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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.7 no.12 São Paulo  2002

 

DOSSIÊ

 

C(ã)es-terapeutas: o enquadre a serviço do método na análise de uma adolescente

 

A special setting serving the psychoanalytical method in the analysis of an adolescent girl

 

 

Marion Minerbo

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, doutora em psiquiatria pela Universidade Federal de São Paulo, sócia fundadora e atual presidente do Instituto Therapon Adole scência

 

 


RESUMO

Este é o relato de uma análise que só foi possível quando meus cães passaram a fazer parte do campo transferenciai. Tal fato nos obriga a problematizar a transferência enquanto relação intersubjetiva, bem como um enquadre fixado a priori, independente do diagnóstico transferenciai.

Método psicanalítico; diagnóstico transferenciai; enquadre; instituição; campo transferencial


ABSTRACT

This is the narrative of an analysis that became possible when my clogs became part of the transferential field. This fact does oblige us to problema-tize the concept of transference as "inter-subjective relahtionship ", as well as the idea of a setting stablished from outside the analytic process, that is, regardless of the transferer]tial diagnosis.

Psychoanalytical method; transferential diagnosis; setting; institution; transferential field


 

 

...Então saímos, eu, minha paciente e meus dois cachorros, para mais uma de nossas sessões na praça ao lado do consultório. Eles haviam sido requisitados para compor nosso enquadre. A transferência maciça entre minha paciente e minha cachorra não me deixava alternativas. Meu lugar era acompanhá-las, quieta e atenta. Na pele/mente de um cão me foi possível, aos poucos, ir humanizando esta garota.

Tenho, cá para mim, que o trabalho analítico com Tais só foi possível graças aos cães, eficientes c(ã)es-terapeutas. Além de movida pelo desejo de partilhar com os colegas uma experiência clínica sui generis, a apresentação deste caso permite esboçar algumas considerações sobre como o trabalho em hospi-tal-dia fertilizou meu trabalho em consultório, resultando no híbrido que o leitor tem em mãos. A flexibilidade no enquadre externo depende de um rigor no enquadre interno - a postura psicanalítica. Em outras palavras, muda o enquadre, mas não o método.

 

A.C.

Os pais de Tais lhe propõem um trato. Ela deve iniciar uma análise, emagrecer, melhorar suas notas, fazer amigos. Em troca, em seu aniversário, ganhará o cãozinho tão desejado.

Não me parecia uma maneira muito auspiciosa de iniciarmos um trabalho. A demanda de Tais não era de análise, mas de cachorro. Na primeira sessão, vejo uma adolescente de uns 16 anos, alta, gorda, rosto bonito, ostensivamente descuidada no vestir. Sua primeira fala, ao olhar para a cadeira de vime onde a convido a sentar: "esta cadeira me agüenta?".

Esta análise se divide em dois grandes períodos: A.C. e D.C. - antes e depois do cachorro.

Nos primeiros meses do período A.C, conversávamos amigavelmente sobre cães, sua grande paixão. Frases recolhidas me ajudam a iniciar um esboço do universo mental de Tais.

"O pitbull tem uma mordida equivalente a 5 toneladas, é assustador."
"O labrador é muito meigo, amigo."
"O cocker é lindo e fofo, mas fede."

Em vista da possibilidade de ganhar seu cãozinho, Tais passa tardes inteiras num pet shop "escolhendo" o filhotinho mais lindo, mais perfeito.

Soube na entrevista que Tais e seu irmão são adotados. Não era difícil conversar sobre como ela se preparava para adotar um cachorrinho, desejava o mais perfeito etc. Ainda nesta linha, o material clínico que segue era transparente:

"Não entendo as pessoas que compraram um cachorrinho e depois não brincam com ele."
"Tem cachorra que tem mais instinto materno do que muita mãe. Vi uma que deu cria e um filhotinho morreu; a dona jogou no lixo e a cachorra foi buscar por três vezes. Ela não abandonou o filhote, nem morto."

Uma representação importante de sua identidade era o cachorro vira-latas.

"Ninguém quer vira-latas, há preconceito. Também contra gordos."

Marion - Ninguém quer cachorro de pais desconhecidos.

"Tá me chamando de vira-latas?"

A análise parecia ter engatado, principalmente depois de saber que tenho um beagle e uma labradora. Ouvira os latidos e perguntara se os cachorros eram meus, qual a raça, o nome. Trazia revistas sobre cachorros e eu me sentia uma mãe acompanhando a gravidez da filha, folheando, juntas, revistas de decoração de quarto de criança. Seu aniversário se aproximava. Sim, tudo parecia ir bem.

Mas então o que era aquela verborréia amorfa quando a conversa não era canina? O que era aquele vago incômodo que eu sentia quando ia de um assunto a outro, sem que nada tivesse relevo emocional? E de onde vinha minha sensação de que ela "mentia" para mim? Não é que ela procurasse dissimular ou simular alguma coisa, apenas inventava histórias, sem convicção, para preencher a sessão. Histórias de plástico...

Será que Tais vinha às sessões apenas para garantir seu cachorro? Era estranho: ela me parecia tão verdadeira e transparente quando falava dos cães, mas também tão opaca e mentirosa com suas histórias de plástico. Fui percebendo que nem ela havia me adotado, nem ia permitir que eu a adotasse. Assim era a transferência, esta estranha mistura feita de opacidade transparente, verdade mentirosa.

"Vi um gato persa, perfeito, branco, de olhos verdes. Em vez de cachorro, agora quero um gato."

Marion - Não acredito que você seja capaz de fazer isto.

Tais leva um susto, fica imóvel, quieta. "Agora você me deixou muito sem graça."

Eu invadira seu refúgio. Ela não esperava que eu estivesse atenta ao outro lado de suas palavras que são, e ao mesmo tempo não são, '"de verdade".

Chega o aniversário. Tais não passou em todas as matérias. Ao saber das notas, aquela menina durona, que agüenta firme qualquer castigo, chorou - escondido.

A mãe simplesmente anuncia: - seu cachorro "dançou".

Tais joga no lixo tudo o que se relaciona com cães. Enlutece e emudece. A mãe solicita uma entrevista. "Quero dar o cachorro a Tais, mas se eu voltar atrás no trato estarei falhando em meu papel de mãe. Mas também, por que ela não tenta me levar no bico para ganhar seu cachorro? Eu escuto: por que raios ela não faz direito seu papel de filha?"

A mãe quer ser mãe de verdade, mas se agarra ao papel de mãe, plastificando sua maternagem. Mãe tem que ser dura por fora (papel de mãe) e mole por dentro (mãe de verdade). O papel de filha, muito parecido com ser filha de verdade, é chorar e levar a mãe no bico. Enfim, reencontro no discurso da mãe a mesma opacidade transparente e verdade mentirosa que vinha observando em Tais.

Ao solicitar a entrevista, a mãe deseja que eu a autorize a ser mãe de verdade, "quero dar o cachorro". Tais ganha seu cãozinho. Depois desta conversa, o incômodo a que me referi ganhou um contorno: eu e Tais representávamos papéis, e isto plastificava nossa relação.

 

D.C.

Mudança brusca. Assim que ganha sua cachorrinha, Tais adota uma atitude de "cagar e andar" para tudo o que eu digo. Na escola torna-se "delinqüente". Em casa não cuida do cachorro. Todos se irritam com ela, que apenas dá de ombros. Tais é psicopata? Ou seria apenas a encenação de mais um papel?

O trabalho ficou mais difícil. Eu tendia a ser superegóica, por exemplo, quando ela quase deixou sua cadelinha morrer. Tentava interpretações "continentes" de supostas angústias relacionadas à adoção. Conversei com ela sobre a distância entre a mãe ideal que imaginava ser e a mãe que ela era de verdade. Nada a tocava.

Para falar a verdade, minhas interpretações também não me convenciam. Era estranho, eu começava a frase visando a um supôs- to eu-angustiado e me descobria falando com um "eu-cago-e-ando". Além de me deixar irritada, eu perdia o pé. Assim, fui obrigada a reconhecer que, apesar de mim mesma, eu continuava fazendo "papel" de analista, e era justamente este o campo transferenciai (Herrmann, 1991) em que estávamos: o campo de plástico.

O mesmo drama se passava com Tais. Eu percebia que, às vezes, ela desejava contar alguma coisa significativa. Porém, quando ia dar o braço a torcer (como a mãe, que queria dar o cachorro, mas não podia dar o braço a torcer), quando iniciava uma fala de verdade, em pouco tempo estava falando da boca para fora. Fora dos papéis, Tais entrava em pânico de verdade. O eu-delinqüente era, possivelmente, mais um papel. De onde surgira?

É importante frisar que, embora me refira à representação de papéis, não penso que sejam falsos, no sentido do falso self. Ao contrário, um papel é sempre de verdade, pelo menos enquanto dura. Como no teatro. Como o jogo das crianças. Como a transferência, pois é disto que se tratava.

Assim, em meio ao bombardeio das grosserias do "eu-cago-e-ando", eu tinha duas preocupações: evitar o tom superegóico que reforçava o eu-delinqüente e procurar conversar de verdade com ela. Eu estava decidida a só dizer o que eu realmente quisesse dizer. Dar o cachorro, se esta fosse minha vontade, sem me preocupar com o papel de mãe-analista.

"Sabe, Tais, eu começo a falar com você e de repente você não está mais lá, eu não sei mais com quem estou falando.
Ah, mas eu não vou fazer como esta sua amiga, que fingia que tinha aulas particulares enquanto o professor fingia que dava aula.
Olha, eu tenho todo o tempo do mundo para tentar ter uma conversa de verdade com você."

Eu continuava a me perguntar de onde surgira aquele eu-delinqüente.

 

MELANCOLIA

Procuro outros canais de comunicação, já que, no campo transferenciai acima descrito, as palavras, minhas e dela, tinham esta estranha propriedade de se transformar em plástico no meio do caminho. Instalo uma pequena oficina de artes no consultório. Minha hipótese era de que uma mudança no enquadre poderia colocar em cena outro eu de Taís, assim como no teatro a mudança no cenário indica a entrada de outros atores ou, pelo menos, de outra cena.

Ela faz um desenho significativo: um mergulhador sendo devorado por tubarão, enquanto outro mergulhador olha, sarcástico, do lado de fora. Uma parte dela sofre, a outra finge que "caga-e-anda", mas a quem eu poderia dizer isto? O eu-que-sofre não estava lá, o outro daria de ombros. Rapidamente, a produção artística foi se plastificando. .Tentei jogos. Se vencesse, me maltratava, se perdia, dava um jeito de não se importar. Desânimo.

Neste meio tempo, seu comportamento na escola e suas notas estavam se tornando insustentáveis. Sugeri uma escola especial, cuja postura não é punitiva e compreenderia a "delinqüência" como sintoma.

Embora me xingasse como um pitbull, Tais tinha os olhos doces de um labrador. No dia em que veio bêbada à sessão, depois de ter embebedado seus colegas de classe, tinha certeza de ter atingido meus limites. Então eu me lembrava de sua primeira fala: "esta cadeira me agüenta?" Eu imaginava que aqueles olhos de labrador tinham uma história para contar.

Para me contar esta história, entra em cena o eu-poeta de Tais. Ela escrevia bem! O tema foi outra surpresa. Todas as poesias falavam, de uma maneira ou de outra, do primeiro grande amor, para sempre perdido. Em algumas poesias jurava fidelidade eterna a um suposto namorado que falecera, deixando em seu lugar o esplendor da Lua. "Não haverá outro além de você". Em outras, acusava o namorado de ter "aprontado" com ela e de não ser merecedor do imenso amor que, não obstante, ela continuava a lhe devotar. O curioso é que ela jamais se apaixonara por alguém, nem tivera namorados. Enquanto ela lia os poemas, exigia que eu ficasse de costas para ela, de tão envergonhada. Jamais repetia um poema, nem sequer um trecho. Lembro-me de ter interpretado outra poesia, em que eu lhe falava de seu pacto com "as sombras", sua dolorosa renúncia ao sol, às palavras, enfim, ao humano.

O diagnóstico de melancolia não é difícil. As poesias falam do investimento maciço no objeto perdido, ao mesmo tempo amado e odiado. A teoria fala em ódio ao objeto transformado em ataque ao próprio ego -"você não presta para nada". Seria esta a origem do eu-delinqüente? Se o "namorado" a tinha abandonado, é porque ela não o merecia. Afinal, era uma garota gorda, desleixada, insuportável. O mais grave, neste quadro, era a impossibilidade de investir amorosamente num novo objeto. Como abrir espaço para o eu-amoroso, anunciado pelas poesias?

 

CONSULTÓRIO E INSTITUIÇÃO: ENQUADRES DIFERENTES, MESMO MÉTODO

Antes de prosseguir, mostrando como e por que introduzi os cães no enquadre da análise, creio ser útil uma pequena digressão em torno do método e do enquadre.

Há 30 anos nascia em Paris um hospital-dia para adolescentes com transtornos emocionais graves (CE-REP). Seus fundadores, dois psicanalistas, estavam às voltas com a necessidade de justificar, do ponto de vista teórico, por que uma tal mudança no enquadre - do consultório para uma instituição - não desnaturava o essencial de um tratamento psicanalítico.

A resposta era simples: o enquadre mudava, mas o método não, ou seja, no dia-a-dia da vida institucional garantia-se certo tipo de escuta, que só é possível quando balizada pelos conceitos de inconsciente e transferência. A postura psicanalítica - uma escuta descentrada do discurso do paciente - vai construindo uma compreensão teórica do caso, que orienta a resposta do analista. A fala do analista considera o desejo do paciente, porém não coincide com ele.

Neste trabalho percorro o caminho inverso. Em certa fase da análise, criei um enquadre de hospital-dia para trabalhar com Tais no consultório: recorri a meus cães como "co-terapeutas". Do meu ponto de vista, o método exigia a mudança de enquadre, esta se impunha a partir do processo analítico.

O enquadre é, freqüentemente, problemático na análise de adolescentes bastante comprometidos (Cahn, 1985). Quando muito rígido, torna-se perigoso pela importância conferida à relação interpessoal. No outro extremo, quando é frouxo e diluído, não oferece uma continência adequada. Freqüentemente, ele se torna o lugar e o pretexto para transgressões de toda ordem. A partir de certo ponto, tais transgressões comprometem a própria continuidade do processo analítico.

O enquadre oferecido por um hospital-dia soluciona essas dificuldades. A instituição não só permite, como encoraja, a "atuação", no sentido teatral do termo, isto é, de colocar em cena, concretamente, a complexidade dos dramas emocionais. Nas palavras de Bernard Penot (1999), a instituição funciona como um neo-meio de vida. O espaço de vida é partilhado por adolescentes com dificuldades emocionais e por adultos que vão implicar-se não apenas no nível da palavra, mas também, e sobretudo, através de tarefas, divididas com os jovens ao longo do dia. É a partir da experiência de vida cotidiana que pode ser produzida uma palavra em comum, portadora de um trabalho de subjetivação. A noção winnicottiana de espaço transitional é preciosa: o ambiente terapêutico é concebido como uma matriz de colocação em discurso da experiência vivida.

Ocorre que Tais não era tão perturbada, a ponto de exigir um tratamento institucional, nem suficientemente normal, a ponto de suportar um enquadre tradicional. Creio ter deixado claro como era difícil estabelecer com ela uma distância ideal. Havia o risco de estar excessivamente próxima, intrusiva; ou muito distante, indiferente, estrangeira. A posição face a face deixava a paciente em pânico. O campo transferenciai fazia com que nos refugiássemos, ambas, no desempenho de papéis e transformava nossas palavras em falas de plástico. As tentativas de criar canais para a expres- são artística ou lúdica tiveram o mesmo destino.

À semelhança do consultório, a equipe que trabalha numa instituição deve, em primeiro lugar, deixar que surja o material clínico. Entre outras coisas, o paciente irá repetir e colocar seus dramas em cena. Assim que algo tenha surgido, deve-se tomá-lo em consideração (Herrmann, 1991). Uma das maneiras de fazê-lo é assumir, transferencialmente, as características do meio de origem do adolescente, principalmente de seu meio familiar. O trabalho de deixar que surja para tomar em consideração será completado nas reuniões clínicas, ou de síntese, quando a equipe procura funcionar como a mente de um analista. As vivências de cada tera-peuta são tomadas em consideração para, a partir do conjunto, tentar conferir um sentido ao que se observou no dia-a-dia. Como se vê, o método é o mesmo.

A grande diferença é que na instituição os vários eus do paciente podem escolher terapeutas concreta-mente diferentes para se apresentarem. Um paciente (cada um de seus eus) pode grudar em certo técnico, hostilizar um segundo e erotizar a relação com um terceiro. Cada um desses eus cria um campo transferenciai específico, determinando, nos vários terapeutas, reações diferentes ao mesmo adolescente - seja em função de características pessoais, seja daquilo que aquele eu põe em cena.

No consultório isto também acontece: nem o paciente nem o analista são os mesmos, dia após dia. Nem sempre isto fica tão claro como na instituição. E pode acontecer de algum aspecto do paciente sequer se manifestar, por não encontrar no analista a ressonância necessária.

Retomando o caso de Tais, o enquadre tradicional mostrou seus limites para o bom funcionamento do método. As poesias expressavam a impossibilidade do luto pelo objeto primário. Trancada na melancolia, aderia a uma única representação de si mesma - a "delinqüente". Ela se movimentava nos estreitos limites entre odiar e ser odiada. Se estivesse em tratamento num hospital-dia, ela certamente encontraria na equipe algum terapeuta, ou mesmo outro paciente, com quem estabelecer uma relação de outra natureza. Em outros termos, a diversidade de terapeutas, com suas características pessoais variadas, poderia mobilizar e colocar em cena outros eus de Tais. Por que não lhe oferecer esta possibilidade no consultório? Por fim, é ela mesma que me dá a dica quando começa a trazer sua cachorrinha Loli às sessões.

 

CAMPO TRANSFERENCIAL: HUMANIDADE CANINA

O caminho para a recuperação do humano em Tais passou por um longo período canino. Sua paixão por cães continuava presente. O tema da adoção, provavelmente relacionado à melancolia, podia ser trabalhado a partir de sua relação com Loli. A idéia de introduzir os cães no enquadre surgia, assim, "de dentro" do processo. Coloco o enquadre a serviço do método.

A primeira a entrar em cena foi sua "filha"; pouco depois, os meus cachorros. Loli, na verdade Lolita, era a única "pessoa" com quem Tais realmente se importava. E assim que entra em cena o eu-amoroso da paciente. Loli e eu nos cheiramos até ficarmos amigas. Enquanto Tais e eu jogávamos cartas, Loli brincava pelo consultório ou ficava a nossos pés.

"Ela não é uma fofa, um amorzinho? Viu como ela gosta de você? Quer trazer um osso para ela, na próxima sessão?" O tom carinhoso de Tais se destinava a mim através de Loli. Nesta nova fase, em lugar de xingar-me ostensivamente, acari-nhava-me disfarçadamente. Também meus carinhos eram oferecidos ao cão, mas era Tais quem os recebia. Havíamos encontrado a distância ideal para uma relação afetuosa. A troca, indireta, já não ameaçava. A adoção bilateral começava a acontecer. Eu já não tinha a sensação de representar um papel, ou de dizer coisas de plástico.

Um dia Tais pega Loli no colo, "meu amorzinho", e depois a joga no chão, "sua vagabunda!" A ambivalência entra em cena. Pouco tempo depois, pergunta se pode conhecer meus cachorros, que ficam num quintal ao lado do consultório. Na verdade, eles já se conheciam. Sandy - uma labradora enorme, cor de mel - e Billy - um beagle safado, por vezes bravo - latem sempre que ela chega, e só quando ela chega. Por que latiam para receber alguém que nunca tinham visto?

A importância de Loli na criação de novos canais para a circulação dos afetos levou-me a atender à solicitação de Tais: trago meus cachorros para o consultório. Decido assumir os riscos. Num primeiro momento, entra apenas Sandy, que é mais dócil. As duas se jogam, uma nos braços da outra, com tal sofreguidão que me surpreendo. Parecia que as duas se conheciam havia muito tempo. Tais reencontrava a destinatária daqueles poemas que falavam do grande amor perdido. "Você é linda, maravilhosa!", diz Tais beijando Sandy, que também a lambia inteira. Comento que parecia que as duas se conheciam desde sempre. Se antes a troca amorosa entre nós era mediada por Loli, agora o campo transferenciai esquenta porque, afinal, é a minha cachorra que ela "ama de paixão".

Tais passa a trazer presentinhos para Sandy. Docinhos, ossos, biscoitos. Ela está, ostensivamente, tentando roubar, seduzir - ou seria adotar? - minha cachorra. E consegue! Minhas intervenções, como sempre, eram mínimas, respeitando os limites impostos por Tais. Eu dizia a Sandy: "diz oi para a mamãe, mamãe chegou, o que ela lhe trouxe hoje?" E para a Tais: "sua filhinha está com saudades!" Tais quer me mostrar o tempo todo como Sandy gosta mais dela do que de mim. A relação de adoção é mais forte do que a biológica?

Na realidade, as identificações possíveis eram muitas. Os papéis de mãe/filha/biológica/adotiva alternavam-se entre Sandy, Loli, Tais e Marion. Também Loli veio conhecer os meus cachorros - irmãos de criação. Com a entrada de Billy, o consultório ficou pequeno. Saíamos, Tais, eu, Billy e Sandy para passear na praça. Ali ficávamos a sessão inteira. Eu, a mãe biológica, ela, a mãe adotiva, e as crianças que, honestamente, gostavam mais dela que de mim. Conversávamos sobre amenidades, sobre nossos cachorros, e eu via Tais rir, quase descontraída! - coisa que jamais fizera no consultório. "Você viu, a Sandy gosta de nós duas!" eu brincava com ela. Assim passaram-se muitos meses. Das três sessões semanais, uma ou duas eram na praça. As outras, jogando cartas em silêncio. Tais se encarregava de esfriar o clima afetivo, restabelecendo a justa distância entre nós.

Um fato curioso dá o que pensar sobre os mistérios da compulsão à repetição e à transmissão transgeracional da vida psíquica

- quer dizer, das fantasias inconscientes dos pais. Tais viaja e, na volta, encontra Loli grávida. Era uma típica gravidez de adolescente, resultado da transa da jovem cadela em seu primeiro cio com o cachorro vizinho. "É uma vagabundinha, esta minha Loli!" O diminutivo, bem como o tom amoroso, sinalizava as pazes com a "vagabunda" - expressão que usava para se referir, com desprezo e raiva, à mãe biológica. Ainda me lembro da sessão em que Tais alternava juras de amor e pontapés à pobre Loli.

A repetição freqüente do termo "vagabunda/vagabundinha" e a gravidez precoce da cadelinha me fizeram imaginar um mito de origem para Tais. Curiosamente, seus pais - eu já lhes havia perguntado - não tinham nenhum. Suas características físicas -alta, pele clara, olhos esverdeados, traços finos - me levaram a imaginar uma jovem de classe alta - uma sensual Lolita? uma "vagabunda"? -grávida aos 14 ou 15 anos. Em minha fantasia a garota é obrigada, pela família, a livrar-se do bebê para evitar um escândalo. Tais tem seu próprio mito de origem: roubaram-na de sua mãe biológica, também contra sua vontade.

Pois bem, Loli dá à luz (Tais faz o parto) e, logo depois, Tais não quer mais ver Sandy. No início eu fico chocada com o que me parece ser uma rejeição maciça. Onde foi parar todo aquele amor? Mas sua explicação me surpreende ainda mais. "Se eu passar o cheiro da Sandy para os filhotes da Loli, ela não vai mais reconhecê-los, não vai mais querer cuidar deles e dar de mamar."

Assim, ela não hesita em abandonar Sandy para que Loli não abandone seus filhos. Tais empenhava-se em garantir as condições necessárias para que Loli fosse uma boa mãe.

Retrospectivamente, o campo transferenciai propiciado por este enquadre ganha sentido.

De um lado, minha função era semelhante à presença silenciosa de um cão junto à mesa de trabalho do dono. Eu, sua analista, era um cão, um fantástico "cão falante". Criava-se um ambiente terapêutico semelhante ao de um hospital-dia, no qual as relações acontecem em todas as direções. Os vários eus de Tais relacionavam-se com os c(ã)es-terapeu-tas, de acordo com suas características "pessoais". Uma delas era o amor incondicional. Em suma, eu era um cão e os cães eram os terapeutas.

Porém o inverso também era verdadeiro. Afinal, eu nunca deixei de ser sua analista e, na minha escuta, era comigo que Tais se relacionava através dos cães. Eles eram apenas os mediadores necessários entre mim e ela, eram meus embaixadores. O resultado disto é que certa gama de afetos, antes represada, agora fluía entre nós.

Passamos por vários períodos nesta análise. O campo da representação dos papéis, que plastificava as palavras; o da humanidade canina, que prescindia de palavras. Em ambos havia uma mesma regra: encontrar e respeitar a justa distância entre nós. Se ficasse muito quente, Tais entrava em pânico; muito frio, ela era um cãozinho vira-latas abandonado à melancolia. Neste sentido, as alterações introduzidas no enquadre facilitaram o trabalho.

Fui aprendendo que, para tocar Tais sem assustá-la demais, eu não poderia ultrapassar certo limite de palavras por sessão. Desrespeitar esta regra significava colocar-me fora do campo da justa distância. Este é o campo transferenciai de minha presença canina, atenta, orelhas em pé, faro sensível. Como um cão de guarda, ou de companhia, eu podia quebrar o silêncio para apontar uma ou outra coisa. Soa estranho, mas penso ter conduzido a parte mais significativa desta análise na pele/ mente de um cão. Agora posso reinterpretar aquela demanda inicial de análise que me parecia tão pouco promissora: "faço análise, desde que ganhe um cachorro" - uma analista-cachorro.

 

REINVESTINDO A PALAVRA

Como sói acontecer, quando percebi, Tais já não requisitava os cachorros na sala de análise. Sandy, Billy e Loli deixaram de fazer parte do enquadre. As coisas mudavam. Ela agora queria entrar na internet, pelo meu computador. Entrava nas salas de chat e conversava com os rapazes. Era um território novo, para quem sempre preferira animais a gente. Não obstante, a regra da justa distância continuava presente nas conversas virtuais. Preservada pelo anonimato, Tais anotava e-mails e telefones dos rapazes para dar continuidade ao "relacionamento".

O papo era estereotipado, o que lhe convinha, dada sua falta de intimidade com as palavras. Entrava nas salas com o nick de Bonita e Gordinha e perguntava: "alguém aí não tem preconceito contra gordi-nhas?". "Gordinha" era a nova maneira de trazer o "vira-lata" do início da análise, ambos alvo de rejeição e preconceito. Eu escutava: "Alguém, além dos cães, pode se interessar por mim?".

A conversa na sala de chat segue um roteiro. Cedo ou tarde vem a pergunta: como você é? Ela se descrevia de maneira vulgar: "tenho pele dourada, peito, bunda...gostou?". Certa vez um rapaz quis saber mais: "como é sua personalidade?". Tais balbucia o que ouvia em casa: "sou doce, mas agressiva...", não tinha idéia de como continuar. Frente à insistência do garoto, por quem ela se interessava, Tais me pede para descrever-lhe como ela é. Não verbalmente, é claro, mas por escrito (ainda a justa distância!) para enviar um e-mail ao rapaz. Assim, sou diretamente convocada a falar com ela, sobre ela. O cão, apesar de ser o melhor amigo do homem, nada pode dizer sobre a personalidade de sua dona...

Nas sessões seguintes, em lugar de entrar na sala de chat, Tais pesquisa sites de astrologia. Ela quer saber o que os astros têm a dizer sobre ela, imprime tudo o que encontra sobre seu signo. Recusa o pedido de análise? Entra em sites esotéricos que ensinam a usar perfumes e velas coloridas para levantar o astral. Nem acredito no que vejo: ela, que era dark, gótica, da tribo que "cultuava a morte", agora procura algo para levantar seu astral! A melancolia vai se dissipando. E com interesse que ela anota os perfumes que produzem determinados benefícios. Fico sabendo que bruxas não são más criaturas, é o povo que as vê assim. "Elas ajudam a conseguir um amor, nem que seja roubando o namorado de outra, por isso têm fama de más." Taís imprime, retiradas dos sites, receitas de poções do amor e de banhos aromáticos.

Embora para nós, adultos, os sites possam ser vistos como uma fuga do mundo - afinal, são um universo virtual - aprendi que, para os adolescentes, os sites podem ser objetos, como quaisquer outros, de intenso investimento libidinal. Pelo menos, era assim que eu via Taís, saindo do atoleiro em que se encontrava.

Taís nunca me contou nada sobre seu dia-a-dia. Nosso trabalho processava-se em outra dimensão, e ia discretamente produzindo seus frutos. Um dia, na praça, quando ainda passeávamos com os cachorros, ela anuncia que entrou em duas faculdades. Eu sequer sabia que havia prestado vestibular. Em outra ocasião conta que fez 18 anos, ia tirar CIC, carta de motorista e ganhar um carro. Emagrecera. Tinha alguns amigos. Meses depois revela que vai passar alguns meses fora, num intercâmbio para aperfeiçoar seu inglês. Entramos no site da cida-dezinha em que ficaria. Vimos fotos do lugar, as danceterias, o mapa da cidade. Viajávamos juntas.

Tais se vai, em seu primeiro movimento de autonomia. Antes, porém, ela me pergunta: "Você não vai me dar nenhum presente, nenhuma lembrança?" Eu lhe dou um marcador de livros que ficava perto de meu computador e com o qual ela brincava enquanto navegava na internet.

 

NOVA HISTÓRIA?

Uns cinco meses depois, Taís retorna. A viagem foi muito boa e importante. Agora estuda hotelaria. Iniciou um estágio. Capricha no visual para trabalhar. Senta-se na cadeira ao lado do divã. A timidez e a falta de jeito para conversar são notórias, mas ela faz um esforço. Chega perto do final de seu horário, para garantir a justa distância. E assim se mantém por várias semanas.

Um dia ela aparece com uma nova proposta: quer comprar dois hamsters em sociedade comigo. Cada uma de nós pagaria a metade das despesas. Eu recordo, junto com ela, que na entrevista inicial seus pais haviam relatado que Tais tinha dois hamsters. Por várias vezes ela permitira que eles escapassem do quarto e passeassem pelo apartamento. Estas escapulidas "sem querer/querendo" contrariavam o combinado com a mãe, que tem pavor de ratos. Esta obriga Tais a se desfazer dos bichinhos. Ela obedece sem reagir. Nunca mais teve notícias. "Talvez minha mãe os aceite desta vez, se eles pertencerem a nós duas."

Não é difícil atribuir um sentido à proposta. Ela deseja reconstruir uma história, a sua história. O destino dos "filhos" teria sido diferente, caso tivessem pai e mãe? Ou uma avó que aceitasse criar a neta? Conversamos também sobre o que aconteceria caso sua mãe não aceitasse os hamsters novamente. "Você cuida deles para mim, eles serão seus também!"

Para encurtar a história, as hamsters (eram duas fêmeas) passaram a morar comigo. Batizou-as de Taís I e Taís II. Uma era brava, mordia ("não morde a mamãe, sua putinha!"), a outra era dócil, carinhosa. Os animaizinhos estavam sempre no consultório quando ela chegava. Taís brincava com elas, trazia comida, brinquedos e serragem limpa para a gaiola.

Com o tempo este tema foi se esvaziando, perdendo sua vitalidade, tendendo à plastificação. Taís propõe o fim de nosso trabalho. Percebo que o nó principal de sua história emocional fora desatado. O resto teria que ficar para outra análise. Ficou combinado que Taís poderia vir visitar seus hamsters quando desejasse.

 

EPÍLOGO

Ela não retornou. Entretanto, seis meses após o término da análise, ao voltar de uma viagem, encontro um presente que ela fizera especialmente para mim: uma pequena tela pintada em vermelho com vários rostinhos sorridentes e uma carta. Nesta, ela dizia que recentemente tinha-se dado conta de que me maltratara durante nosso trabalho. Explica que me via como inimiga, mas agora entende que eu era sua amiga. Agradecia por tê-la ajudado, acrescentando, bem ao seu estilo, que não esperava nem queria que eu respondesse à car- ta. Desejava apenas que eu soubesse tudo isso. Fiquei satisfeita em ter notícias dela, mas também decepcionada, pois não havia qualquer menção aos hamsters - que continuam comigo. Tive que aceitar o fato de que ela não pretendia reabrir a questão da doação dos bichinhos que me havia feito. Para ela, era um fato consumado.

 

PÓS-ESCRITO

Vamos partir do pressuposto de que o leitor reconhece aqui um trabalho psicanalítico. Se assim for, ele problematiza a noção de transferência enquanto relação intersubjetiva. Em minha instituição de formação, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, identifico pelo menos duas maneiras de concebê-la. Como relação entre a pessoa do paciente e a pessoa do analista, e como relação entre os objetos internos do paciente, projetados sobre/ para dentro do analista.

Vejamos, primeiramente, a transferência como relação entre duas pessoas. De cara, soa estranho afirmar que a transferência possa ser a relação entre Tais e o cão. Por outro lado, não é exato supor que a repetição do passado no presente corresponde, ponto por ponto, à relação entre paciente e analista, mesmo que mediada pelo cão. As coisas que acontecem numa análise vão além disso, como se discutiu em reunião científica. Dois exemplos desta ultrapassagem: em certo momento da análise, digo à paciente que não acredi- to que ela trocaria seu futuro cachorrinho por um gato bonito, sua resposta sugere que minha fala teve efeito interpretativo, em outras palavras, foi uma interpretação transferenciai; em outro momento, percebo que "algo transforma as palavras, minhas e de Tais, em plástico". Nestes dois casos, é evidente que a transferência é algo diferente da relação concreta entre nós, até porque nos ultrapassa. É mais apropriado dizer que este algo - o campo transferenciai - organiza as relações entre analista e paciente de modo a excluir a possibilidade de uma troca verbal "de verdade".

O campo transferencialé aquilo que determina a maneira pela qual a relação entre analista e paciente vai se estabelecer, durante cada período da análise. Dito de outro modo, é aquilo que faz com que as relações entre Tais, os cães e mim, tenham de ser de um jeito, e não possam ser de outro.

Assim, a transferência não é propriamente a relação emocional (que seria algo observável, e, portanto, consciente), mas sua condição de possibilidade, sua ordem de determinação. Esta "não é acessível à observação (é inefável!) por ser inconsciente", tanto para o analista quanto para o paciente.

Da mesma forma que transferência não é sinônimo de relação emocional, também não se reduz "àquilo que Tais faz comigo", "como ela me vê", "quem ela quer que eu seja". Em outras palavras, transferência não pode ser sinônimo de identificação projetiva, exitosa ou não. Vimos que fui obrigada a desistir das palavras e a conduzir esta análise na pele de um cão. Não penso que tenha sido uma atuação, resultante de identificação projetiva com êxito. Os resultados mostram que a análise progrediu, o que não aconteceria em caso de atuação. Haveria algum objeto interno, em mim projetado, capaz de explicar as condições peculiares desta análise? Dizer que precisei me identificar com um "objeto bom" é verdade, mas é pouco, porque não dá conta da especificidade do que aconteceu aqui. Afirmar que me identifiquei com um "objeto canino" é óbvio, mas o que é um objeto canino? Enfim, penso que esta análise problematiza a idéia de que transferência seja sempre identificação projetiva.

Finalizando, o campo transferenciai leva em consideração as concepções anteriores, porém situa-se num lugar um pouco diferente em relação a ambas. Considera, certamente, a relação emocional da dupla, mas transferência seria, antes, sua ordem de determinação. Considera a identificação projetiva, porém como um mecanismo de defesa entre outros, capaz de conferir certas características ao campo transferenciai. Enfim, se este é um trabalho psicanalítico, ele nos encoraja a explorar outras técnicas para o manejo de pacientes difíceis, adolescentes ou não. E claro que há o risco do vale-tudo. Podemos optar: dominar o método e tentar chegar lá onde está o paciente. Ou?...

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Cahn, R. (1985). Adolescence et folie. Paris: PUF.         [ Links ]

Herrmann, F. (1991). Clínica Psicanalítica: a arte da interpretação. São Paulo, SP: Brasiliense.         [ Links ]

Penot, B. (1999). Texto inédito (s/t), apresentado no I Encontro Clínico Institucional promovido pelo Instituto Therapon Adolescência.         [ Links ]

 

 

Recebido em março/2002