda vez que o Grupo Ponte procura uma escola que possa receber uma criança da Lugar de Vida, temos a preocupação de escolher um local que seja conveniente para a criança, seus pais e que haja receptividade da escola em acolher esta criança. Para tanto, fazemos contatos prévios com a direção da instituição escolar para que possamos viabilizar a entrada da criança numa classe em que a professora mostre-se disposta a trabalhar com ela. Vemos aí, portanto, uma escolha e partimos desse "querer" manifesto da professora em relação à criança para acompanhá-la em seus desdobramentos.
Há que se lembrar que, aqui também, como numa análise, a oferta é que cria a demanda, pois a professora passa a olhar e a refletir sobre o seu fazer diante deste aluno de um modo bastante singular e inédito, segundo seus próprios relatos em nossas reuniões: "Aos poucos eu fui conseguindo trabalhar com Joãozinho na classe, apesar das peculiaridades dele... eu não sei dizer o quanto eu consegui ensinar a ele, mas sei o quanto ele pôde me ensinar".
Num primeiro momento, as professoras vêm às reuniões do Grupo Ponte com a expectativa de que receberão ali algum tipo de "treinamento" que possa auxiliá-las na tarefa de trabalhar com esses alunos "diferentes" que suas escolas estão sendo obrigadas a receber, em nome de uma nova proposta de educação inclusiva e que, embora conste dos documentos oficiais, não tem sido acompanhada de ações específicas que a tornem uma realidade. É comum as professoras chegarem às reuniões do Ponte dizendo: "Estou um pouco ansiosa nessa nova tarefa - receber uma criança da Lugar de Vida - e espero ter ajuda nessas reuniões para realizar esse trabalho".
Contudo, a dinâmica de nossas reuniões possibilita ao grupo de professoras fazer um giro nas suas produções discursivas, produzindo algo diferente. Uma vez que não obtêm respostas fechadas de como devem proceder e conduzir-se em sua tarefa educativa, as professoras se vêem lançadas a criar seu próprio fazer educativo pautado na singularidade de seu aluno e não negando a sua condição de sujeito: "Acho que quando temos uma criança como essa na classe o que muda no professor é o nosso olhar diante dessa criança, agora é o olhar do coração... a gente aprende a refletir, e isso faz mudar as nossas posturas... eu sei que o trabalho com Joãozinho me fez questionar meu trabalho como professora".
Mannoni (1980) aborda esta questão dizendo que a posição tradicional da pedagogia é baseada em critérios de adaptação. Diante da criança com DGD a professora verifica o fracasso de suas teorias pedagógicas, e isso a interroga sobre o seu fazer, lançando-a em busca de novos referenciais teóricos.
Vemos que é aqui que as contribuições da psicanálise ganham sentido, pois, conforme nos mostra Mannoni, o educador "é levado a repensar o que lhe foi dado em certa tradição cultural e a opor ao ensinamento recebido uma consideração radical de si mesmo no seu ofício. 'Estou aqui para transmitir um saber, e que é que se transmite quando se crê ensinar?' Há separação entre a noção de educação e a de ensino?" (Mannoni, 1980, p. 239).
Para Mannoni (1980) é nesse momento de "crise" que o professor passa a repensar sobre sua maneira de ser ao se defrontar com seu desejo de adaptação dessa criança, por desconhecê-la como sujeito de uma palavra ou de um desejo.
O trabalho com essa criança vai exigir do professor uma posição diferente, que leve em conta uma criança que não está em posição de curiosidade como todas as outras, e isso é um grande desafio para essa educadora: como ensinar a quem não tem curiosidade, a quem não demanda saber da professora?
Desse modo, a criança com DGD apresenta-se diante da professora como aquilo que não faz sentido, um enigma a ser decifrado, ou seja, como um puro traço significante à procura de uma significação.
Sabemos, no entanto, que o apelo à significação é próprio da condição humana. Freud ao descrever os caminhos trilhados pela sexualidade infantil revelou a impossibilidade de o humano determinar seu objeto de satisfação marcando aí uma ruptura entre aquilo que é da ordem da pulsão e o instinto animal. Freud nos mostrou ainda que é essa curiosidade sexual que impulsiona a criança na busca do conhecimento.
A questão que aqui se coloca é que a criança psicótica não está atravessada por essa curiosidade, pois, como aponta Jerusalinsky, "se há uma falha na inscrição primordial e se ela se realiza sob a forma de forcluir, ou seja obturar, qualquer curiosidade sobre as transformações simbólicas desse objeto, se não houver transformações simbólicas, a criança não tem o que perguntar, não tem para onde dirigir sua interrogação, porque o objeto já está aí, cocô é cocô, e acabou a história. Não há espaço para indagar que posição esse objeto tem na cadeia simbólica do Outro" (Jerusalinsky et al, 1999, p. 143).
Notamos, então, que o mal-estar se faz presente para a professora logo de saída, quando ela se vê confrontada com a realidade dessa criança: "Quando, na reunião de professores, a diretora da escola falou dessa criança, eu logo pensei que não queria nem pensar em ter mais uma criança com problemas na minha sala... resolvi ficar com ela porque fiquei envergonhada de ver que nenhuma professora queria pegar o aluno e quando falei com a mãe da criança me coloquei no lugar dela - de mãe - e acabei aceitando ele". Ou ainda: "Eu me coloquei no lugar dos pais ao ver que ninguém queria o aluno... pensei que esse aluno seria um desafio pra mim... acho que é o querer do professor que mobiliza nele uma busca de como lidar com essa criança".
Vemos, não por acaso, que aquilo que leva a professora a tomar essa criança como sua aluna também diz respeito a algo de sua posição subjetiva que se enlaça nessa criança.
Comentários como esses de que a professora se coloca "no lugar dos pais" e, portanto, em algum nível, faz um vínculo identificatório com eles são algo freqüente. Notamos que isso tem desdobramentos em seu trabalho diário com seu novo aluno, pois ela passa a "cuidar" dessa criança, que é ao mesmo tempo um desafio e um enigma, e isso a situa num lugar diferente diante das outras professoras da escola: "As professoras lá da escola vivem me perguntando o que esse aluno tem, e eu respondo que não sei e que isso não importa, mas elas insistem em querer saber qual é o problema dele".
Portanto, se num primeiro momento a professora busca dar conta dessa criança contando com aquilo que ela supõe saber sobre como é ser uma boa mãe, buscando desvendar o que essa criança precisa dela e ao mesmo tempo supondo que essa criança precise de algo, ou seja, supondo aí um sujeito, vemos que é nessa posição de aposta feita pela professora, em relação a essa criança falida em sua constituição simbólica, que está a possibilidade de a criança construir novas formas de curiosidades parciais, e poder aprender algumas coisas, mesmo que esses conhecimentos não sejam generalizados, construindo novas possibilidades de circulação social.
Vejamos o que acontece do lado da mulher-professora, pois nossa investigação aponta na direção de uma articulação possível entre o enigmático da criança psicótica e o enigma da mulher atravessando a professora.
O que quer a mulher? E o que quer essa criança?
Temos assim algo da ordem de um saber impossível - na psicose e na mulher -, como se o enigma da criança psicótica se cruzasse com o enigma da mulher: como querer saber sobre um saber impossível?
Ao pensar o feminino, a psicanálise abre a questão do "tornar-se mulher" apontando na direção de um para além (ou para aquém?) da representação. Sabemos que há um indizível, uma fenda, um resto que resiste à simbolização e que é próprio do feminino, não pode ser nomeado, mas produz seus efeitos, uma vez que a mulher "não é toda", pois não está toda submetida à função fáhca e não está toda submetida à castração.
O encontro da mulher professora com a criança psicótica põe em cena essa báscula a que está fadada a condição do feminino.
A professora oscila entre a mãe e a mulher que a habitam.
A princípio, a professora se vê lançada numa condição identificatória com um lugar materno, e vemos o quanto esse lugar a seduz, já que acena com algum conforto psíquico de que ela, ao menos assim, sabe o que fazer com essa criança usando o "olhar do coração".
Ficar capturada nesse lugar seria reproduzir com a criança uma experiência de alienação que faria resistência ao processo de tratamento que essa criança está vivendo: "A princípio eu fiquei assustada sem saber o que fazer com aquela criança na minha classe, mas hoje eu estou apaixonada por ele, ele é meu secretário particular, e eu estou com medo de que outra professora não possa dar conta de trabalhar com ele no ano que vem ... estou preocupada de ter que me separar dele..."
É aqui que deve entrar em cena o trabalho dos profissionais do Grupo Ponte, possibilitando que essa professora possa pensar e se interrogar quando se coloca nessa posição de professora-toda.
Contudo, no outro lado da báscula, a professora se defronta com o impasse do que é ser mulher, que fala da impossibilidade de se dar conta de uma posição não-fálica ou não-toda em relação ao sexual, e a isso se superpõe a questão da psicose infantil que aponta uma criança lançada num jogo de fazer Um com a mãe. Então, como ser professora não-toda?
Se para o tratamento da criança psicótica a psicanálise precisa pedir algo à educação, parece-nos um compromisso ético importante poder acompanhar as vicissitudes desse pedido tanto no que diz respeito à criança, quanto no que diz respeito à professora.
Construir-se enquanto mulher e construir-se enquanto professora parece ser uma travessia inevitável vivida pela mulher professora na experiência da inclusão escolar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Calligaris, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. [ Links ]
Colli, F. et al. (1997). Começando uma travessia pelo Ponte. Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, 2 (II), 139-43. [ Links ]
Diniz, M. (1998). De que sofrem as mulheres-professoras? In Lopes, E. M. T. (org.). A psicanálise escuta a educação. Belo Horizonte, MG: Autêntica. [ Links ]
Fernandez, A. (1994). A mulher escondida na professora. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. [ Links ]
Jerusalinsky, A. et al. (1999). Psicanálise e desenvolvimento infantil. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios. [ Links ] Kupfer, M. C. M. (2000). Educação para o futuro. São Paulo, SP: Escuta. [ Links ]
Kupfer, M. C. M. & Petri, R. (2000). Por que ensinar a quem não aprende? Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, 9 (V). [ Links ]
Mannoni, M. (1980). A criança, sua "doença" e os outros. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. [ Links ]
Recebido em novembro/2001
1 Trabalho apresentado no Colóquio Universitário Franco-Brasileiro realizado pela Universidade de Paris 13 entre os dias 5 e 7 de outubro de 2001, em Paris.
2 Termo atribuído pelo Manual de Diagnósticos e Estatísticas de Distúrbios Mentais (DSM-IV), da Associação Americana de Psiquiatria, para classificar crianças anteriormente diagnosticadas como psicóticas ou autistas como portadores de distúrbios globais do desenvolvimento - DGD.