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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.8 n.15 São Paulo jun. 2003

 

DOSSIÊ

 

Atender, cuidar e prevenir: a creche, a educação e a psicanálise

 

To assist, take care and prevent: the day care, the education and the psychoanalysis

 

 

Rosa Maria Marini Mariotto*

*Professora supervisora do curso de Psicologia da PUC-PR, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Curitiba, doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento pelo IP-USP

 


RESUMO

Este artigo procura estabelecer uma interlocução entre a psicanálise e a educação no contexto da creche, a partir da experiência de supervisão acadêmica e pesquisa. Tomando como eixo central a trilogia Atender-Cuidar-Prevenir, busca refletir sobre o ato educativo na perspectiva psicanalítica no que se refere à educação infantil.

Palavras-chave: Creche, Educação, Psicanálise, Cuidado e prevenção.

 


ABSTRACT

 

This article tries to establish a dialogue between the psychoanalysis and the education in the context of the day care, starting from an experience of academic supervision and research. Taking as central axis the significant trilogy Assist-Take care-Prevent, it searches to contemplate on the educational act in the psychoanalytic perspective in what refers to the infantile education.

Keywords: Day care, Educational act, Psychoanalysis, Prevention.

 


 

 

"Atender, qualquer um pode atender, dar uma olhadinha. Cuidar também, porque você não precisa de curso. Mas a diferença é cuidar bem ou mal. Para cuidar bem, você tem que educar junto"

(educadora do berçário da Creche Cajuru, PUC-PR)

O interesse pelo tema surgiu para nós quando assumimos, a partir de 2002, a condição de supervisora de estágio em Psicologia Educacional do curso de Psicologia da PUC-PR nas creches mantidas por essa instituição. E estas creches já contavam com o serviço dos estagiários de 5º ano do curso de Psicologia desde o início dos anos 90.

O objetivo do estágio é, portanto, duplo: ao mesmo tempo em que abre espaço para a construção do profissional psicólogo no ambiente educacional, oferece à instituição o trabalho possível da psicologia nessa área de atuação, por meio de ações junto à equipe dos educadores, às crianças e aos pais.

Além disso, a psicanálise comparece como eixo teórico que sustenta o ato profissional nas frentes citadas, exigindo do "psi" um redimensionamento não apenas nesse fazer profissional, mas também na forma de introduzir essa proposta na atuação da equipe da instituição.

Mas é a partir de nosso trabalho que uma aposta foi lançada: a de que a relação entre psicanálise e educação pudesse render bons frutos também no ambiente da creche. Há um vasto e consistente material sobre a interlocução entre psicanálise e educação, que se desdobra nos trabalhos sobre dificuldades de aprendizagem, escolarização de crianças com distúrbios globais do desenvolvimento, inclusão, etc. No entanto, é mais escassa a produção bibliográfica que opere a intersecção entre psicanálise e creche.

Parece haver dois aspectos que contribuem diretamente para despertar o interesse sobre o tema. O primeiro, mais ligado à questão da educação, refere-se ao fato de que, com a nova LDB (9394/96), a creche passa a ter cada vez mais um estatuto educacional, e não mais puramente assistencial, marca registrada de seu surgimento, mas que, justamente por isso, não desapareceu. Com essa nova legislação, a educação infantil passa a integrar a educação básica e a pertencer às ações educativas das políticas educacionais definidas pela União, estados e municípios, tendo entre seus princípios a tentativa de integrar as funções de cuidar e educar. Todas essas instituições estão atualmente atravessando um momento de intensa transformação interna para poderem se adequar a essas novas diretrizes. Mudanças que alcançam não apenas os aspectos metodológico-curriculares, mas que exigem do profissional que disso se ocupa uma reflexão sobre sua função e sobre o lugar que ocupa nesse sistema institucional. Portanto, a creche tem cada vez mais se aproximado da educação. É digno de realce, portanto, que a mudança de nomeação atesta também o lugar que se supõe ocupar esta instituição, e a intenção que se lhe atribui, assim como a transferência ocorrida com a educação infantil, em que de oportunidade ela passa a ser obrigação do Estado.

O segundo, mais pelo lado da psicanálise, mostra o claro e crescente interesse pelo trabalho com bebês não só no âmbito clínico, mas também no que se refere à detecção e prevenção de riscos psíquicos precoces, aplicados também à saúde pública,conforme pesquisas do Grupo Nacional de Pesquisa (GNP), em parceria com o Ministério da Saúde.

É nesse sentido que o espaço da creche tem-se aberto para um possível trabalho atravessado pela psicanálise, na medida em que, ao se ocupar de crianças pequenas _ que variam de 4 meses a 6 anos _, temos nos confrontado com a interrogação sobre suas possíveis funções: cuidar, atender, prevenir e educar. Cada uma delas convocando este lugar institucional de uma forma diferente, em que o exercício do profissional que ali trabalha também se modifica. É sobre o que pretendemos refletir a seguir, acentuando o foco central de nossa abordagem no trabalho desenvolvido com crianças de até 2 anos1.

A CRECHE E O ATENDENTE: A QUE ATENDE?

De origem francesa, a palavra "crèche" significa "manjedoura", denominação dada aos abrigos para bebês necessitados que começavam a surgir na França no século XVIII. Com caráter basicamente custodial e assistencial, a creche guardava os lactentes para que suas mães pudessem trabalhar. As chamadas gardeuses d'enfants retiravam das ruas as crianças que, famintas, perambulavam sem rumo enquanto suas mães trabalhavam nas fábricas até 18 horas por dia. Segundo Rizzo, este foi o objetivo inicial da creche, que somava-se a um outro: "Resguardar dos olhos da sociedade um segundo estorvo que eram os filhos de uniões ilegítimas" (1984, p. 19).

Em função, portanto, das mudanças sociais e econômicas em que se fazia urgente aumentar a renda familiar, às vezes garantindo sozinha seu sustento, a mulher foi chamada ao mercado de trabalho. Impunha-se aí uma necessidade, a de ter onde deixar seus filhos. Sendo assim, é possível concordarmos com Cataldi (1992), que afirma não terem as creches surgido para atender às necessidades básicas da criança, mas em resposta à necessidade da mulher de colaborar mais efetivamente na economia industrial capitalista.

Outro aspecto que se destaca no surgimento das creches é aquele, apontado por Rizzo (1984), de que, com a industrialização _ que se fortalece no século XIX _, começam a surgir os centros urbanos, diminuindo, pouco a pouco, os espaços e reduzindo as famílias, que passam a se organizar como conjunto, simplesmente, de pai, mãe e filhos. Portanto, com a diminuição dos espaços urbanos e a falta de avós ou tias para cuidar das crianças, a creche aparece resolvendo a questão de "onde" e "com quem".

Observamos, então, que os cuidados e a educação da criança pequena "desfamiliariza-se", atribuindo-se essas funções a estranhos.

No Brasil das primeiras décadas do século XX, as creches surgiram ou como benefício concedido aos operários por empresários forçados pelos movimentos de classe _ e que tinham como intenção velada a idéia de que, "mais satisfeitas, as mães operárias produzem melhor" (Oliveira et al., 1992, p. 20) _, ou como trabalho filantrópico e/ou religioso. A participação do Estado na oferta e fiscalização dessas insitituições era nula.

Desde meados da década de 60, submetido ao regime militar, o Brasil assiste à emergência de movimentos populares que reivindicavam o fornecimento de serviços sociais urbanos mínimos para a sobrevivência da população, entre estes, o movimento por creches, que caracterizou o aumento do número desses equipamentos como forma de provimento contra a carestia. Aí o poder público foi pressionado a atender as camadas populares no suprimento de suas necessidades mínimas. Machado confirma que somente a partir da década de 70 é que ocorreu o ciclo de expansão de creches,"inclusive com revisão de seu significado originário de reivindicações e propostas de movimentos feministas" (1997, p. 16). A mesma autora observa que, a partir daí, as creches passaram a apoiar-se numa visão de assistência compensatória às crianças, que vinham, em sua maioria, de classes sociais desfavorecidas, enfatizando o aspecto médico-nutricional.

Foi somente com a promulgação da nova Constituição, em 1988, que a creche passou a ser um direito da criança, uma opção da família e um dever do Estado, vinculando-se à área da educação. Com isto, propostas pedagógicas foram elaboradas na tentativa de uma melhor estruturação desse espaço educacional, permitindo a superação de seu caráter puramente assistencialista. Sendo assim, passou-se a definir a função da creche como "educativa, voltada para os aspectos cognitivos, emocionais e sociais da criança, enquanto contexto de desenvolvimento para a criança pequena" (Oliveira et al., 1992, p. 49).

Mesmo assim, concordamos com Langer quando afirma que ainda hoje as creches têm um lugar ambíguo no sistema de ensino, já que seus interesses continuam voltados mais para a mãe que trabalha do que para as necessidades da criança, reconhecendo também os efeitos disso no educador. "A socialização da criança pequena em creche atendeu à necessidade dos tempos atuais. No Brasil tem acompanhado os acertos e desacertos da política educacional do país, tornando difícil o reconhecimento desse atendimento como um espaço genuinamente educativo. Confundindo-se no assistencialismo que marcou seu surgimento, ainda hoje os educadores de creche precisam elaborar as contradições daí decorrentes" (1992, p. 123). Como exemplo, citamos os comentários de duas cuidadoras de berçário que, ao serem indagadas sobre para que serve uma creche, afirmam, ambas, que é para ajudar a mãe, já que sem ela a mãe não poderia trabalhar; "isto (a creche) é uma bênção para as mães", afirma uma delas.

Desse modo, abre-se a discussão em torno dos educadores de creche e sua função junto à criança. Questões estas que não apenas surgem em decorrência dos arranjos políticos que afetam o funcionamento das creches, mas também alcançam o lugar que o educador ocupa na relação estabelecida com as crianças que atende, por se tratar basicamente de um atendimento à pequena criança. O educador de creche, que se dedica a cuidar de crianças de 0 a 2 anos, invariavelmente se confronta com o impasse de "ser ou não ser mãe" destas crianças. Claro está que sua função educativa não é a única por ele desempenhada. Atestamos isso ao recolher a seguinte afirmação de Rizzo: "A creche existe para exercer pela mãe, embora não assumindo seu lugar, as atividades tipicamente maternais junto ao seu filho, prestando-lhe assistência integral, cuidando da sua segurança física e emocional" (1984, p. 22).

Portanto, com o aparecimento das creches, o lar ou o ambiente familiar deixa de ser o único contexto tradicional de desenvolvimento da criança, transferindo-se também ao educador a responsabilidade de acompanhar este processo. Já não é mais apenas um profissional que objetiva o cumprimento eficiente de suas funções instrumentais. A ele cabe um outro lugar e, portanto, uma outra função, que o ultrapassa, e que opera à sua revelia. Assim sendo, a tarefa do atendente _ principalmente aquele de pequenas crianças _ exige deste um "algo a mais" impossível de ser entendido ou aprendido cognitivamente.

Retornando a partir daqui ao tema que anima este artigo, observamos que o trabalho desenvolvido pelo atendente da creche condensa uma série de questões que tangenciam a problemática dos efeitos de sua intervenção _ no sentido da necessidade e do desejo _ no processo de construção dos pequeninos a quem atende. Atendendo-se às crianças neste contexto, a que desejo se atende? Baseado em que suporte teórico e metodológico esse trabalho se apóia?

Oliveira et al. (1992) reconhecem que o trabalho exercido na creche depende de como é apreendida a questão do desenvolvimento, em que a função e a forma pela qual o educador desempenha seu trabalho sustentam-se numa particular compreensão do desenvolvimento da criança. Em seu estudo, argumenta que existem três concepções de desenvolvimento fundamentando tradicionalmente o trabalho em creche. A primeira, inatista, que reconhece o desenvolvimento "como o desenrolar de um novelo no qual já estão inscritas as características genéticas do indivíduo" (p. 27). Nesta perspectiva, o educador seria apenas o "jardineiro" responsável por cuidar e fazer brotar as pequenas sementes. Já na teoria ambientalista, o meio assume inteira responsabilidade em modelar, corrigir e estimular o desenvolvimento da criança, função esta intermediada pelo professor.

A terceira proposta, denominada interacionista, defende uma reciprocidade de influências, argumentando que o desenvolvimento se constrói na e pela interação da criança com outras pessoas, e o educador da creche também se insere nesta rede de relações, na medida em que oferece significados e interpretações conscientes do mundo a esse pequeno ser.

Ao tentarmos construir uma proposta de discussão sobre a questão da articulação entre educação e psicanálise e sua inserção nas instituições que atendem a pequena criança, estamos apostando em uma nova possibilidade de compreender o processo de subjetivação e também de acompanhar o desenvolvimento de crianças de 0 a 2 anos no ambiente de creche em que se inclua o atendente de creche enquanto ser de linguagem e, portanto, de desejo. Isto é, supondo que um sujeito se constitua a partir de sua inserção na e pela linguagem, através de um outro que com seu desejo vai marcando-o na qualidade de significante.

Com essa nova possibilidade, alargamos ainda mais as funções da creche. Se tradicionalmente ela se configura como lugar onde se oferecem 1) os cuidados básicos, 2) um ambiente estimulador para o desenvolvimento cognitivo e psicomotor e 3) um lugar de trocas afetivas, deve-se localizar a creche também enquanto elemento simbólico no devir psíquico da criança. Idéia esta que confere à instituição um lugar instituinte. Sobre isso Carvalho reconhece que a creche é "representante do campo do Outro, universo simbólico da linguagem e da cultura, elemento fundamental para o advento da constituição subjetiva" (2001, p. 108). Assim, a creche passa a atuar não apenas nas frentes pedagógica, social, de saúde e psicológica, mas também na subjetiva. Atuação que se faz representar pelo atendente, que, no interior desta concepção, (re)assume seu lugar de educador na medida em que se posiciona enquanto agente do ato educativo a partir de seu desejo.

Sendo assim, o ponto de interesse neste trabalho não pode ser mais a já desgastada discussão sobre se a creche deve ser uma obrigação ou um direito, ou se ela é um mal necessário ou um benefício. Não nos cabe proferir este juízo de valor. Mas a questão deve partir do seguinte ponto: uma vez que esta instituição participa dos tempos precoces de subjetivação da criança, é preciso interrogar-se sobre que elementos passam agora a operar esse processo constituinte e que efeitos são produzidos a partir disso. Há um universo de possibilidades que se apresentam à criança numa creche, e devemos nos perguntar: quais as conseqüências psíquicas do que lhe é apresentado e como esta apresentação ficará inscrita, como se fará representar e existir? Que traços permanecem na criança vindos de quem a constituiu? Que série de atos a atravessa?

No ponto em que nos encontramos em nosso trabalho, alguns elementos de reflexão se destacam.

O FUROR PEDAGÓGICO

Lajonquière (2001) afirma que há uma indagação sobre a escola e a infância, localizando esta relação como paradoxal, na medida em que atualmente a escola convoca seus alunos _ crianças _ a responder de um lugar que ainda não ocupam, o de adulto, produzindo, portanto, discursos adulterados e "adultizantes".

É possível na creche transferir esse paradoxo afirmando que lá também não há lugar para a infância? Esta idéia acaba sendo reforçada pela nova LDB (1996), que determina que a educação infantil será oferecida tanto em pré-escolas _ para crianças de 4 a 6 anos _ quanto por creches _ para crianças com até 3 anos de idade _, em que "os programas, mesmo os de creches, deverão ter função eminentemente educativa, à qual se integram as ações de cuidado com a alimentação e a saúde", segundo as normas para a educação infantil no estado do Paraná (001/99). Seguindo o documento, cabe à creche responder por três frentes de ação: a pedagógica, a social e a de saúde. Nestes três aspectos, destaca-se principalmente o acento na relação necessária entre educador e educando, para que se alcancem efetivamente os objetivos propostos. Se, por um lado, é possível observar um avanço no que se refere às atribuições dessa instituição, ultrapassando o caráter assistencialista, por outro, no entanto, ainda permanece obscuro o lugar dado à subjetividade, seja da criança, seja de quem dela se ocupa. O que preocupa é que a educação e o ato educativo passem a ser entendidos apenas a partir de um "furor pedagógico", que começa a se instituir nos denominados "centros de educação infantil" _ instituições que mantêm, simultaneamente, o atendimento a crianças de 0 a 3 anos em creche e de 4 a 6 anos em pré-escola, como se dá no caso em estudo. Numa conversa com uma educadora responsável pelo berçário, esta afirmava que a maior função da creche "é ensinar as crianças. Elas não vêm aqui para brincar, elas aprendem muito aqui". Conforme documento já citado (001/99), a educação infantil deve basear-se em determinados princípios, entre os quais estão a garantia de espaço para o jogo e o brinquedo e a oportunidade de acesso ao conhecimento elaborado. O que surpreende é o fato de que a "aquisição de estruturas operatórias de pensamento" (LDB, 1996, p. 17) não supõe como instrumento o brincar e/ou o jogo. A este aspecto, atribui-se a construção das emoções e formação do caráter. Abolir o brincar em nome do ensinar é impedir a criança de aprender, já que, para alcançar o tempo da compreensão cognitiva, é necessário que haja o momento do registro, das primeiras inscrições, que se realiza fundamentalmente pelo brincar.

Torna-se ainda mais preocupante esse aspecto no tocante aos bem pequenos, portanto, aos infans. Se uma educação dita primordial que chegue a um "bom" resultado é aquela que inclui o ser no discurso, permitindo-lhe o usufruto da palavra, esta educação cabe também à creche fazer operar. Junto com os pais e/ou a família, torna-se parceira nesta empreitada humanizadora dos pequeninos, em que estes, seja em casa ou na creche, passam a ocupar um lugar na história, sujeitos a ela. Significa então passar uma nova "demão" de tinta sobre a fronteira que separa o educativo do pedagógico, reafirmando não só suas diferenças, mas demarcando o lugar de cada campo. Fazer do educativo o fim e do pedagógico apenas um meio talvez ajude o dito educador a elucidar seu lugar junto a seus pequenos pupilos2.

Se concordamos com Lajonquière (2001) em que educar é transmitir marcas simbólicas _ inventar metáforas que possibilitem ao pequeno sujeito usufruir de um lugar a partir do qual possa se lançar às empresas impossíveis do sujeito _, conferimos ao brincar seu estatuto não só constituinte, mas também educativo no sentido em que é por meio de seu exercício que o infans poderá marcar seu lugar na linguagem como autor de si mesmo.

CUIDAR, EDUCAR, PREVENIR

Já se sabe que a educação exige e opera o recalque, e que um dos alvos principais _ e talvez primordial _ deste na criança é o corpo. Sendo assim, a atenção dispensada na primeira infância aos cuidados do corpo é intensa. É preciso educar o corpo, cuidando dele. Segundo o RCNEI (1998), "educar significa propiciar situações de cuidado, brincadeiras e aprendizagens de forma integrada e que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis de relação interpessoal, de ser e estar com os outros em uma atitude básica de aceitação, respeito e confiança, e o acesso, pelas crianças, aos conhecimentos mais amplos da realidade social e cultural. O desenvolvimento integral depende tanto dos cuidados relacionais que envolvem a dimensão afetiva e dos cuidados com os aspectos biológicos do corpo, como a qualidade da alimentação e os cuidados com a saúde, quanto da forma como esses cuidados são oferecidos e das oportunidades de acesso a conhecimentos variados". Aqui se revela que a educação infantil cumpre com duas funções indispensáveis e indissociáveis aos olhos do Estado: educar e cuidar, e sua proposta pedagógica deve garantir a articulação entre estas duas ações. Carvalho (2001) também acrescenta ao cuidar a idéia de preocupação. Para ela, a preocupação com aquele que é cuidado requer que se ocupe dele com antecipação. Neste sentido, cuidar de um bebê é antecipá-lo num funcionamento que por sua vez deverá ser educado.

Se entendermos que cuidar refere-se a uma idéia de guarda e proteção, admite-se que cuidar de um corpo é protegê-lo e guardá-lo, mas do quê? Da pulsão. Um corpo bem educado é aquele que regula seus ritmos de acordo com aquele que se ocupa dele. Na creche, é preciso organizar-se para sentir fome na hora das refeições e sono na hora da sesta. Portanto, um corpo bem cuidado é aquele que ordena-se nesta nova ordem, em que o espaço para o impulso é tomado como mal-educado. É o caso da pequena B., que morde seus coleguinhas e até mesmo os adultos. Segundo a diretora de creche e da própria educadora, isso é "pura maldade". Bergès & Balbo (2001) afirmam que o corpo é "o próprio teatro do desconhecimento", apontando para o fato de que, à medida que esse corpo vai sendo tomado pela pulsão, um saber aí vai se instalando, mas que vai sendo "obstaculizado sem cessar pelo discurso do outro [...] que se vê confrontado com sua própria verdade sobre a relação sexual" (pp. 18-9).

Essa regulação dos ritmos _ fundamental na constituição _ está determinada pela atendente quando a criança permanece boa parte de seu dia na creche. Mas isso que ela cumpre está referido a uma instância que a ultrapassa? Ou seja, há um Outro que opera o funcionamento de outro? É fundamental que a creche possa ser tomada pela atendente como referencial, no sentido de, na sua relação com a criança, ser instituída da função de Grande Outro.

Reconhecer a creche como um lugar de cuidados, antecipação e educação nos leva a intoduzir a questão da prevenção e, mais precisamente, a sua articulação com a psicanálise e a educação infantil. Seguindo uma idéia de Almeida (1998), é prudente abordar esse conceito desde sua etimologia, que opera no sentido de "vir antes, tomar a dianteira". A autora lembra com propriedade o quanto a prevenção está a serviço das ideologias dominantes que atravessam cada cultura e que justamente sustentam e determinam as modalidades de intervenção preventiva existentes nas áreas de educação e saúde nas sociedades. Neste sentido, o termo prevenção "toma a dianteira", antecipando um modelo de cidadão desejado, conforme _ ou conformado _ os ideais do Estado. Almeida também examina o conceito de saúde mental, apresentando alguns elementos importantes na reflexão sobre este tema, em que basicamente a saúde é tomada como um processo que, embora esteja intimamente ligado à subjetividade de cada um, é afetado pelos determinantes socioculturais. Ao relembrar Mal-estar na civilização, texto de 1930, a autora acentua que para Freud as condições básicas de saúde mental verificam-se nas capacidades subjetivas de amar e trabalhar. E que submeter-se ao processo civilizatório implica deixar-se cindir pela renúncia às vigências pulsionais, operação esta exercida pelo recalque.

Assim vamos nos aproximando da questão da função da educação infantil na promoção da saúde mental. Há aqui, portanto, um paradoxo, que se acentua ainda mais se nos referimos à questão da creche e dos bebês e crianças pequenas. Entender que o ato educativo anuncia a renúncia às pulsões, exigindo que corpo e sujeito submetam-se ao princípio que a realidade impõe, supõe um sujeito já ativo em seu funcionamento pulsional. Ao pensarmos num bebê _ tomando esta condição como aquela que atesta um tempo em que a operação lógica vigente é a construção de seu circuito pulsional e, portanto, num tempo de alienação _ integrado na creche, que assume cada vez mais o caráter educativo, o risco é que deste pequenino seja exigido renunciar àquilo que nem bem ainda se estabeleceu. Ou seja, a idéia de saúde mental ligada à prevenção no âmbito da creche precisa supor justamente os dois tempos em jogo: o da alienação e o da separação. Fazendo referência à afirmação de Aragão (1994), de que "a educação não deveria dar à criança a impressão de que todos os impulsos são perigosos" (p. 38), é preciso entender que às vezes o que é perigoso para um bebê é não estar submetido aos impulsos.

O que seria então o ato educativo relativo a um bebê?

Segundo Freud, o processo de humanização que permite o ingresso da criança na cultura, tomando lugar em relação à Lei, aos códigos e aos discursos que a organizam, é função da educação. Humanizar, portanto, é antes de mais nada marcar o sujeito com o significante, operação esta que abre espaço para a desbiologização do corpo e seu amarramento à pulsão.

Educar o bebê nesse sentido também aponta para uma renúncia, já que o estabelecimento do circuito pulsional faz cair o objeto, constituindo-se numa perda. É, porém, uma operação de outra ordem. Aqui ao que se renuncia é o real do corpo, e não a crença imaginária de um corpo fálico. A operação de subversão acionada pelo significante que faz da necessidade uma atividade pulsional inaugura, portanto, o sujeito, já que o arranca de um real irredutível ao simbólico a que ele se reduz. Pode-se afirmar cristentão que, quando o outro cuida de um corpo, o faz atendendo um sujeito (do desejo), que se localiza tanto do lado da criança quanto de seu cuidador. Estaria aí o germe do ato educativo?

Portanto, propor que a creche seja não apenas um lugar de cuidados instrumentais, mas que se reconheça nisso o dispositivo de transmissão de saberes, afirmando sua vocação educativa _ mais do que pedagógica _, é localizar também sua responsabilidade no trabalho de prevenção. Termo este que não pode e não deve imiscuir-se no de (psico)profilaxia, já que este arrasta consigo a idéia de assepsia nos cuidados, antecipação excessiva no atendimento e eficácia total na educação3. Tarefa que vai exigir da equipe não apenas um olhar diferenciado sobre a criança em constituição, mas também uma abertura para fazer de sua prática uma interrogação permanente, capaz de provocar uma mudança de posição junto à criança que é atendida, cuidada e educada.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Por se tratar de um estágio supervisionado, contamos, em nossas reflexões, com a indispensável colaboração de nossas estagiárias, sem as quais este trabalho não teria sido construído. A elas, nossos sinceros agradecimentos.

2 Sobre esse assunto, Lajonquière, em seu artigo "Sigmund Freud, a educação e as crianças" (2002), vai mais além, ao conceder às práticas pedagógicas atuais um caráter de fundamentalismo psiconatural, abolindo assim a possibilidade de o desejo ser reconhecido e tornando a práxis educativa em uma mera prática pedagógica.

3 Atualmente a profilaxia tem-se articulado ao conceito de qualidade total, idéia (ou ideologia) que cada vez mais tem-se infiltrado no affaire pedagógico das escolas.

 

 

Recebido em julho/2003
Aceito em setembro/2003

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