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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.7 no.12 São Paulo 2002
FUNDAMENTOS
A cena real construída no Homem dos Lobos
The construction of the real scene in Freud's The Wolf Man
Anna Carolina Lo Bianco
IPsicanalista. Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica. Professora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica - IP/UFRJ
RESUMO
O trabalho acompanha a apresentação que Freud faz da cena primordial que seu famoso paciente - conhecido como o Homem dos Lobos - relata durante o tratamento. Ressalta, no percurso, todo o cuidado que o autor tem em precisar os dados que circundavam a apresentação da cena, para garantir a sua materialidade. Da mesma forma, ele conta com a convicção do paciente em encontrar na cena os significantes que o representam. É sobre tal materialidade que vemos Freud, passo a passo, paradoxalmente, construindo a referida cena. Essa alusão ao que denominava a realidade material é apontada como o traço mais marcante do edifício teórico freudiano.
Realidade material; cena real; construção em análise; real psicanalítico
ABSTRACT
The present work follows Freud's presentation of the primal scene reported by his famous patient, known as The Wolf Man, during his treatment. Highlights the author's care in being very exact about the data that surrounded the presentation of the scene, in order to garantee its materiality. In the same way, he counts on the patient's conviction in finding in the reported scene those signitiers that represent him. It then argues that upon such material one can observe Freud, step by step, paradoxically, constructing the scene. This reference to what he called material reality is considered the most distinguished trait of Freudian theorethical construction.
Material reality; real scene; construction in analysis; the psychoanalytic real
O tema deste trabalho, tal como indicado em seu título, é dado pelo próprio Freud, quem insistiu durante todo o texto em trazer à cena a questão de sua realidade, ao mesmo tempo em que deixava nela se introduzir o problema de sua construção, de sua invenção. Da mesma maneira que a problematização de Freud (1917) atravessa o escrito, a leitura que fazemos do caso clínico do Homem dos Lobos é pontuada pelo retorno persistente do tema da realidade da cena primordial.
Freud não se poupa e não poupa o leitor de uma minuciosa explanação de suas idas e vindas, de suas intelecções e retificações, de suas dúvidas e afirmações. Em seu relato muitas vezes mostra corajosamente o cul-de-sac com que se defronta, deixando a nu as dificuldades, as impossibilidades que enfrenta, aos quais não tenta vestir com as roupas prêt-à-porter de uma solução teórica mais fácil. Procuramos ler, então, o que Freud escreveu.
No entanto, é importante que se diga, ler Freud sem interpretá-lo é impossível - Freud ou qualquer outro autor, ou qualquer outra situação, basta estarmos no reino das palavras para entrarmos no circuito interpretante. E, ao interpretá-lo, não há como negar, as lentes lacanianas muitas vezes nos permitem enxergar o que de original se pode retirar da leitura desse autor.
Mesmo assim, ainda que o texto seja marcado pelo entendimento que Lacan nos facilita, tentamos sempre nos deixar surpreender pela palavra de Freud e, mais que isso, buscamos quase metodicamente estranhar cada idéia, cada formulação, para tirar dali todas as conseqüências para um entendimento da clínica freudiana e, portanto, da nossa própria.
É, pois, com essa estranheza que nos detivemos nos trechos que dizem respeito à cena primordial, para com a ajuda de algumas formulações lacanianas, apreender as operações de Freud ao caracterizar a realidade que cerca a referida cena. Estamos, assim, como apontaremos ao final, nos aproximando também de um dos traços principais da psicanálise - a sua concepção de uma realidade material.
A primeira menção que chama a atenção no caso clínico é a observação de que durante o tratamento "quase todas as datas puderam ser determinadas com certeza" (Freud, 1917, p. 15). Em seguida há outra, na qual "desaconselha a técnica de preencher as lacunas através de dados fornecidos pelos familiares" (p. 15). Ou seja, guardamos destas duas passagens, por um lado, a preocupação de Freud em precisar os detalhes acerca dos acontecimentos, por outro lado, ao mesmo tempo, a sua crença na total inutilidade de obter tais detalhes a partir de fontes outras, que, por mais seguras quanto à veracidade dos fatos colhidos através delas, nada contribuiriam para o andamento do trabalho. Como veremos adiante, a convicção que pode fazer surgir no paciente é uma das características mais importantes na construção da cena real.
Acompanhamos, neste mesmo diapasão, a observação de Freud, de que é inofensivo comunicar ao analisando as considerações acerca do que lhe ocorreu, já que elas nunca prejudicam a análise, mesmo que tenham sido errôneas. Mas adverte que devem ser formuladas quando se tem perspectiva de conseguir, por meio delas, alguma "aproximação da realidade" (p. 19).
É assim que, por meio da comunicação dessas suas formulações e como efeito imediato dela, emerge uma boa parte do material sobre cuja realidade Freud, então, irá se interessar.
Discorre sobre as fantasias que o paciente traz de sua infância e nota que elas vêm, em muitos casos, substituir o que chama de "verdade histórica" (Freud, 1917, p. 20), fazendo com que apareça um oposto do desejo. Por exemplo, através dessa fantasia, considerada um "relato de invenção" (p. 20), em vez de ter sido passivo frente à sedução realizada por sua irmã, passa a ter sido agressivo. Freud compara esse recurso ao utilizado pelas nações sobre seus começos, muitas vezes insignificantes e infelizes, que são como que retificados por estas fantasias. É um material que, de qualquer forma, põe em pauta o desejo do analisando e fornece ao analista dados para que possa proceder à análise.
No entanto, neste mesmo ponto em que valoriza as fantasias, Freud situa uma importante distinção entre elas e um acontecimento que não seja da mesma ordem, isto é, que não seja uma fantasia. E, preocupa-se, acima de tudo, em comprovar a sua credibilidade. Dirige-se em particular, nesse momento, à sedução exercida pela irmã e cerca-se de alguns outros dados sobre o seu comportamento para que não reste dúvida de que ela poderia, sim, ter seduzido o irmão, já que se mostrava uma menina precocemente dedicada às investigações e às conquistas sexuais.
Novamente, nós o vemos às voltas com a precisão de datas, agora da época em que ocorre a sedução, e com o estabelecimento de nexos que lhe facilitem encontrar a associação entre a conduta em determinada época e o que se passava com o paciente, sobretudo na esfera sexual. Este era, a rigor, seu objetivo precípuo: determinar a causalidade sexual do estado do paciente.
Em sua preocupação com a precisão de datas, em sua tentativa de ver em que época e que fatos circundam o aparecimento de um certo tipo de conduta, por exemplo a "conduta rebelde", há sempre o objetivo de remetê-los - datas, fatos e condutas -, ao acontecimento sexual que nesse ponto se localiza. Por isso, circunscreve, em relação a esse exemplo, de forma detalhada, todas as questões relativas à ameaça de castração. Registra a recusa da babá ao seu onanismo (quando esta lhe diz que as crianças que fazem isso são feridas nesse lugar) e anota várias outras passagens relevantes para delimitar a angústia de castração da qual o paciente será acometido: a irmã e a amiga urinando, a cobra cortada em pedaços, o lobo pescando com o rabo, as histórias do Chapeuzinho Vermelho e dos Setes Cabritos etc. Acompanha, então, todos os movimentos em relação à vida sexual do paciente, apontando suas posições libidinais na fantasia, tanto quanto em outros caracteres que apresentava. Por exemplo, por que havia sufocado o onanismo, Freud observa os caracteres sádico-anais que sobrevieram: irritava-se com a babá, era cruel com os animais, pegava borboletas para lhes arrancar as asas, despedaçava os besouros, açoitava cavalos etc. Todas características que iriam compor a brusca mudança do masoquismo para o sadismo.
Freud segue pari passu todas as posições libidinais do paciente na fantasia que se ia instalando, tanto quanto nos outros caracteres que iam aparecendo. Chama atenção, então, para dois traços do Homem dos Lobos. Em primeiro lugar, a ambivalência: aspirações passivas emergem ao mesmo tempo em que as ativo-sádicas ou logo depois; em segundo lugar, nunca uma posição libidinal cancelava a anterior.
Podemos pensar, neste ponto, que o procedimento de Freud tenha como objetivo situar o paciente nas suas formas de apreensão, de entendimento, da realidade que o cerca, nas suas formas de se posicionar nas relações com os que lhe rodeavam, bem como nas suas respostas ao que lhe era colocado pelos acontecimentos sexuais cotidianos. Tratava-se, para Freud, de estabelecer as operações através das quais o paciente se fazia presente e, mais do que as operações, tratava-se de saber como se dava para o paciente a simbolização daquilo que experienciava na vida, visando investigar, portanto, que significantes o representavam nessa operação e como eles eram constituídos.
Vemos que os traços ressaltados por Freud de ambivalência e de impossibilidade de perda, ou melhor, de abandono das posições libidinais irão, justamente, marcar a dificuldade do paciente nessa operação de simbolização, uma vez que, nesse exato momento, o que entra em jogo é a perda de alguma coisa que permitiria tal operação (Freire, 1997), perda essa que, segundo entendemos, Freud considera não poder haver. Perguntamos aqui se isso nos autorizaria a falar de um Freud que acompanha os percalços de uma operação de simbolização, de uma operação de significantização prejudicada desde o início?
A OPERAÇÃO DE SIGNIFICANTIZAÇÃO
É, então, supondo o movimento de Freud ao acompanhar essa operação, que entendemos a sua preocupação de manter constante a referência aos fatos, aos eventos, às datas, ao que ele, enfim, denomina de realidade material. Nesse ponto, recorremos à elaboração lacaniana, que fornece recursos para um entendimento mais acurado do referido movimento freudiano. Isso que Freud insiste em manter como a realidade material é o que, depois de diversas elaborações e diferentes articulações com categorias como o simbólico e o imaginário, Lacan irá chamar de real. Pois justamente o que Freud valoriza, ressalta e reconhece é que há algo que "comanda", mais que qualquer outra coisa, nossas atividades, e isso é o real (Lacan, 1964, p.61). Ao investigar o modus operandi do paciente, está constantemente concernido com as possibilidades ou com os limites que este apresenta ao significantizar, ao fazer seus significantes entrarem no real (ver Lacan, 1963, Lição II e Lacan, 1964, p. 155).
Desse ponto de vista, prosseguiremos no exame do relato freudiano e de sua insistência em localizar e datar os fatos e acontecimentos, bem como em dar provas de sua realidade.
Tomando as considerações de Freud sobre a eleição de objeto do Homem dos Lobos, que, conforme ocorre no narcisjsmo infantil, se dá pela via da identificação, o objeto de identificação passa de uma corrente ativa para ser o objeto sexual de uma corrente passiva na fase sádico-anal. Para falar dessa passagem, Freud se vale de uma lembrança que emergiu com grande nitidez. Ou seja, ele se apóia na nitidez, ele valoriza a nitidez da lembrança para seguir na construção do caráter do Homem dos Lobos e se preocupa em precisar o ponto em que há uma alteração e em que ocorre a emergência da angústia. Declara poder "indicar com certeza" (Freud, 1917, p. 27) e, mais uma vez, precisa a data em que aparece a referida emergência da angústia: "a criança havia acabado de fazer 4 anos".
A partir daí, divide a infância dele em duas fases: uma primeira de conduta rebelde e perversidade (que vai da sedução por parte da irmã até os 3 anos e 1/4 ou 4 anos) e outra em que predominam os sinais de neurose. O acontecimento que permite Freud fazer essa distinção entre fases - ele adverte - não é um trauma externo, mas um sonho de angústia.
Esse sonho apresenta a característica de ter por trás de si a causa da neurose. Antes de entrar em sua análise, no entanto, é interessante perceber a relação dos sonhos com a realidade - em seu material latente há algo que reclama "realidade efetiva" na lembrança. O sonho se refere a um episódio "ocorrido de fato e não meramente fantasiado" (Freud, 1917, p. 33). Logo, conclui, está diante de "uma realidade efetiva de algo ignorado" (idem). Então, não se espera que o sonho seja entendido através das histórias que haviam sido contadas à criança, mas, Freud insiste, através de um "episódio cuja realidade objetiva é justamente oposta à dos contos de fada" (idem).
É interessante seguir, aqui, as considerações sobre a figurabilidade da cena sonhada. Ainda que essa se dê através da desfiguração, trata-se sempre de imagear, no ponto "mais cruel" (Lacan, 1964, p. 60), como veremos em seguida, pontos do sexo (das investigações sexuais - que se relacionavam às visitas que ele fazia com o pai aos pastos de carneiros) e da morte (da morte de muitas ovelhas que nas mesmas visitas ele soubera que tinham a peste). São pontos, ademais, ligados ao tema da castração - o incitador do sonho.
Dizemos, então, que o sonho imageia um ponto de encontro com o real (Lacan, 1964). É a isso que, acreditamos, Freud se refere quando diz que na base do sonho há um "episódio real" (1917, p.34). A construção de Freud nesse momento vai passo a passo estabelecendo esse episódio real. Quando no relato aparece uma janela que repentinamente se abre, são os olhos da criança enferma que de repente se abrem ou ela estava desperta e algo lhe foi dado a ver; aos lobos que olham fixamente, no relato, corresponde o menino que olha; há ainda um transtorno no conteúdo latente que se faz presente também no conteúdo manifesto; aos lobos parados nas árvores é aposto o movimento violento da cena. Freud completa a análise do sonho com dados que mostram a transformação da satisfação no sonho em angústia: considera que haja, então, um desejo intenso que refresca a marca mnêmica, esquecida, de uma cena apta para a realização do desejo (de satisfação sexual com o pai), e o resultado foi o terror frente à possibilidade de realização desse desejo. Conclui, então, que o que se ativou do caos das marcas de impressões inconscientes foi a imagem do coito dos pais.
Portanto, houve no sonho uma ativação da imagem sexual, como dissemos, é o sonho imageando no ponto mais cruel que é esse do "episódio real". É importante recorrermos à idéia de uma imagem que ativa o caos das marcas de impressões inconscientes, para que possamos entender do que se trata aqui para Freud. Justamente, ele argumenta que o Homem dos Lobos só entendeu a cena na época do sonho, aos 4 anos (como vimos insistindo, há uma preocupação em precisar a época em que tal sonho ocorre). Não a havia entendido na época da observação. Então, quando tinha um ano e meio (e Freud faz minuciosamente as contas para chegar a essa idade - leva, por exemplo, em conta uma doença que ele tinha na época, a data de seu aniversário, a estação do ano etc), recebeu as impressões que compreendeu nachträglich, na época do sonho.
Época em que seu desenvolvimento lhe permitia uma excitação sexual, uma investigação sexual que lhe possibilitaram o entendimento das impressões.
Freud, neste ponto está às voltas com a crença na realidade da cena. E, curiosamente, pede ao leitor que lhe dê pelo menos um crédito provisório quanto a isto, ou seja, quanto à realidade dessa cena. A partir daí, passa a explorar o conteúdo essencial da cena e de uma de suas impressões visuais e a chama de "cena primordial construída" (1917, p. 38). Vale dizer, logo depois que pede crédito para ela, denomina-a de "cena primordial construída". Pouco mais tarde no texto, fala da "magia da imagem da troca sexual outrora observada (ou construída)" (p. 73). Isto é, a cena é dotada de impressões que são compreendidas, entendidas, só depois de construída - é, ainda, só depois da compreensão/construção da cena que se pode acreditar nela.
Segue explorando o nexo, as pontes associativas, entre o sonho e a cena primordial: o sonho é o que vai permitir o entendimento da cena primordial, é o que vai possibilitar que se vá atingindo sua configuração real - ou seja, é através do sonho que se chega à construção do real da cena primordial. Daí, havermos afirmado que se trata de uma cena real construída.
É importante acrescentar que a ativação da cena tem o mesmo efeito de uma vivência recente. A cena produz efeitos a posteriori e em nada perdeu o seu frescor neste intervalo entre a cena e o sonho.
Freud aqui está seguindo a capacidade ou a incapacidade do paciente de se deixar atravessar pelos significantes que o constituem. Está seguindo os percalços da tentativa do Homem dos Lobos de significantizar o que do real se apresenta em seu tratamento. Acreditamos que haja por parte do paciente um prejuízo nesse processo, que várias vezes é apontado por Freud, quando considera as características da "neurose infantil".
No entanto, para além das questões individuais se atualizando nesse caso clínico, vemos Freud considerando também o que do real se impõe na sua incognoscibilidade, ou seja, na sua opacidade a partir da qual sempre há algo que resta a se significantizar. Freud parece lidar com essa característica a partir da distinção entre uma herança (da pré-história da humanidade) e uma vivência acidental. É por seu reconhecimento desse traço de impossibilidade, mais tarde apontado por Lacan como a marca mais característica do real, que tão enfaticamente mantém a posição de não poder saber se a cena primordial é fantasia ou vivência real, para logo em seguida afirmar que, de qualquer forma, cenas de observação da troca sexual entre os pais, de sedução na infância ou de ameaça de castração são indubitavelmente um patrimônio herdado, herança filogenética, apesar de poderem também ser aquisições de vivências individuais.
Há, portanto, algo que transcende a biografia individual e, que, no entanto, tem que ser assumida por ela, tem que ter um nexo com esta biografia. Se esse nexo é construído ou é fantasiado, ou se existe de fato, essa é uma questão a ser resolvida no particular de cada caso.
A CONVICÇÃO DA CENA REAL CONSTRUÍDA
Neste ponto, coloca-se a importante questão da convicção que há de se fazer emergir no paciente, tema ao qual Freud retorna em vários pontos de seu texto. Frisa que, ao trabalhar a objetividade da cena primordial e elaborar os seus nexos e conteúdos, é muito importante obter o interesse do paciente em relação a ela. Enfatiza algumas vezes que é preciso conseguir a cooperação do paciente para que a cena possa ser "levada à consciência" (1917, p. 49). Ou seja, é necessário que o paciente tenha convicção acerca dela para que ela exerça seus efeitos.
Ainda discutindo a realidade da cena, Freud observa que não adianta o paciente afirmar que as cenas não são lembranças, são apenas construções, porque muitas lembranças espontâneas são lembranças encobridoras que mantêm muitos elementos fantasiados, deslocados, desfigurados. Além disso, cenas como a do Homem dos Lobos poucas vezes são reproduzidas como lembranças. E preciso coligi-las, construílas passo a passo e, laboriosamente, a partir de um conjunto de indicações.
Portanto, o fato de elas não reaparecerem como lembranças nem por isso as faz necessariamente ficarem do lado das fantasias! Há algo que tem o mesmo valor que a lembrança. O sonhar é também recordar. A análise do sonho reconduz de maneira regular à mesma cena que as lembranças reproduzem quando se analisa cada fragmento de seu conteúdo.
Freud mostrará como, através da análise do sonho, procura o "convencimento", um convencimento que não fica atrás daquele que lhe é dado pela lembrança do paciente. Em várias passagens, fala que faz algumas correções das quais o paciente não quer saber nada e acaba por ter que acreditar no paciente. De forma que está sempre em busca de "corroborar as interpretações" (1917, p. 61) que dá sobre um material. Muitas vezes constrói algo que o paciente aceita, corrobora por meio de formações de sintomas passageiros durante a análise; por exemplo, Freud propôs que à observação do coito dos pais sobreveio uma evacuação por conta da qual a criança teria interrompido a união dos pais e o Homem dos Lobos aceitou esse "ato final". Ao mesmo tempo, há coisas que ele propôs, a cujo material o paciente não reage com um material associativo que confirme a interpretação, então ela é deixada de lado; por exemplo, perguntou-lhe se o pai não o teria insultado depois que foi perturbado no coito, o paciente simplesmente não considerou a hipótese.
Nesse momento, afirma serem inteiramente insuficientes as combinações realizadas pelo médico para solucionar os problemas colocados, e, portanto, declara ser "injusto" responsabilizar a fantasia e a sugestão do médico pelos resultados da análise. Argumenta que o analista chegou muito passo a passo à construção desse material; que tal material mostrou-se altamente independente da incitação do médico; em certa fase do tratamento tudo parecia convergir para esse material, agora os mais diversos e notáveis resultados irradiam dele e, justamente mediante a suposição da cena primordial, encontrou-se solução desde os grandes até os menores problemas, assim como as singularidades do tratamento.
Apesar de todos os cuidados de Freud, Lacan afirma que ele não deixou que o paciente conquistasse ou assumisse sua história. Comenta, então: "o significado ficou alienado do lado de Freud que continuou seu possuidor" (Lacan, s.d.). Pode-se pensar, com esse comentário de Lacan, que a docilidade com que esse paciente se deixava "convencer" (Sbano, 2001) indicava justamente o fracasso ou a sua falta de possibilidade de se deixar atravessar pela operação de significantização, operação através da qual lhe teria sido possível reescrever sua própria biografia. Perguntamo-nos, novamente aqui, se a facilidade com que Freud convence o paciente (lembremo-nos aqui das reações, tão diversas destas, como as de Dora (1905) ou da jovem homossexual (1920) às intervenções de Freud), não estaria relacionada ao prejuízo da operação de significantização por parte desse.
Continuando na montagem da cena, Freud vai marcar como é importante supor uma cena primordial infantil, por oposição às sugestões de Jung e Adler (que buscariam algum motivo atual, como a "regressão" de Jung ou os "motivos egoístas" de Adler), porque justamente o novo e peculiar da psicanálise é essa idéia de que algo produz seus efeitos a partir de impressões infantis. Portanto, o que está em discussão é o valor do fator infantil. Toda a questão da neurose infantil desde o terceiro ou quarto ano de vida do Homem dos Lobos mostra como é das vivências infantis que se traça a "neurose" (que independe, portanto, de impressões feitas pela vida atual do paciente).
E isso leva a que se descubram as moções pulsionais que a criança não pôde satisfazer (e que ainda é incapaz de dominar) e as fontes dessas pulsões. Segue, então, mais uma vez, mostrando como a cena primordial certamente fez parte das vivências da criança, que não teria outra base que não a observação do coito dos pais.
Podemos dizer com Lacan (1972) que, no texto de Freud, "resta algo a concluir". O autor termina seu texto afirmando que há uma ambigüidade e, surpreendentemente, reafirma que esta "irá permanecer como ambigüidade", porque pode ser que o paciente tenha transposto para os pais (dadas algumas semelhanças nas cenas) observações feitas do comportamento de animais...
No entanto, se por um lado podemos constatar essa característica sempre presente no pensamento freudiano que diz respeito ao inconclusivo de suas observações ou de suas especulações, sempre por causar uma nova questão, por outro lado, esse texto tem a marca talvez mais diferenciadora e pregnante da psicanálise. Acerca dela Freud não vacila: trata-se da indicação forte e determinada da presença do que ele chama de material, de fragmento material, de realidade material. Essa, que posteriormente recebe a formulação teórica mais bem tecida por Lacan, vai denominar o real, articulando-o aos registros do simbólico e do imaginário, e pode ser considerada o traço distintivo da psicanálise. E aquilo que a afasta dos sistemas metafísicos, cujas construções se passam sem que um referente material seja acionado para garantir a base, o stuff (Lacan, 1957, p. 246), na constituição do qual se compõe o próprio psiquismo. Só na sua consideração será possível falar de um psiquismo, e será possível formular as "representações corretas" feitas na teoria, que aplicadas ao material bruto da observação fazem surgir nele a ordem e a clareza (Freud, 1933, p. 75).
O texto freudiano, ao se debater com a questão da cena primordial, procura acima de tudo despsicologizar a realidade psíquica, dando a este conceito uma âncora que impeça que as construções analíticas, teóricas e clínicas, às quais se recorre no momento mesmo do tratamento, sejam peças diletantes e opiniáticas que instalem uma norma de bem viver.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Recebido em julho/ 2001