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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.7 no.13 São Paulo 2002
RESENHA
Rosa, Miriam Debieux. Histórias que não se contam: o não-dito e a psicanálise com crianças e adolescentes
Leandro Alves Rodrigues dos Santos
Mestrando no Departamento de Psicologia da Aprendizagem, Saúde e Desenvolvimento Humano (PSA) do Instituto de Psicologia-USP; Psicanalista
Nos dias atuais, há uma intensa procura por psicoterapias para crianças, nas mais variadas linhas e escolas de pensamento. Muitas vezes, o psicanalista também é incluído nesse extenso rol de especialistas "psi", ainda que não aprecie esse lugar, junto a profissionais que não entendem a profundidade da questão do infantil, do lugar que ocupa um filho no meio familiar.
Bem, talvez haja algum fundo de verdade nesse desconforto, pois a psicanálise, desde seus primórdios, tem-se dedicado seriamente ao mal-estar ligado à infância e às crianças. Portanto, a primeira questão nessa especificidade é: há uma psicanálise com crianças?
Se a resposta for positiva, podemos considerar que esse campo se inicia com pioneiras como Anna Freud, Melanie Klein, Hermine Van Hug Helmuth, entre outras. Na escola inglesa, Donald Winnicott, por exemplo, é considerado um expoente na prática psicanalítica com crianças, com seu já clássico "jogo do rabisco". Na escola lacaniana, podemos destacar Robert e Rosine Lefort, Françoise Dolto, Maud Mannonni, entre outros, cada qual com ênfase em ângulos variados.
Mas, para alguns autores, especialmente entre os autores lacanianos, há algumas controvérsias que são importantes nessa questão e devem ser destacadas, como a mais clássica delas: o que é uma criança?
Esta primeira questão fornece as bases para alguns desdobramentos: como na questão do sujeito que interessa à escuta, não importando a idade cronológica; sobre a responsabilidade quanto ao gozo; no oferecer-se como objeto para o gozo do Outro; ser o sintoma da família, na família ou pela família. Enfim, podemos perceber diversas problematizações que colaboram para aprimorar e refinar a teorização e o fazer psicanalítico nessa área.
No Brasil, especialmente nos dias atuais, há uma ebulição nessa área e o livro que Miriam Debieux Rosa produziu pode, e deve, ser destacado não só pela qualidade, como também pela originalidade do tema, como nos mostra o título: Histórias que não se contam: o não-dito e a psicanálise com crianças e adolescentes.
Este livro, derivado de sua tese de doutorado, defendida na PUC-SP, é bom exemplo de uma pesquisa que colabora para o avanço do campo onde está inserida. Ultrapassa a mera obrigação acadêmica, servindo como testemunho de um trabalho próprio, baseado na experiência, um saber construído a partir de elaborações desde o lugar do psicanalista. Esse talvez seja um dos aspectos mais fecundos na aproximação entre a psicanálise e a universidade: aliar o rigor da pesquisa ao rico campo da psicanálise, que se reinventa e se fortalece a partir das descobertas surgidas na própria clínica.
E de quais descobertas Miriam Debieux trata neste livro? Principalmente aquelas derivadas de sua prática como analista de crianças e adolescentes, mas para além disso, como nos mostram suas próprias palavras: "Pode-se dizer que este trabalho é efeito da transferência no atendimento com crianças e adolescentes" (p. 15).
Portanto, este é um bom exemplo de como aquilo que interroga um psicanalista na clínica, deveria ser também um indicativo para uma busca particular sobre o que circunscreve a temática que captura naquele momento seu desejo. No caso deste livro, a temática girou em torno de uma percepção da autora em um aspecto sutil, porém certamente significativo, o peso do não-dito e sua influência na constituição subjetiva do sujeito.
Quais são as influências nessa constituição quando algo é suprimido na produção discursiva do Outro familiar, quando algo não pode ser dito, ou não é desejável que se diga?
Miriam Debieux, como boa representante da tradição lacaniana, privilegia a questão do discurso e nesse conceito se ampara para levantar a hipótese de que essas variáveis afetam a produção sintomática do sujeito. Sintomas que, além de enigmas em seus discursos, podem também trazer essas crianças ao psicanalista, talvez, até, transformando-se em sintomas analíticos.
E nesse ponto se detém - após apresentar no primeiro capítulo uma interessante descrição sobre o não- dito - investigando como o psicanalista poderia tomar como importantes elementos diagnósticos certos sintomas atuais, como os problemas de aprendizagem e/ou comportamento na idade escolar.
Em sua concepção, a autora parece corroborar a posição lacaniana de que o psicanalista deve estar afinado com a subjetividade de sua época, pois esmiuça pacientemente vários ângulos dessa questão, do segredo e do mito familiar.
O rigor que Miriam Debieux apresenta em suas articulações teóricas não torna o texto árido demais, mas sim cativante, desperta o desejo de saber mais sobre as questões levantadas.
Seus fragmentos de casos clínicos servem muito mais para exemplificar e clarear do que para mostrar sua capacidade de psicanalista, com pontuações e interpretações gloriosas, como se a prática psicanalítica fosse algo da ordem do espetáculo.
Um bom exemplo foi extraído de sua prática num posto de saúde, quando, ao entrevistar uma mãe que, mesmo do lado da criança, que brincava no canto da sala, dizia que ela havia sido adotada e que sua mãe biológica morrera louca, após várias internações psiquiátricas. Naturalmente, a autora se choca e pergunta se a criança não sabia; afinal, ela estava ouvindo a ambas na sala! A mãe diz então que ela não entende, que ela não presta atenção... Em atendimento - pois na escola não prestava atenção em nada, só brincava - essa criança, apesar de não falar diretamente de suas questões sobre a filiação, trouxe por meio de desenhos o que não pôde aparecer na forma de relato verbal. Algo muito interessante nesse caso e que perpassa o livro é a crítica a uma certa crença de que a criança não entende certas coisas, porque, afinal, se não fala delas, não sabe. Seria uma prova de sua inocência infantil.
Quando deparamos com o título do livro, pensamos tratar-se de um trabalho quase praticamente voltado para a questão da adoção, como no caso clínico acima relatado; mas não se trata disso, a autora vai além, trata dos possíveis desdobramentos dessas questões, chegando ao ponto nevrálgico: trata-se então de apenas dizer o não-dito? Só isso basta?
Não, a autora não sugere esse caminho, e o faz com base na clássica resposta de Freud à mulher que lhe escreve pedindo uma orientação sobre a homossexualidade que percebia em seu filho, ao que Freud responde que não importaria o que ela, mãe, fizesse ou dissesse, faria mal, não surtiria o efeito que seria esperado.
Ou seja, não se trata de informar, há uma diferença entre o saber e o conhecimento, como há diferenças entre a psicanálise e a pedagogia. O Eu aparenta registrar o conhecimento, mas o inconsciente é quem o determina, especialmente se houver relações com a verdade inconsciente do sujeito. Apesar de não ser o objetivo central deste trabalho, a autora toca num ponto de admirável amplitude: qual o peso do inconsciente para a pedagogia? Afinal, poderíamos traçar uma interessante analogia com o não-dito, pois o inconsciente também não pode ser dito, é melhor que não se diga, portanto é fácil prever que, nas aprendizagens, de maneira genérica, essa variável estará presente. O que fazer com ela? O inconsciente é indomável, não se subordina, tampouco se operacionaliza em formas de estratégias pedagógicas.
Com base na proposição de Maria Cristina Kupfer, de que o professor pode se posicionar frente a seus alunos como se estivesse na condição de analisando, muito mais falando e tentando responder às próprias perguntas, a autora também estende essa possibilidade ao analista de crianças, que deve criar "estratégias que não podem ser priorizadas, tomadas como importantes em si mesmas. O princípio fundamental, de propiciar um lugar de fala e de escuta, deve ancorar a direção imprimida ao atendimento" (p. 155).
Esse lugar de fala só pode ser obtido na análise, onde o falar pode alcançar outra dimensão, ser da ordem do dizer, que só pode ser potencializado exatamente pela escuta de um analista que tenha flexibilidade para alcançar as diversas mudanças sociais e na cultura, dos novos modos de configurações familiares, das possíveis alterações na ordem simbólica, do discurso de um Outro que prima pela fragilidade, pela inconstância e por um excesso de imaginarização.
E essa fragilidade pode ser captada especialmente nos laços e na filiação entre as gerações. Isso se dá, fundamentalmente, pelos significantes que apontam para essas questões. Cabe ao sujeito, criança ou adolescente, reposicionar frente a essa suposta lacuna, tarefa que pode ser facilitada pela análise.
Com isso, o livro chega ao seu final, entrando então no terreno da ética, que, pelas próprias palavras da autora, deve ser considerada como "... a ética que rege o sujeito é a de não ser agido pelo Outro e, sim, sustentado pelo e implicado no desejo que articula filiação com descendência e inaugura outra relação com a Lei, o ideal, a cidade. Desejo expresso no discurso e no ato que, por sua vez, estabelecem o laço social" (p. 159).
Recebido em novembro/2002.
Taubaté, SP: Cabral Editoria Universitária, 2000