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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.7 no.12 São Paulo  2002

 

ENTREVISTA

 

O CEREP e o hospital-dia para adolescentes do parque Montsouris: entrevista com Bernard Penot1

 

The CEREP and the day-hospital for adolescents in the Montsouris park: interview with Bernard Penot

 

 

Gislene Jardim

Psicanalista. Doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

A autora apresenta trechos de uma entrevista realizada com Bernard Penot, um dos fundadores do CEREP (Centre de Réadaptation Psychotérapique) e atual diretor do Hospital-Dia para Adolescentes do Parque Montsouris, em Paris. Nesta entrevista são abordadas questões referentes à problemática do tratamento institucional de adolescentes psicóticos.

Bernard Penot; CEREP; adolescentes psicóticos; tratamento institucional


ABSTRACT

The author presents slices of the interview realized with Bernard Penot, one of the founders of CEREP (Centre de Réadaptation Psychotérapique) and present director of Hô-pital de Jour pour Adolescents du Pare Montsouris, in Paris. In this interview there will he approached questions reffering to the problematic institutional treatment for psycothic adolescents.

Bernard Penot; CEREP; psycothic adolescents; institutional treatment


 

 

A fundação, em Paris, do CEREP (Centro de Readaptação Psicoterápica) em 1964, inaugurou novos rumos para grandes questões no terreno da psicanálise, uma vez que as soluções repercutiram tanto no campo teórico quanto no campo clínico. Duas questões fundamentais nortearam sua fundação: o tratamento (psicanalítico) das psicopatologias graves na adolescência e, como conseqüência, o trabalho institucional como saída para a inclusão social desses pacientes. Os fundadores do CEREP encontraram-se diante de questões técnicas e éticas que, à luz da psicanálise, puderam ser contempladas na montagem de dispositivos institucionais que abarcaram não somente o discurso psicanalítico como também o discurso médico, o pedagógico e o discurso psicológico sobre a adolescência com problemas. Os diferentes discursos sobre a adolescência fazem hoje do CEREP uma instituição de intervenção clínico-pedagógica para os adolescentes e seus familiares.

Hoje o CEREP mantém quatro instituições: o hospital-dia para crianças (Centro André Boulloche), o Centre Médico Psicopedagógico (CMPP), o Instituto Médico-pedagógico e Médico-profissional (IMP-IMPRO) e o hospital-dia para adolescentes do parque Montsouns.

O hospital-dia do parque Montsouris, cujo diretor é o Dr. Bernard Penot, recebe jovens com idade entre 12 e 20 anos que apresentam graves problemas de personalidade, porém sem deficiências intelectuais. Os problemas apresentados pelos adolescentes podem ser resultado de uma estruturação psicótica ainda na infância ou de uma descompensação surgida após a puberdade. Entre os quadros tratados aparecem, ainda, as fobias e as dificuldades escolares graves.2

O tratamento no hospital-dia é estabelecido de acordo com a demanda de cada caso. No entanto, a terapêutica comporta sempre uma dimensão médica e uma dimensão educativa, incluindo psicoterapia individual, institucional e familiar. Como enquadre do tratamento, o adolescente pode também estar no hospital-dia em tempo parcial, envolvido com trabalhos individuais ou em pequenos grupos. A equipe do hospital-dia é constituída por psiquiatras, psicólogos, educadores, enfermeiras, assistentes sociais, psicopedagogos, artistas e estagiários. A saída do hospital-dia visa à reinserção do adolescente em uma formação, seja ela secundária, superior, técnica ou profissional. Há uma equipe de profissionais que se ocupa do pós-tratamento.

Em um clima de extrema receptividade, o Dr. Bernard Penot concedeu-me uma entrevista que revela a transmissão da psicanálise através da história da fundação do CEREP. Seguem trechos da entrevista realizada em Paris, em outubro de 2001.

Gislene Jardim: O CEREP é uma instituição de vanguarda no tratamento de adolescentes gravemente comprometidos, sendo notáveis suas contribuições teórico-clínicas no cenário psicanalítico. Dr. Penot, conte-nos sobre a fundação do CEREP: quais eram as primeiras preocupações com os adolescentes psicóticos e o que mudou até os dias de hoje. Como se entende no CEREP o tratamento psicanalítico dos adolescentes psicóticos e como é a organização da equipe do CEREP para fazer borda à psicose na adolescência?

Bernard Penot. Eu posso começar pela questão das origens do CEREP, sua fundação. Foi no início dos anos 70, já há 30 anos. A gente não sabia, e realmente começamos não sabendo... Foi um pouco por acaso que tivemos a oportunidade de criar um hospital-dia para adolescentes. Nós começamos com poucos adolescentes, com cinco, seis, oito e depois mais e mais. Iniciamos com uma equipe muito reduzida, com quatro ou cinco pessoas e poucos adolescentes, e estávamos tentando saber como estabelecer um quadro para viver coisas com adolescentes durante o dia porque o que sabíamos no início era que não se tratava de organizar um quadro com entrevistas individuais - o que era mais comum para os adolescentes neuróticos -, mas se tratava de indicações para adolescentes com perturbações muito graves de personalidade, com uma grande dificuldade de subjetivação da vida psíquica, que se traduzia, seja por um delírio - por exemplo, na psicose delirante -, seja por condutas loucas, por patologias de comportamento, ou por outros sintomas muito graves como certas fobias - por exemplo, as fobias escolares que têm mais a ver com a despersonalização e não com a fobia tal como Freud a entendia, aquela concentrada sobre um objeto condensado. Começamos, então, com esses tipos de adolescentes que não podiam se manter na escola, digo, na escola não-terapêutica, na escola não-especializada. Nós estávamos tentando saber, tentando descobrir juntos, como poderíamos organizar um lugar de tratamento durante o dia, um tratamento que fosse coletivo, um tratamento institucional. Começamos a descobrir as primeiras veias diretivas da nossa atitude através do psicodrama terapêutico. Na semana propunham-se aos adolescentes ateliês e outras atividades com alguns professores que já começaram na instituição, professores de francês e de matemática. Com isso, estávamos tateando o lugar coletivo de palavra, os grupos de palavras, coisas assim.

Gislene Jardim: Ainda na perspectiva da montagem institucional, como é pensado o laço social? Se for pertinente, comente algo sobre a elaboração do conceito de repetição na instituição, da tomada do paciente como uma "carta roubada".

Bernard Penot. Durante as manhãs dos sábados, havia um grupo de psicodrama com indicações específicas, pois, na maioria dos casos, eram pacientes psicóticos gravemente perturbados. Era um psicodrama individual, quer dizer, estávamos em cinco terapeutas com os pacientes, um de cada vez, durante 20 minutos, meia hora. Nesta situação nós realmente descobrimos o que se constituiu, depois, o modelo do funcionamento institucional geral. Para cada paciente havia um diretor de cena - um psiquiatra, eu, por exemplo -, que conhecia o caso, a família e já estava envolvido numa terapia familiar com os pais. Dirigir o psicodrama, quer dizer atender o paciente, conversar um pouco - o que era muito difícil, porque, geralmente, tratava-se de pacientes quase mudos, esquizofrênicos, múticos, delirantes. Mas tentávamos -"como vai?", "o que você fez ontem à noite?", "e a semana passada?"; tentávamos descobrir uma cena que a gente pudesse representar. O diretor de cena, ele mesmo, não encena, ele não representa papéis, ele só recebe o paciente, conversa com ele e diz, num certo momento: "você está de acordo com que a gente possa encenar isso?", ou então, "quer representar o seu papel ou o papel de uma outra pessoa da cena?" E o paciente diz: "eu vou representar o meu papel", ou ele vai dizer: "não, eu vou representar o papel da minha mãe, ou não sei o quê...".

Gislene Jardim: E os pais se encontravam presentes neste momento?

Bernard Penot: Não, não, não. O paciente sozinho com um grupo de terapeutas e os outros quatro terapeutas sentados; o paciente designa, o diretor de cena diz, então, quem é que vai, por exemplo, representar o seu papel e quem é que vai representar o papel do pai, e assim por diante. Então, o diretor se afasta e a cena começa. E depois, num certo momento da cena, o diretor pode intervir para dizer: "você viu como se passa a cena? O que você pensa do que você disse ou do que o outro disse?" Então, fazendo isso, muito rapidamente eu descobri uma coisa que realmente me surpreendeu muito: alguns colegas, representando, repetiam aqueles que eles representavam na cena, por exemplo, o papel da mãe ou do pai do adolescente, que eu conhecia como diretor, mas eles não conheciam de jeito nenhum, nunca haviam encontrado e eu mesmo não havia falado muito a respeito deles porque, geralmente, só havia um resumo muito rápido dos motivos que levavam o adolescente para o hospital-dia; na verdade, nós começávamos a encenar sem preconceitos a respeito dele. Eu descobri, desde as primeiras sessões com o paciente - daqueles que eu conhecia a família -, por exemplo, que uma colega ia imitar perfeitamente a mãe do paciente, imitar suas expressões, suas atitudes e até utilizar suas palavras. E eu pensava, "como ela pode ser informada disso", entende? Então, nós descobrimos aí o que se tornou, depois, uma parte central do trabalho clínico do hospital-dia em geral, ou seja, a observação da repetição com os membros da equipe, com os terapeutas, a observação da repetição induzida nos terapeutas daquilo que o paciente viveu anteriormente, as impressões primárias das percepções mal simbolizadas, das percepções em falta de simbolização de atitudes dos primeiros outros deles, percepções que vão se transferir, se deslocar sobre os membros da equipe, a partir das primeiras experiências.

Gislene Jardim: A leitura do movimento transferenciai atrelada à noção de repetição parece ter mostrado algo novo para a equipe...

Bernard Penot: Nós consideramos que se tratava de um tipo de transferência, a Übertragung, que quer dizer deslocamento; deslocamento no espaço - por exemplo, dos pais para os membros da equipe -, e deslocamento no tempo - quer dizer, uma reatualização anacrônica de coisas vividas, mas mal vividas, porque percebidas em falta de simbolização. Isso nos deu, então, o núcleo, o modelo nuclear do nosso trabalho institucional. Depois, em nossas sínteses clínicas semanais, nós desenvolvemos com a equipe um modelo para tentar favorecer a expressão subjetiva - às vezes, uma expressão esquisita - de qualquer membro da equipe, dos responsáveis do caso, do psiquiatra, do educador, ou da psicóloga mais responsável, mas também de qualquer outro; nunca recebemos com estranheza a expressão de uma posição subjetiva esquisita a respeito de um caso, nunca recebemos essa expressão com a idéia de que alguém tem razão ou de que alguém está errado, mesmo havendo, às vezes, certa posição subjetiva estranha. Sistematicamente, nós recebemos qualquer expressão de qualquer membro da equipe, qualquer que seja a qualificação dele - um estagiário ou um professor, por exemplo -, como um componente importante da constelação alienadora do caso, da constelação primária alienadora do caso.

Gislene Jardim: Suponho que essa leitura da transferência fez e faz, ainda hoje, com que a equipe se coloque numa certa disposição para que se possa ler o que se passa com o adolescente e, a partir disso, seja possível imprimir uma direção de tratamento. Como é que se colocam os membros da equipe em relação ao paciente, pensando na estrutura atual do CEREP?

Bernard Penot: Essa expressão do terapeuta na síntese clínica é uma condição prioritária; para haver a possibilidade de funcionar assim, é preciso que as pessoas da equipe estejam certas de que não vai se tratar de atribuir alguns defeitos pessoais, "você tem essa atitude porque... você tem uma mãe que... não sei o quê...".

Gislene Jardim: Isso não cabe?!

Bernard Penot: Não, nunca. Nunca a gente tenta explicar a atitude subjetiva de um membro da equipe pelo caráter dele, pela história pessoal dele, isso nós ignoramos, não sabemos. Sistematicamente, nós consideramos quais são as razões desta transferência, que é o nosso problema. O que de fato interessa é a expressão desta transferência, e o que as reações do membro da equipe têm a ver com uma certa verdade do caso, seja qual for a personalidade da pessoa que exprima isso. E suficientemente verdadeiro considerar que se trata de alguma coisa com relação ao caso, algo que vá esclarecer o caso.

Gislene Jardim: Isso vai determinar uma nova ação, uma nova intervenção em relação ao caso?

Bernard Penot: O fato de exprimir tudo isso já é uma novidade, porque temos todas as razões, as melhores razões para pensar que, justamente, essas coisas não foram simbolizadas corretamente dentro da família e o fato de conversar é, por sua vez, uma ação e já é terapêutica em si, pois ultrapassa uma pura repetição; já há aí um discurso, uma confrontação falada dessas posições não só contraditórias, mas freqüentemente incompatíveis entre os membros da equipe. Com certos psicóticos, pessoas da equipe que se conhecem muito bem, trabalham juntas há muitos anos, de repente, acerca de um certo caso vão se exprimir como se fosse absolutamente impossível de se identificarem um com o outro, vão se suspeitar mutuamente, por exemplo, de incompetência completa ou de perversidade. De repente, torna-se impossível para duas pessoas que se gostam, que trabalham juntas há 15 anos, entenderem-se mutuamente, isso tudo é muito característico da instituição. As vezes, há pessoas da equipe que, de repente, você vê de um modo surpreendente, que não tem nada a ver com a personalidade usual deles, mas a respeito de um determinado caso vão, de repente, exprimir uma posição estranha.

Gislene Jardim: Como a leitura teórico-clínica dessa situação - a da repetição - retorna para o atendimento de um paciente?

Bernard Penot: Nesses casos, trata-se mais de trabalhar entre os terapeutas, entre os membros da equipe, sem necessariamente exprimir qualquer coisa ao adolescente. Eu posso dizer que se trata de um estado pré-subjetivo das coisas, um estado pré-subjetivo de percepções mal simbolizadas que o paciente pode ter dentro dele - o que tem a ver com a categoria do real psíquico de Lacan, algo que não é imaginário nem simbólico. Esses tipos de impressos no psiquismo têm uma qualidade de real, não sendo representáveis no psiquismo do paciente; são impressões que passam no comportamento, passam no delírio, passam na indução do outro no contato com este paciente. Nesse estado pré-subjetivo não se usa atribuir, dirigir, qualquer interpretação que seja ao paciente, já que ele percebe o que acontece como algo do registro da realidade; o paciente, ele próprio, não pode ter o menor insight; ele pensa que se trata da realidade do outro. Então, o fato que se expressa entre os terapeutas já constitui uma ação terapêutica, ela já modifica alguma coisa. Mais tarde, regularmente, nós vamos constatar que o fato de entender alguma coisa entre os terapeutas nas reuniões de sínteses, de tolerar a posição completamente estranha do outro, de compreender isso e conversar com esse outro, vai ter efeitos na semana seguinte; mesmo sem dizer nada ao paciente, abre-se um espaço de subjetivação possível para ele. Nós observamos mudanças no paciente, na medida em que a equipe pôde simbolizar melhor essas posições estranhas; o encontro com a família ajuda a equipe a formular melhor as suas hipóteses, ajuda a ver que as posições estranhas têm muito a ver com o que podemos constatar na família, posições de clivagem, de desqualificação - por exemplo, com uma linhagem paterna ou com uma linhagem materna -, ajuda a ver que essas desqualificações, essas clivagens vão se reproduzir na equipe de uma mesma forma. Eu poderia dizer que nós constatamos, na maioria das nossas sínteses clínicas, uma transferência de recusa, uma transferência de desqualificação dentro da equipe, que, então, deverá tratar de elaborar.

Gislene Jardim: Nesse sentido, a equipe trabalha muito...

Bernard Penot. A equipe entende muito rápido. Há professoras, por exemplo, ou artistas, ou educadores, ou estagiários que compreendem isso muito rapidamente; tenho a impressão de que a maioria das pessoas entende isso muito rapidamente e os mais resistentes, as pessoas mais resistentes a este tipo de concepção, de ótica, podem ser os psicanalistas que têm uma dificuldade em relativizar assim a percepção deles. Um psicanalista sabe que, se ele percebe alguma coisa, ele logo pensa que ele é psicanalista, por isso ele vê melhor. Isto pode ser certo, mas freqüentemente não é. Um psicanalista, por exemplo, vai ver em função da posição que ele tem na distribuição transferenciai; é por isso que o modelo da carta roubada me parece muito interessante, porque o próprio Dupin, ao final da história, está completamente enganado: a partir do momento em que ele detém a carta, ele se exprime de um modo esquisito e, nesse momento, como o Ministro na cena anterior e como a Rainha na primeira cena. Então, a obtusão, a cegueira não vai depender da formação que os membros da equipe têm no momento das sínteses clínicas; ao contrário, a lucidez vai depender da posição que você tem na distribuição transferenciai. Uma pessoa menos implicada, mesmo sendo menos qualificada, verá melhor que uma pessoa mais qualificada, mas muito envolvida em uma transferência que a cega.

Gislene Jardim: Então, o momento da reunião de síntese é a garantia da boa distância para ver bem o que se passa com o adolescente, pois aí pode se ter a construção de diferentes posições em relação a um determinado caso ou a uma determinada intervenção...

Bernard Penot: Rapidamente um psicanalista vai se aproveitar da formação dele para elaborar, para teorizar, não sei mais o quê, mas, no primeiro tempo da síntese, realmente é interessante ver como qualquer um pode estar cego e a gente tem que saber disso. Com relação à posição de princípios de muitos analistas - de pretender saber mais que um educador, que um professor -, isso obriga um tipo de luto do psicanalista; a posição dele vai ser relativa, ele pode ser enganado como qualquer um. Isto num primeiro tempo.

Gislene Jardim: Até porque ele se dá conta das resistências naquilo que ele também diz... Atualmente, como são os adolescentes que estão no CEREP, quais as hipóteses diagnosticas, as perspectivas de cura? Tem também uma questão que me intriga, particularmente, que é a possibilidade de saída de uma psicose: o que a passagem pela adolescência tem a ver com isso? É possível sair da psicose na travessia pela adolescência? Decide-se algo aí?

Bernard Penot: Primeiro: dois terços dos adolescentes do CEREP podem ser qualificados como psicóticos, a maioria destes desde a infância, e para uma minoria, na adolescência, houve, de repente, um episódio de delírio, por exemplo, que parece surgir assim a partir de uma infância sem problemas aparentes, mas claro que havia, só que a família e os professores da escola não foram capazes de perceber. Agora, o outro terço é de casos limites, graves, de comportamentos, de fobias, de depressões. A propósito do. problema de psicotização, da evolução, da psiquiatrização dos casos, há uma coisa que eu queria dizer desde o início, que por mais que eu trabalhe com este tipo de adolescentes psicóticos não-deficitários - o que faz 30 anos -, quanto mais eu trabalho, mais eu tenho que admitir que a nossa predição, a nossa previsibilidade, a nossa atitude para predizer é quase nula: não sabemos, quando nós atendemos um novo caso no hospital-dia - um adolescente delirante e dotado, por exemplo -, não podemos saber, com qualquer critério, qual será a colaboração da família, a capacidade do adolescente de se interessar, de investir. Não podemos ter a menor predição do prognóstico. Agora, há alguns que nós recebemos de malgrado, mas com a impressão de que não podemos deixar de recebê-los no hospital-dia, que estão muito, muito doentes, dando-nos a impressão de que não vamos conseguir nada, e qual a surpresa - e isso é muito bom -, depois de três anos vão sair da descompensação psicótica, não deliram mais. Há outros adolescentes que nós recebemos com a impressão de que são casos para nós -"ah, com estes vamos fazer um bom trabalho" - e, três anos depois, estamos no mesmo ponto, não aconteceu nada e, no entanto, os pais colaboraram muito, tínhamos uma terapia de família muito positiva, fizemos tudo o que era possível e não deu em nada, ao passo que com outros conseguimos. Quando eu falo em não previsibilidade, quer dizer que uma vez por outra nos enganamos, porém não nos enganamos com qualquer um, caso contrário, teríamos uma previsibilidade negativa se nos enganássemos a cada vez. Mas não, não é isso, às vezes, nós pensamos que um bom caso vai evoluir muito bem, em outras, nós pensamos que um bom caso não vai evoluir de jeito nenhum, ou então que é um caso muito ruim que não vai dar nada, ou ainda que é um caso ruim que vai dar, vai muito bem, depois de alguns anos vai sair completamente de uma problemática psiquiátrica.

Gislene Jardim: Como vocês trabalham a alta do hospital-dia? Há previsão do final de tratamento?

Bernard Penot: O projeto de saída do hospital-dia é um problema. Os adolescentes vêm aqui porque estão muito doentes e não podem se manter em uma escola normal, numa aprendizagem. A gente trata e depois de dois, três ou quatro anos tentamos conceber um projeto de saída: o que eles vão fazer depois do CEREP? Após um tempo de tratamento, nós empreendemos o que chamamos de pós-tratamento, com clube à noite, com possibilidades de entrevistas à vontade durante a semana no hospital-dia, para seguir o projeto de saída. Então, o problema é que se trata de um projeto que pode, freqüentemente, não corresponder às virtualidades do adolescente de quando ele entrou, porque alguns adolescentes entram com o nível da segunda parte dos estudos secundários, por exemplo, e vão sair com o mesmo nível escolar, mas com uma capacidade de fazer estágios profissionais, de aprender praticamente alguma coisa. Freqüentemente, nós temos que ajudar a família e o próprio paciente a baixar a pretensão de prosseguir nos estudos; alguns, por exemplo, revelam-se capazes de uma aprendizagem, até de prepararem um Baccalauréat profissional na França, um colegial profissionalizante. Mas com certas famílias é difícil obter a renúncia de um projeto intelectual, porque a psicose tem um preço: muitos psicóticos podem sair da psicose, mas com um projeto de vida muito mais concreto, mais prático que a idéia inicial de estudos teóricos.

Gislene Jardim: Sabemos desde o início do tratamento institucional que faz diferença se o paciente teve uma infância com crises ou uma infância sem crises - com semblante de neurose -, no caso de adolescentes psicóticos...

Bernard Penot: Em alguns casos conseguimos um certo tipo de normalização. Eu tenho alguns pacientes que saíram há vinte anos daqui, há alguns no meu consultório particular em Paris e outros que vêm me ver de vez em quando. Não posso dizer que se neurotizaram, mas eles não deliraram mais, de jeito nenhum. Então eles têm uma vida que pode ser boa para uns, um pouco marginal, um pouco reduzida para outros, mas, de qualquer modo, há a normalização da vida deles. Alguns que deliraram muito não vão delirar mais vinte anos depois e, por isso, eles vão se adaptar a um certo modo de vida. Alguns serão artistas, outros vão se contentar com trabalhos de escritório, coisas assim, com um meio mais ou menos protegido, ou não, depende. Alguns vão ter uma vida profissional normal, casando-se, tendo filhos, há casos assim também. Existe uma grande variedade de destinos, mas uns 15% não vão sair da psiquiatria; isto quer dizer que 15% dos nossos casos vão passar pela psiquiatria adulta depois do CEREP. Eles até podem ter alguma evolução positiva, mas muito lenta. Esses casos são passados para as mãos da equipe do setor de psiquiatria adulta.

Gislene Jardim: Qual é a sua posição sobre as internações? Em quais situações se recorre às internações?

Bernard Penot: Realmente alguns são internados, mas uma minoria. As vezes, durante os anos de CEREP, há internações íntercorrentes, breves, que não necessariamente são negativas; em outras, uma passagem crítica, mas positiva; ou ainda quer dizer que eles não vão sair da psiquiatria, depende. Entretanto, uma hospitalização intercorrente não quer dizer, necessariamente, que seja uma regressão negativa da evolução.

Gislene Jardim: Existe uma parceria do CEREP com equipes dos hospitais?

Bernard Penot: Depende do lugar do domicílio da família, se eles têm a possibilidade de hospitalizar um caso brevemente. Por exemplo, perto daqui há o Hospital Saint-Anne. Freqüentemente, eu posso dizer que menos de 5% dos casos daqui precisam de hospitalização durante os anos de CEREP.

Gislene Jardim: Esse índice revela que o CEREP é bem-sucedido em sua proposta CEREP de impedir que os adolescentes aqui tratados virem adultos totalmente excluídos de um contexto social mais amplo, que sejam adultos psiquiatrizados...

Bernard Penot: Esse é o nosso objetivo. Nós consideramos um fracasso quando nós temos que dirigir 15% dos casos à psiquiatria adulta; para nós é um fracasso. O nosso objetivo é o de tirar o adolescente psicótico da psiquiatria, essa é a nossa meta, o que parece ambicioso em certos casos.

Gislene Jardim: Quais os impasses que rondam hoje o CEREP?

Bernard Penot: Por exemplo, esses casos muito graves que a gente tem a impressão de não conseguir ajudar, os 15% que vão permanecer no setor da psiquiatria. Há adolescentes que vão ficar muito melhores durante o pós-tratamento, outros que subjetivamente vão aparecer muito melhor, vão se exprimir muito melhor, vão ter uma vida afetiva, por exemplo, vão ter uma amiga, um amigo, mas que se manterão num setor pouco pragmático da vida social, não vão conseguir uma qualificação qualquer, terão empregos precários ou vagos, podendo, por exemplo, produzir discos de música com grupos, que podem ser simpáticos, porém numa existência muito precária. Então, são dois tipos de impasses: primeiro, a psiquiatrização depois do CEREP, dos 15% e, para 10% ou 15% outros, o problema de uma vida social muito limitada, apesar dos progressos subjetivos. Estes são nossos pontos de impasse.

Gislene Jardim: No Lugar de Vida temos um grande impasse diante dos adolescentes, uma vez que a instituição foi concebida para o tratamento de crianças psicóticas e autistas, sendo muito forte, então, a perspectiva da inclusão escolar. Porém, nos deparamos com aquelas crianças que cresceram e, entre elas, algumas para as quais, durante o tratamento, não houve a possibilidade de inclusão em alguma instituição escolar, o que se torna ainda mais difícil após os 14 anos de idade, se considerarmos a estrutura escolar pública no Brasil. Isto fez com que nós trabalhássemos, nos anos de 1997 e 1998 e agora em 2001, com uma proposta de passagem de alguns adolescentes para outras instituições -de tratamento, de escolanzação ou de trabalho -, estabelecendo algumas parcerias e tomando este tempo como ocasião para fechar o tratamento no Lugar de Vida; nos anos seguintes, contamos com o que chamamos de referência para os pais e para os adolescentes. Não temos uma proposta para o recebimento de adolescentes psicóticos, nem se pretende esta ampliação neste momento; estamos lidando com a transição, o que, para alguns, será muito difícil...

Bernard Penot. É muito importante esta transição. Nós encontramos isso no pós-tratamento; realmente, às vezes, é ingrato este trabalho de pós-tratamento.

Gislene Jardim: Por que pode se prolongar por muitos anos?

Bernard Penot: Às vezes. Para os 15% de fracasso dos casos do CEREP, os casos graves, por exemplo, nós vamos propor alguns meses em uma clínica numa província para criar as condições de uma certa ruptura com o meio familiar que, no tempo do tratamento no CEREP, não foi possível; vamos propor o que chamamos estadia de ruptura.

 

 

Recebido em março/2002

 

 

NOTAS

1 Entrevista com Bernard Penol, diretor do Hospiltal-dia para adolescentes do parque Montsouris, realizada em 11 de outubro de 2001, em Paris, com apoio da FAPESP.
2 De acordo com folder de apresentação do CEREP.