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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.6 no.11 São Paulo  2001

 

ARTIGO

 

Abordagem da inteligência na psicanálise e na psicologia do desenvolvimento

 

The approach of intelligence in psychoanalysis and in developmental psychology

 

 

Norbert ZemmourI; Marie-Claude Fourment-AptekmanI

IMembros da Unidade de Pesquisa Psicogênese e Psicopatologia, da Universidade de Paris 13

 

 


RESUMO

O interesse de Piaget pela psicanálise parece ter durado pouco. Assim foi inaugurada a atual dissociação entre a psicanálise e a psicologia do desenvolvimento. É importante retomar a maneira com que Freud aborda o início do pensamento e dos fenômenos cognitivos para reatar o diálogo em torno de algumas questões: Por que .o abandono progressivo do estudo da palavra das crianças? Por que o não reconhecimento de sua sexualidade? Por que a ausência do outro materno na psicogênese?

Piaget; Freud; palavra; sexualidade infantil; outro materno; psicogênese


ABSTRACT

Piagefs interest toward psychoanalysis seems to have had a short life. That's the way the dissociation between developmental psychology and psychoanalysis has been inaugurated. It is important to undertake the way Freud has viewed the beginning of the act of thinking and of the cognitive phenomena, in order to reopen the dialog around some questions: why have we abandoned the progressive study of the children's word? Why haven't we recognized their sexuality? Why is the maternal other absent from the psychogenesis?

Piaget; Freud; word; infantile sexuality; maternal other; psychogenesis


 

 

Afirma-se com freqüência, como lugar-comum1, que Freud não se interessou diretamente pelo pensamento e pelos fenômenos cognitivos, e que os conceitos de pensamento e de inteligência, bem como sua abordagem genética e desenvolvimentista não fariam realmente parte do corpo conceituai da psicanálise. Escrever "Piaget está para a inteligência assim como Freud está para o afetivo" (Dolle, 1974) ignora resolutamente que, se o recalque distingue de imediato o diferente do afeto do diferente da representação, este não estabelece nenhuma hierarquia nesta distinção e leva em conta tanto o afetivo quanto o pensar e o intelectual.

Certamente o pensamento e os fenômenos cognitivos não fazem parte dos conceitos fundamentais da psicanálise. Entretanto, é possível acompanhar, através de toda a obra de Freud, um interesse nunca desmentido por essas questões. É possível demonstrar que Freud foi de fato um dos primeiros pesquisadores nas ciências cognitivas e que ele era um cognitivista conseqüente. O desconhecimento do interesse de Freud pelo pensamento e pelos fenômenos cognitivos levou seus sucessores a procurar, em diferentes autores, "complementos" àquilo que "faltava" nele. As tentativas de articulação ou de integração da teoria de Piaget à psicanálise situam-se nesse horizonte. Estas são destinadas a permanecer como sínteses artificiais e ecléticas enquanto evitarem colocar claramente a questão das relações iniciais da psicologia de Piaget com a psicanálise. Essas relações foram bastante confirmadas, mas são como que recalcadas (Fourment, 2000, pp. 593-6)2 num movimento que tende a se agravar.

De fato, há 30 anos a psicologia da criança reunia, de modo pouco dissociável, psicologia experimental, abordagem clínica e psicopatologia (incluindo-se a psicanálise). Era muito simples e evidente pensar na possibilidade de estudar a gênese dos processos cognitivos sem se interessar pelas condições de estabelecimento desses procesos, isto é, sem fazer psicopatologia nem metapsicologia.

Piaget diz: "Ainda que este interesse (pela psicanálise) tenha me auxiliado a recuar e ampliar o círculo do meu conhecimento, nunca tive o desejo de ir adiante nesta direção particular, preferindo sempre o estudo dos casos normais e do funcionamento do intelecto ao das malícias do inconsciente" (Piaget, 1976). Pode-se colocar a questão da legitimidade do recorte de uma normalidade intelectual num funcionamento psíquico global. Seria possível estudar a gênese dos processos cognitivos sem se interessar pelas condições globais de estabelecimento desses processos? Seria possível privar-se de uma abordagem psicopatológica e da fecundidade da hipótese da continuidade dos fenômenos normais e patológicos? Piaget situa-se aqui numa corrente de psicologia cujo objetivo é descrever um "homem cognitivo passavelmente assexuado e com freqüência não localizado no tempo e no espaço". Este homem é o homem das atividades "muito valorizadas em nossa sociedade [...]. É preciso observar que este homem dos pequenos anúncios classificados" (Freud, 1985) é um homem conformista e singularmente abstrato. Seria útil abordar as questões com tal grau de abstração? O homem cognitivo não seria então um boneco ideológico, e não um boneco metodológico que poderia servir para uma modelização?

Essa dissociação entre a abordagem psicanalítica e a psicologia desenvolvimentista que tende à oposição ou aos sistemas prematuros tem portanto sua origem no próprio Piaget. Para a clareza de um diálogo é importante retomar a questão a partir do momento em que Piaget parece querer traçar sua relação com a psicanálise como que para atacá-la ou contorná-la e desenvolver independentemente sua própria teoria. Esta questão não tem um interesse simplesmente histórico ou anedótico, sua abordagem é condição de uma troca e de um diálogo claro e frutuoso entre as diversas correntes da psicologia atual.

 

UM ANTECEDENTE: RESSITUAR A POSIÇÃO FREUDIANA SOBRE O PENSAMENTO, A INTELIGÊNCIA E SEU DESENVOLVIMENTO

Desde o início de sua pesquisa, Freud interessou-se pela questão do desenvolvimento, principalmente pelo desenvolvimento do pensamento e dos fenômenos cognitivos3. Sua correspondência com W. Fliess é testemunho de sua preocupação em identificar muito precisamente a sucessão dos eventos psíquicos (idades da vida, períodos, épocas) e estabelecer correlações entre os acontecimentos, suas datas de superveniência e a patologia ou as manifestações da vida de todos os dias. A demonstração da importância desta orientação do pensamento freudiano poderia ser alongada (estudo da história natural da libido, do destino da pulsão, ou ainda das fases da vida sexual). Esta importância é igualmente expressa pela insistência de Freud em buscar a origem mais arcaica dos fenômenos clínicos, como se o mais arcaico fosse o mais verdadeiro.

Para permanecer fora de uma demonstração cumulativa da importância da idéia de desenvolvimento em Freud, bastará aqui referir-se ao Projeto. O interesse de Freud pela questão do desenvolvimento do pensamento e da inteligência não é um interesse acessório ou tardio, mas, ao contrário, um interesse original. O objeto de Freud não é o inconsciente, mas o aparelho psíquico, incluindo-se pensamento e cognição, que ele propõe abordar com a rae-tapsicologia. Freud expõe aí os elementos constitutivos da idéia de desenvolvimento. Ele utiliza as noções de ganho psíquico (crescimento e progresso), de organização (estabelecimento das instâncias e de suas relações respectivas), evoca a idéia de termo desta organização e situa então este termo como objetivo ou finalidade de um processo.

A própria idéia de metapsicologia - um outro nome da psicanálise - implica a de desenvolvimento e a de psicogênese: o aparelho psíquico abordado no plano tópico, dinâmico e econômico não é considerado imediatamente acabado. Contrariamente a Palas Atena, que surgiu pronta e já armada do crânio de Zeus, ele se constrói e se desenvolve por meio de uma série de operações, ele tem uma história, ainda que na clínica esta se passe apenas através de um romance. É preciso então fechar os contornos desse estabelecimento do aparelho psíquico em todas as dimensões para tirar delas um certo número de questões de modo que se conceba o desenvolvimento.

A concepção freudiana dos momentos mais precoces da vida infantil (é preciso dizer "mais original" para marcar imediatamente o caráter necessariamente mítico dos modelos propostos) pode colocar questões importantes. A atualidade da abordagem freudiana é reforçada pela redescoberta da verdade e da exatidão das observações (sobre as competências precoces do recém-nascido, por exemplo), das instituições e das reconstruções da metapsicologia freudiana.

Antes de prosseguir, impõe-se uma observação central sobre aquilo que constitui uma das singularidades notáveis da abordagem freudiana: a história da libido - o estudo do destino das pulsões, as fases da organização sexual e a sucessão dos acontecimentos no curso do futuro psíquico - não é diretamente observada na criança4, mas reconstruída a posteriori, a partir do discurso do adulto, numa elaboração metapsicológica. Esta originalidade freudiana ancora a realidade psíquica na palavra e na linguagem por meio da qual ela se expressa, e mediante a qual pode ser encontrada. Se os fatos clínicos são acessíveis apenas pela linguagem, sua natureza essencial não seria da mesma ordem, a da palavra e da linguagem?

 

QUESTÕES DE MÉTODOS

É possível estabelecer aqui um debate entre Freud e Piaget sobre os objetivos e os métodos. O projeto de Piaget é o mesmo que o de Freud: fazer com que a psicologia saia da filosofia, ancorando-a nas ciências da natureza. Ambos foram, durante a juventude, profundamente marcados por seu interesse pela filosofia.

Piaget mostra-se um bom conhecedor da psicanálise e sobretudo dos psicanalistas quando ele se pronuncia sobre as questões de metodologia:

"O que falta (à psicanálise) é o controle. Eu não acredito que ela seja inteiramente uma ciência. Os psicanalistas ainda estão reunidos em pequenas igrejas, é muito complicado, e em cada uma os pesquisadores acreditam imediatamente uns nos outros: eles têm uma verdade comum. Enquanto na psicologia a primeira reação é procurar contradizer-se. Os psicanalistas referem-se a uma verdade que deve estar mais ou menos em conformidade com os escritos de Freud, isto parece incomodar bastante".

P.: O sr. acha que a psicanálise pode se tornar uma ciência?

R.: "Na medida em que não haja mais heréticos, certamente"5.

Essa observação de Piaget poderia ser útil para a reflexão dos psicanalistas, servir para eles como programa. Ela é testemunho de um bom conhecimento dos psicanalistas por parte de Piaget: sua relação com o texto freudiano com freqüência é uma relação religiosa diante de um dogma, relação que muitas vezes se passa entre heréticos e ortodoxos.

A necessidade do controle e da replicabilidade das observações que constituem as exigências de base das ciências da natureza possibilitam distinguir dois Piagets. Um primeiro Piaget científico que constrói rigorosamente um aparelho de observação e de interpretação. A introdução da "Representação do mundo na criança" é uma magistral lição de metodologia. Piaget mostra os interesses e os limites da observação pura e da metodologia dos testes. Ele propõe construir seu próprio método clínico a partir da técnica de entrevista desenvolvida pela psiquiatria alienista clássica que provou sua fecundidade em nosografia.

Um segundo Piaget está em ação quando abandona o método clínico para observar seus próprios filhos (Chapuis, 2000, pp. 561-72). É preciso colocar a questão: o que acontece com a metodologia e com a replicabilidade quando o pesquisador é também o pai e quando este aspecto da questão não é nem mesmo considerado, sendo totalmente eludido. Parece que este segundo Piaget (mas talvez deva-se pensar que este seja também o primeiro Piaget no sentido do processo primário) não se atrapalha com uma metodologia que ele preconiza e também ilustra.

É preciso ressaltar aqui que o dispositivo da cura também é um "espaço experimental" bastante transmissível (as observações dos casos de Freud são testemunho disso), ainda que a singularidade da cura não seja reprodutível no sentido estrito do termo.

MÉTODO CLÍNICO E TRANSFERÊNCIA

O afastamento da dimensão da transferência é sistemático, utilize Piaget o método clínico ou baseie-se na observação direta de seus próprios filhos. Ele escreve: "A essência do método clínico é, ao contrário, separar o bom grão do joio e situar cada resposta em seu contexto mental. Ora, há contextos de reflexão, de crença imediata, de jogo ou de psitacismo, contextos de esforço e de interesse ou de cansaço e há, sobretudo, sujeitos examinados que inspiram confiança imediatamente, que vemos refletir e buscar, e outros que sentimos estarem divertindo-se à nossa custa ou que não nos escutam" (Piaget, 1926). A análise das reações transferenciais da criança é eludida e substituída por um julgamento de valor e uma espécie de tipologia das reações (a boa semente daquele que escuta e faz o que lhe é pedido e o joio daquele que só faz o que lhe vem à cabeça). As noções de "contexto mental" e de "bom clínico que se deixa dirigir, dirigindo" não bastam para inscrever a dimensão da transferência tal como fundada por Freud.

Essa cegueira em relação à questão da transferência é provavelmente o que conduz Piaget a abandonar o método clínico, em que a linguagem e a palavra têm muito lugar para provas (que se tornaram provas piagetianas), em que a linguagem é secundária (intervém apenas secundariamente para explicar a ação) e em que a observação direta da ação é privilegiada. Como se fosse preciso, antes de mais nada, eliminar a relação com a palavra.

PSICANÁLISE E DESENVOLVIMENTO: QUESTÕES COMUNS

Se a psicanálise não tem vocação para tratar das questões gerais (ela não é uma Weltanschauung), ela pode levar seu modo de questionamento, seus princípios e seus métodos para todas as questões gerais. As questões colocadas pela psicanálise à psicologia desenvolvimentista são questões clássicas, bastante debatidas: qual é a natureza das mudanças? O que muda? Ou, então, o que pode mudar? As mudanças são qualitativas ou quantitativas? São contínuas ou discretas? Qual é a duração desse desenvolvimento? Qual é o fim possível? Pode-se falar de um objetivo e de um processo ou de um progresso em direção a esse objetivo?6 No que resultam então as noções de normalidade, autonomia, atraso, desarmonia ou de quebra de desenvolvimento?

Essas questões serão abordadas muito parcialmente aqui, a partir da concepção freudiana dos inícios do desenvolvimento. Estas cruzarão os temas piagetianos: o pensamento e o egocentrismo como estágio inicial, as palavras, o sonho e o nascimento dos bebês. Neste artigo serão abordadas as relações do início do pensamento e das possibilidades cognitivas com o pensamento originário da mãe como O/outro, e o início do desenvolvimento em sua ligação com a simbolização e a linguagem. As relações entre o pensamento, a inteligência e o sexual, que seriam uma via frutífera de diálogo e de confronto entre Piaget e Freud, serão deixadas de lado, apesar de sua importância.

 

FREUD, O INÍCIO DO DESENVOLVIMENTO - A MÃE COMO O/outro - A SIMBOLIZAÇÃO E A LINGUAGEM

"A impotência originária do ser humano torna-se a fonte primeira de todos os motivos morais"

Freud, 1985, p. 336

O APARELHO PSÍQUICO É UM APARELHO DE DEFESA

Para Freud, o aparelho psíquico, o aparelho da alma [Seelenapparat], a ser construído a partir de sua devoção ao modelo racional das ciências da natureza é antes de tudo um aparelho de defesa diante das urgências da vida. Ele é guiado pelo princípio do prazer concebido inicialmente como princípio de homeostase, que tem um único objetivo: a descarga. O aparelho psíquico tenta se defender dos estímulos externos pela fuga, o fracasso da fuga é uma imobilização na dor, experiência freqüente e inevitável em função da desproporção entre a potência das energias externas em jogo e a fragilidade da organização inicial do aparelho psíquico. Na luta com os estímulos endógenos (as grandes necessidades vitais das quais não se pode fugir) cuja acumulação torna-se perigosa, a primeira via de descarga encontrada pelo aparelho psíquico é a descarga motora e emocional7 (gritos, modificações tônicas, vegetativas e posturais). Esta via não tem nenhuma eficácia prática, ela não pode levar "ao ser impotente"8, apenas "o objeto específico" garante satisfação. Ele é portanto entregue à intervenção do outro materno, que vai dar a satisfação por meio de sua intervenção (a "ação específica") ou então causar sofrimento (pela ausência ou por uma intervenção inadequada ou parcial). E preciso observar o termo Nebenmensch utilizado por Freud para designar o outro materno. A tradução é difícil e importante: trata-se do "humano próximo", da figura de um semelhante. O termo "próximo" poderia ser utilizado se não houvesse uma conotação religiosa tão forte. O termo "presença próxima" (Deligny, 1975) poderia então convir.

Essa concepção freudiana conduz mais precisamente ao interesse pela experiência da satisfação com a figura desta presença próxima bem como com a linguagem e a simbolização que a acompanham.

 

A EXPERIÊNCIA DA SATISFAÇÃO. O OUTRO MATERNO, UMA FIGURA PARTICULAR ENTRE OS OBJETOS

A EXPERIÊNCIA DA SATISFAÇÃO

Essa ação específica9 leva a uma série de efeitos cujas conseqüências serão da mais alta importância.

- Antes de tudo um "fato de satisfação" que implica, de acordo com o princípio de constância, uma descarga durável.

- Em seguida, o investimento de um objeto sob forma de uma imagem mnésica do objeto próprio à satisfação.

- Enfim, uma facilitação entre, de um lado, a imagem do objeto de satisfação e do rastro do movimento que acompanhou a satisfação e, de outro lado, as neuroses carregadas no momento do desamparo10. Sabe-se que Freud concebe o aparelho psíquico como um sistema de superfícies sensíveis que trazem rastros. A facilitação é uma facilidade, uma via preferencial da circulação associativa entre esses rastros. Esses rastros formam portanto uma rede de diferenças regulamentadas entre elementos discretos cuja oposição é diferencial. É importante ressaltar que esta experiência situa o corpo como lugar de uma marca inesquecível numa relação com o outro.

No caso de um novo desamparo, o aparelho psíquico vai reativar esse esquema da experiência da satisfação. Freud afirma então - sabe-se que aqui ele se baseia na experiência do sonho - que o aparelho assim constituído é um aparelho que tende a se enganar numa tentativa de auto-satisfação, de auto-suficiência, que tem uma tendência a deixar o certo pelo incerto, e vai inevitavelmente em direção à decepção11. O princípio do erro está no sujeito. Não se trata de um erro de percepção, de uma limitação de nosso aparelho perceptivo, de um aspecto enganador do real, de uma distinção entre aparência e essência, ou de um mau aprendizado. O sujeito freudiano está sujeito ao erro.

Deve-se ressaltar com insistência que não se trata de um movimento secundário devido à decepção; trata-se de um movimento primário. A alucinação não vem como consolo para uma decepção. O objeto de satisfação é o que vem "no lugar"12 do "objeto alucinado", e objeto alucinado reproduz as coordenadas de prazer do objeto originário da satisfação. Este movimento retrógrado do aparelho psíquico para a alucinação primordial é essencial à compreensão do conceito de regressão. Se a regressão é definida (Laplanche & Pontalis, 1967, p. 400) como, "num percurso psíquico com um sentido de percurso ou de desenvolvimento, designa-se por regressão um retorno em sentido inverso a partir de um ponto já atingido até um ponto situado antes dele", sem entrar em detalhes de seus aspectos tópicos, temporais e formais, é fácil conceber que o percurso e o desenvolvimento em questão serão profundamente modificados por esta possibilidade do aparelho psíquico: não se caminha para a frente.

UMA FIGURA PARTICULAR: A PERCEPÇÃO DE OUTREM

Entre os objetos do mundo que são encontrados fortuitamente ou então que se apresentam espontaneamente à atenção, encontra-se um que tem uma propriedade notável, por sua capacidade de dar ou não satisfação: é a figura de um semelhante. Freud diz: "O despertar do conhecimento está portanto ligado à percepção do outro"; "É o primeiro poder", que ele descreve também como "um outro pré-histórico e .inesquecível", insistindo sobre a dimensão da perda. Se a pré-história não tem escrita, ela não deixa de ter rastros.

A maneira com que Freud descreve as primeiras relações com a mãe deve ser considerada muito precisamente. Esta pessoa asseguradora, "primeiro poder", aparece imediatamente como dividida. Esta divisão na relação originária é de fato uma dupla divisão.

A primeira divisão situa-se entre bom (como fonte de satisfação) e mau (como ausência e causa de dor); sabe-se que mais tarde esta terá um papel na constituição do aparelho psíquico, na (de)negação está precisado o bom, integrado dentro, e o mau, expulso para fora.

A segunda divisão impõe-se à atenção do recém-nascido acentuada pelo desamparo: a mãe aparece como dividida entre uma parte estável, coerente, identificável (a presença corporal, a Gestalt) e uma parte variável que deve ser compreendida, interpretada (as posturas, as manifestações tônicas, as mímicas, as propriedades olfativas, a voz, suas intonações e flexões...). É este aspecto do outro materno que mantém de forma exclusiva a abordagem feita pelas ciências cognitivas para as quais a mãe resume-se a um estímulo complexo.

Uma hipótese fundamental do Projeto deve ser então ressaltada: a presença da mãe, fonte originária e mítica de toda satisfação possível, não é uma experiência de toda satisfação. Esta comporta um resto que é o lado enigmático, opaco do outro, é o lugar de uma questão. Esta questão está na origem da atenção psíquica e de uma atitude de busca, de movimentação do pensamento.

O estado de atenção psíquica, a atitude de busca, encontra portanto seu protótipo na "experiência de satisfação que tem um papel tão importante na evolução". No início da constituição de um laço com a realidade, Freud situa sem equívoco "die Sehnsucht", os estados de aspiração ardente que forneceram os estados de desejo e de desespero, "esses estados implicam a justificativa biológica do pensamento inteiro" (sem pulsão epistemofílica, sem objeto epistêmico). O sujeito está apenas em sua relação com o desejo: "Uma aspiração ardente cria no eu uma certa tensão e, por conseguinte, um investimento da representação do objeto amado (representação de desejo)".

 

A LIGAÇÃO COM AS IMAGENS AUDITIVAS VERBAIS. O PENSAMENTO É UM SUBSTITUTO DA DESCARGA

Uma das chaves do Projeto situa-se na explicitação da ligação entre os rastros psíquicos e a linguagem13. Uma vez colocada a necessidade de descarga que é deduzida do princípio de constância, Freud aponta a linguagem como via de descarga: "É o que as associações verbais possibilitam realizar. Estas consistem numa ligação dos neurônios phi com os neurônios que servem às imagens auditivas, que por sua vez são estreitamente ligadas às imagens verbais motoras" (Freud, 1985, p. 375).

Sem entrar nos detalhes da concepção freudiana que conduz à distinção entre representação de palavras e representação de coisas, bastará ressaltar a homologia de estrutura entre, de um lado, o sistema de rastros (e de facilitações associativas entre esses rastros) vindos da percepção e da experiência e, de outro, as imagens auditivas verbais (estas estreitamente ligadas às imagens verbais motoras). Esta associação tem a vantagem, em relação à difusão das associações entre neurônios, de possuir duas particularidades: "Elas são circunscritas (isto é, em número restrito) e exclusivas, passam da imagem auditiva à imagem verbal e daí a uma descarga" (Freud, 1985, p. 375).

A ASSOCIAÇÃO COM AS IMAGENS AUDITIVAS VERBAIS COMO CONDIÇÃO DAS POSSIBILIDADES DO DESENVOLVIMENTO DO APARELHO PSÍQUICO

Freud indica as conseqüências dessa associação.

A primeira é possibilitar o conhecimento e a memória. O pensamento, a partir do movimento dado pelo desejo, irá se fundir, se expressar na linguagem, e fundar uma realidade psíquica: "Os indícios de descarga pela via da linguagem [...] trazem os processos cognitivos no mesmo plano que os processos perceptivos, conferindo a eles uma realidade e tornando possível sua lembrança" (Freud, 1985, p. 375).

A segunda é tão importante quanto a primeira: "A linguagem como processo de descarga é a única via possível enquanto a ação específica não é realizada". O pensamento e a cogitação são um meio de atingir e de esperar uma certa satisfação.

A terceira conseqüência não é menor: esta via adquire uma função secundária, ela deve chamar a atenção de uma pessoa asseguradora (que em geral é o objeto desejado) sobre as necessidades e o desamparo da criança. Por este meio, que vai se integrar na ação específica, o acordo com o outro estará garantido. A distinção fica claramente expressa entre a necessidade e o desamparo, distinção que traz em si a autonomia relativa das duas componentes. Estas duas componentes, evidentes para qualquer observador de um recém-nascido, não são claramente distintas nos estudos do desenvolvimento cognitivo do recém-nascido.

Esses dados elementares sobre a relação originária com o outro e sobre o papel da palavra e da linguagem são suficientes para se colocar o essencial da concepção de Freud.

 

PIAGET E VIGOTSKY: A CONFUSÃO INICIAL DAS PALAVRAS E DAS COISAS

Se Piaget e Vigotsky não têm a mesma concepção da linguagem, Vigotsky recusando o egocentrismo piagetiano e, por este caminho, destacando o aspecto comunicativo da linguagem na primeira infância, encontram-se entretanto num ponto: o da confusão, no início da linguagem, entre as palavras e as coisas. Não haveria portanto dois tipos de representações distintos - representação de palavras/representação de coisas -, mas uma representação única ligando os dois. É por isso que as crianças entrevistadas por Vigotsky afirmam que, se uma vaca tem esse nome, é porque ela tem chifres, ou então que a lua se chama lua porque brilha à noite. Isto coloca toda a questão da elaboração das relações entre significantes e significados que Piaget retomará em A formação do símbolo na criança (1946), simplificando consideravelmente o signo saussuriano, e que constitui, segundo Vigotsky, um dos maiores eixos do desenvolvimento. Para este último, se, na primeira infância, a palavra é uma propriedade do objeto da mesma maneira que sua forma ou cor, esta pode também se destacar e levar uma vida autônoma. A palavra, como etiqueta destacável, da qual Vigotsky ressalta ao mesmo tempo a importância da vertente sonora e de seu caráter extrínseco ao sujeito, encontra, sob determinado ponto de vista, as imagens auditivas verbais acima evocadas. Contrariamente a Piaget, este autor sublinha o caráter exclusivamente comunicativo das vocalizações, gritos e choros do primeiro ano, a relação com "os processos cogitativos" que intervêm apenas no início do segundo ano. Mas, tanto para um quanto para outro, a distinção clara entre palavras e coisas e a descoberta do laço arbitrário que as une na denominação só são estabelecidas aos 7 ou 8 anos. No período precedente, apenas Wallon ressalta a importância do ambiente humano, sem evocar especificamente a mãe.

 

EM FREUD: AS DUAS DIMENSÕES DE ALTERIDADE ORIGINÁRIA ENCARNADA PELA MÃE O/outro

Para acompanhar o pensamento de Freud, é preciso distinguir na relação originária com a mãe as duas figuras da alteridade que são visadas como a base da constituição da relação com o mundo e consigo mesmo. Uma curta passagem pela teoria lacaniana parece-nos, aqui, singularmente esclarecedora com a introdução do conceito de "Grande Outro" por diferença e suporte no conceito de "pequeno outro", o que pode justificar a grafia O/outro.

1) O OUTRO COMO OUTREM

A relação com a mãe como outro é uma relação sustentada pela atenção e tecida de fenômenos de natureza imaginária. Freud indica a imitação precoce e as relações de simpatia: "Percebendo W, imitam-se os movimentos, o que significa enervar a própria imagem motora (que coincide com a percepção) a ponto de reproduzir realmente o movimento. É por isso que é permitido falar em 'valor imitativo' de uma percepção. Pode ocorrer ainda que a percepção suscite a imagem mnésica de uma sensação dolorosa sentida pelo sujeito, de tal modo que ele sente o desprazer correspondente e reitera os movimentos defensivos apropriados. Está aí o que chamamos 'valor simpático' de uma percepção". A mesma idéia é retomada mais adiante: "Em conseqüência de uma tendência a imitar que surge durante o processo do julgamento, torna-se possível encontrar um início de movimento feito por si só ligado a esta imagem auditiva" (Freud, 1985, p. 350).

É preciso ressaltar aqui que Freud, desde 1895, dá um lugar importante às imitações precocíssimas do recém-nascido.

Sem antecipar o desenvolvimento posterior da dimensão imaginária (identificação, agressividade e avatares do narcisismo normal ou patológico, formação das instâncias ideais) nem sobre o aporte de Lacan à questão (Estágio do Espelho e esquema ótico), basta ressaltar que esta dimensão imaginária está indicada por Freud desde o Projeto como uma dimensão constitutiva do aparelho psíquico.

2) O OUTRO COMO LUGAR, O GRANDE OUTRO

Não se trata aqui de desenvolver o conceito de Grande Outro ou a constelação conceitual que envolve o significante lacaniano "Outro". Um simples inventário bastará para indicar no que esta dimensão de alteridade, ainda que não identificada por Freud por este vocábulo, não está menos presente em sua teoria e é indispensável à compreensão daquilo que ele coloca.

O outro materno também é um lugar:

De uma questão, de um enigma: "O que ele quer?"

De uma ameaça: a não satisfação, a dor vinda deste outro é possível.

De uma perda: a satisfação não é sempre satisfação.

De um enodamento à linguagem concebido por Freud como possibilidade diferenciada de satisfação pela via de descarga. O outro materno é o lugar em que os rastros verbais motores estão, muito antes de que o sujeito se encarne. O recém-nascido indefeso não está na origem do discurso: ele o recebe.

Não se pode supor nenhuma subjetividade antes que se estabeleça: uma longa sucessão de facilitações, um longo trabalho psíquico. Esta dimensão introduz a questão das relações do simbólico com a temporalidade: o tempo necessário para que o adiamento da descarga possa enfim chegar a uma certa satisfação. Ao lado desta dimensão temporal, este enodamento à linguagem situa o corpo como "o lugar da relação do sujeito com o Outro que ele substitui e comenta tão obstinadamente" (Assoun, 1973, p. 166). A posição subjetiva é segunda, os rastros motores verbais são anteriores e exteriores, vêm da mãe, e terão uma influência determinante.

A partir de uma demanda: o desejo da mãe de dar satisfação, de se dar a satisfação por meio do recém-nascido, encontra o desamparo originário do ser impotente. A criança tem acesso, no corpo-a-corpo com a mãe, fundado na necessidade, ao saber de seu lugar como o objeto de seu desejo: neste Outro primordial e todo-poderoso algo falta. O que conduz ao jogo do "desejo de desejo" e ao lugar marcado como objeto do desejo do Outro. E nesta via que também pode ser pensado o jogo da demanda e do desejo numa relação de enodamento14.

Seria interessante fazer aqui algumas comparações com outras abordagens para melhor situar a originalidade de Freud e para ressaltar as divergências do pensamento freudiano com o de outros autores e abordar as conseqüências dessas divergências no campo da concepção do desenvolvimento.

 

O IMPASSE A RESPEITO DO O/outro

J. PIAGET - H. WALLON - E. VURPILLOT - R. LECUYER: A QUESTÃO DO PRÓXIMO

Essa presença do semelhante, como fonte de conhecimento, como lugar dos fenômenos complexos anteriormente abordados, permanece estranha à abordagem de Piaget. De fato, ele concede uma proeminência radical ao sujeito e à sua atividade.

Piaget oculta o lugar originário do outro e sua complexidade (O/outro), tão perfeitamente articulada por Freud desde o Projeto.

É possível medir a distância que separa Freud de Piaget na seguinte passagem: "Durante o período sensório-motor o bebê já é naturalmente objeto de influências sociais múltiplas: dispensam-se a ele os maiores prazeres conhecidos por sua pouca experiência... mas do ponto de vista do próprio sujeito, o meio social ainda não se diferencia essencialmente do meio físico... quanto às pessoas, são quadros análogos a todos os que constituem a realidade, mas especialmente ativos..." (Piaget, 1947, p. 169).

Da mesma forma, a idéia de egocentrismo como estágio inicial do pensamento torna-se difícil de sustentar. O egocentrismo é concebido por Piaget como um estágio inicial de solipsismo que se ignora. Consiste em ver o mundo de um único ponto de vista sem possibilidade de descentralização15 e, inversamente, pela "absorção do eu nas coisas e no grupo social". Estado cognitivo caracterizado por uma relação de não distinção entre o interior e o exterior, consistindo em associações de palavras e de idéias sem relação com a realidade, e a relação com o outro opõe-se ao mesmo tempo à construção de um pensamento objetivo, racional e à sua comunicação com o outro.

Piaget baseia-se, no entanto, na afirmação infantil que ele ressalta fortemente: o pensamento é descrito pela criança como exterior. À questão "Com o que pensamos?", a criança responde: "Com a boca e com as orelhas". Piaget observa então: "Para a criança, falar é pensar". E negligencia a segunda parte da resposta -"Pensar é ouvir" -, que poderia conduzi-lo a considerar que alguma coisa aparece como um "ouvido" que vem de um outro lugar e que o pensamento só se constitui numa relação com o outro, e não como ele quer demonstrar de modo puramente egocêntrico. Piaget o demonstra bem, trazendo as palavras de criança: "Pensa-se com as orelhas". Animais que têm orelhas pensam (o cavalo...), aqueles que não têm orelhas não pensam (os caracóis...), o pensar vem de um outro, de algo que se ouve, as crianças sabem disso.

Na origem dessa posição egocêntrica (derivada do autismo de Bleuer), Piaget indica duas causas: a fragilidade da organização do eu infantil, concebido de modo "anafreudiano", e a ignorância. Esta concepção implica que a ultrapassagem desse estágio só poderá ser feita na construção do eu infantil pela educação e repetição dos aprendizados.

A abordagem de Freud, por outro lado, encontra eco na abordagem de Wallon. Para Wallon a criança tem que receber as condições para sua sobrevivência, os processos tônicos e posturais têm um papel importante nas capacidades expressivas do corpo, mais tarde sua retomada e sua integração servirão de base à comunicação: "Antes do primeiro ano, o comportamento da criança apresenta dois traços que sobressaem particularmente: por um lado, é a imperícia total das suas relações com o exterior, sua impotência em efetuar por si mesma qualquer dos atos que são mais necessários ao seu bem-estar e à sua subsistência, a indispensável necessidade que ela tem do outro para cada uma de suas necessidades. De outro lado, o desenvolvimento e a maturação muito precoce de suas manifestações afetivas são o acompanhamento exclusivo de todas as suas veleidades" (Wallon, 1976, p. 144).

Em H. Wallon encontra-se essa concepção de um desenvolvimento difícil e caótico em que a dimensão da perda, que na harmonia piagetiana temos dificuldade em viver, não é impensável. Wallon escreve: "As etapas do desenvolvimento não são nem perfeitas nem homogêneas, nem completamente disparatadas entre si. A função que aparece e que vai reinar não deve compor menos com aquela da qual ela tende a tomar a direção do que ter suas origens dominadas, levada por suas conseqüências e já desagregada por outras vegetações que ela torna possíveis e que a suplantam" (Wallon, 1925, p. 68).

A atualidade do pensamento de Freud é nítida se nos referimos aos dados mais recentes do estudo dos recém-nascidos.

E. Vurpillot afirma a precocidade das capacidades de comunicação e de atenção do recém-nascido: "Quanto mais recente é a literatura consultada, mais precoce é a data de seu aparecimento". Ela escreve: "O mais plausível seria que a mãe fosse para o bebê desta idade (1 mês) algo de compósito que associe um certo respeito, sons, expressões, enfim, todo um conjunto que ele reconhece" (Vurpillot, 1986).

Para R. Lecuyer as possibilidades de relação e de atenção estão bastante sustentadas pela observação e pela experiência: "Vimos que, ainda que as capacidades sensorials de um recém-nascido estejam longe de ser nulas, as capacidades em se relacionar com os congêneres são ainda mais importantes. O recém-nascido dispõe ao mesmo tempo de sinais poderosos e de uma sensibilidade particular aos sinais dos outros. [...] a voz humana, as mímicas são muito precocemente preferidas e diferenciadas de modo que os congêneres que respondem a esses sinais são uma classe particular de estimulações. Espelhando as capacidades precoces, os pais desenvolvem estratégias que sustentam o desenvolvimento da criança" (Lecuyer; Pecheux & Atreri, 1988, p. 76).

Fica evidente entretanto que para esses autores, a mãe permanece, antes de mais nada, como um estímulo. Ela é certamente concebida de modo complexo, há uma espiral de interações que vai dar o seu ar ao desenvolvimento posterior, mas nenhum desses autores aborda o lugar da mãe separando o que a psicanálise vai explicitar de modo complexo, quando ela introduz, a partir da experiência freudiana, a dimensão do Outro como lugar que se apóia no pequeno outro como primeiro outro. Sobre esta dupla face do a/Outro todos os autores citados vêm-se num impasse.

Falou-se até aqui do infantil. Uma outra dimensão, intimamente ligada ao infantil, a que Freud nos direciona para conceber o desenvolvimento, é o lugar do sexual, que não será abordado aqui. Desde o Projeto, o infantil e o sexual traçam duas linhas de força no pensamento de Freud. Esses dois eixos foram mantidos do início ao fim da elaboração teórica.

 

CONCLUSÃO

A abordagem desenvolvimentista pode-se dar como programa de estudo da gênese as transformações e os modos de dissolução do aparelho psíquico. Para sair do ecletismo, das sínteses artificiais, ou das oposições estéreis é necessário retomar um diálogo fundado sobre as questões colocadas a todos pela realização desse programa científico. De seu lado, a psicanálise propõe abordar as questões a partir do que Freud observa sem nunca renunciar à importância do infantil e do sexual. Dentro das limitações deste artigo e em função de sua complexidade, apenas um aspecto foi esboçado aqui: as relações precoces mãe-filho e sua relação com a função simbólica.

Esta dimensão da palavra e da linguagem conduz à dedução da experiência freudiana:

- Uma concepção metodológica particular ligada à concepção da transferência que implica a inscrição desta relação na palavra e na linguagem.

- Uma topologia do sujeito: o mais íntimo, o mais singular. As coordenadas do objeto perdido encontram-se no mais exterior: o objeto do mundo que vai substituí-lo.

- Uma concepção de mudança: a perda originária e as operações defensivas que ela comanda constituem aquilo que não muda. O que pode mudar: as modalidades de expressão dessas operações defensivas.

- Uma concepção da temporalidade: em oposição ao tempo linear do progresso que procede de modo cumulativo, o tempo do desenvolvimento pode ser concebido tanto de modo cronológico como de modo lógico. A concepção freudiana de uma falta originária, o "après-coup" sexual, o conceito de regressão ao mesmo tempo tópico, formal e temporal estão inscritos na dimensão da palavra e da linguagem. Esta inscrição possibilita pensar o tempo de um trabalho do pensamento diante da instantaneidade do encontro do objeto e a conseqüente parada no fascínio da perda e todas as suas variantes.

- Uma retomada da idéia de finalidade do desenvolvimento: a idéia de maturidade, de estabilidade, de autonomia da idade adulta pode então ser repensada em benefício de uma concepção fundada sobre a noção de estado (Rassial, 1999, Cap. 8) do aparelho psíquico, o que para o psicanalista exige a realização sem garantias, por sua conta e risco, do projeto freudiano de uma metapsicologia.

Algumas dessas questões foram explicitamente abordadas - e refutadas - por Piaget. Outras ficaram de fora de sua obra: por que o desamparo progressivo do estudo da palavra das crianças? Por que o não reconhecimento de sua sexualidade? Por que a ausência do outro materno na psicogênese?

Ainda que Piaget tenha conseguido ocultar, de si mesmo e de seus leitores todas essas questões, seria tempo, tanto para a psicologia do desenvolvimento quanto para a psicanálise de crianças, de reatar o diálogo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em outubro/2001

 

 

NOTAS

Tradução: Inesita Machado
1 Como todos os lugares-comuns, ele dispensa o estudo dos textos de Freud.
2 Piaget fez uma análise dialética com S. Spielrein e no início participou do movimento psicanalítico.
3 "Todo ganho psíquico consistiria portanto numa organização do sistema por uma retirada parcial e localmente determinada da resistência nas barreiras de contato que diferencia
Ψ de α À medida que esta organização se efetua, a receptividade do sistema neurônico atingiria, de fato, seu limite" (Freud, 1985, p. 22).
4 Com exceção de algumas observações de criança, como o jogo do fortda.
5 Entrevista ao jornal L'Express em 1968.
6 As noções de início ou de fim do desenvolvimento envolvem a idéia, difícil de conceber clinicamente no ser humano, de um estado psíquico adulto estável e maduro, momento em que a mudança dá lugar à estabilidade da maturidade, tendo como contraponto a idéia de autonomia.
7 Aspecto particularmente ressaltado por H. Wallon.
8 Caracterizado pela neotenia da espécie humana.
9 Freud escreve: "ação específica" executada para o "ser importente" pela "pessoa asseguradora alertada pela chamada". Trata-se aqui de lugares, e não de uma psicologia familiar da qual participam "bebê, mamãe e papai".
10 "O anúncio do reflexo de descarga se produz graças ao fato de que cada movimento, em função de conseqüências secundárias, dá lugar a novas excitações sensorials - da pele e dos músculos -, excitações que produzem em W uma imagem, cinestésica" (Freud, 1985, p. 337).
11 Esta afirmação tem sua origem e sua melhor expressão no conhecimento dos sonhos: "Esta reação, tenho certeza, fornece inicialmente algo de análogo a uma percepção - isto é, uma alucinação. Se alguma incitação ao ato reflexo se produz então, segue-se inevitavelmente uma decepção" (Freud, 1985, p. 338).
12 É um Ersatz.
13 Sabe-se que Freud, em seu estudo sobre as afasias, já abordava essa questão da linguagem.
14 A topologia do duplo toro pensada por Lacan (o desejo de um é a demanda do outro) constitui o impasse e o engano alienante e estruturante da satisfação.
15 Condutas descentralizadas precoces são descritas atualmente pelos psicólogos experimentais.