Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.8 n.15 São Paulo jun. 2003
RESENHA
Petri, R.
Psicanálise e educação no tratamento da psicose infantil: quatro experiências institucionais
Marise Bartolozzi Bastos *
*Psicanalista, mestre em Psicologia Escolar pelo IP-USP, membro da equipe do Grupo Ponte da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida.
São Paulo, SP: Annablume, 2003
Eis um trabalho que traz uma importante contribuição a todos os profissionais que hoje se dedicam ao tratamento e à educação de crianças psicóticas, sobretudo quando temos no panorama da rede oficial de ensino inúmeras interrogações acerca da inclusão dessas crianças na escola regular.
Nesse trabalho, fruto de sua pesquisa de mestrado no Instituto de Psicologia da USP e de sua atuação na equipe clínica da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, instituição que trata de crianças psicóticas na interface entre os campos da psicanálise e da educação, Renata Petri discute como estes campos se conjugam no tratamento institucional de crianças psicóticas levantando uma questão que norteará todo o seu trabalho: "Qual a posição que ocupam os profissionais que tomam para si o tratamento institucional de crianças psicóticas?" (p. 17).
A autora parte dessa indagação e conduz sua pesquisa na direção de investigar quais os parâmetros que definem o lugar desse profissional no tratamento institucional da criança psicó tica _ seria esse profissional um analista ou um educador? Ela ressalta que "a resposta a esta pergunta não revela uma preocupação identificatória do lado do profissional (quem são eles?), mas uma preocupação clínica em relação a esta posição" (p. 17).
Sendo assim, Renata Petri instiga o leitor a acompanhá-la no desenvolvimento do tema afirmando que, além dessa, outras perguntas devem ser levantadas: quem são essas crianças psicóticas? A partir de que lugar um profissional deve intervir no tratamento de uma criança como essa, que tem uma relação persecutória com o Outro? E quais os efeitos das intervenções?
Partindo de tais interrogações, Petri contribui de modo original para que se estabeleça um novo enfoque de reflexão sobre as fronteiras que separam o tratamento e a educação de crianças psicóticas explicitando o modo de funcionamento da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, em que o tratamento proposto considera a educação como uma ferramenta terapêutica importante na construção subjetiva da criança.
Se os campos da psicanálise e da educação já foram alvo de inúmeros debates entre os teóricos que tratam da clínica com crianças, desde as primeiras abordagens do assunto feitas por Freud, o tratamento da psicose infantil traz novas perspectivas para fomentar essa discussão ao apresentar uma proposta que utiliza a educação como um dos eixos do trabalho terapêutico _ a educação terapêutica _ e sustenta uma direção de tratamento que permite conciliar o real do gozo dessas crianças com a ordem do mundo, tornando possível sua inserção e circulação na norma social.
Acompanhar o interessante levantamento histórico que a autora faz das relações entre a psicanálise e a educação, partindo de Freud e introduzindo autores como Anna Freud, Melanie Klein e C. Millot, permite que os leitores localizem desde os primórdios da psicanálise essa discussão a respeito de quem trata crianças, se é o educador ou se é o analista.
Os desdobramentos dessa questão conduzem a uma importante diferenciação entre educação e prática pedagógica assinalando um ponto de vista que marca a disjunção entre psicanálise e pedagogia, enfocando o papel da educação, entendida aqui a partir de operadores da psicanálise, nas vicissitudes da constituição do sujeito.
Para sustentar suas articulações teóricas, Petri fundamenta-se nos trabalhos de Maud Mannoni, psicanalista francesa que desenvolveu na Escola Experimental de Bonneuil, fun dada na França em 1969, um trabalho com crianças psicóticas, débeis e neuróticas graves excluídas do sistema regular de ensino. Mannoni afirmava que a educação teria se tornado impossível uma vez que impõe ideais que não se questionam e alertava para uma importante diferenciação a ser feita entre educação ideal e o ideal de uma educação.
A educação ideal é aquela que pretende ter respostas para tudo, é um mandato imaginário, e quem recebe o mandato fica no lugar de objeto que deve completar o Outro mandante, não havendo lugar para o imprevisto ou para o desejo. Por sua vez, "o ideal de uma educação é de ordem simbólica, articula uma demanda que é enigmática, tem proibição, abrindo a possibilidade para o desejo, para o imprevisto, para o improviso, para o surgimento do sujeito" (p. 25).
O trabalho de Renata Petri traz, assim, uma inovadora contribuição aos profissionais que trabalham no campo da educação e na abordagem clínica da psicose infantil ao promover uma reflexão do que seria a educação à luz da teoria psicanalítica: "Educação como a possibilidade de a criança vir no futuro a usufruir como um adulto do desejo que nos humaniza" (p. 29); educar para se constituir um sujeito desejante.
Para pensar essa questão, introduz a noção de primeira e segunda educação, esclarecendo que não se trata de uma seqüência cronológica, mas a primeira não pode estar impossibilitada, para que a segunda possa ocorrer. Sendo assim, a primeira educação é responsável pela inscrição da criança no campo do Outro, ou seja, é responsável pela construção de um lugar de enunciação para a criança e se ocuparia da constituição do sujeito. A segunda educação, por meio do discurso social da modernidade, daria continuidade ao trabalho feito pela primeira. Portanto, nas palavras da autora, "a aprendizagem não é um processo exclusivo da instituição escolar, muito pelo contrário, a criança aprende o tempo todo, ainda que não seja este o objetivo específico da relação" (p. 51).
Perseguindo seu intuito de responder à questão "quem são essas crianças?", a autora faz uma incursão pela teoria lacaniana abordando o tema da psicose infantil como o efeito do fracasso dessa primeira educação fundamental responsável pela inscrição do sujeito em uma filiação simbólica. Conceitos extraídos das teorizações de Lacan sobre o tema das psicoses, como foraclusão do Nome-do-Pai, Metáfora Paterna, alienação, separação, identificação, laço social e discursos, são discutidos a partir de vinhetas clínicas para se pensar nas particularidades da psicose infantil e do tratamento institucional.
Como está anunciado já no título de seu trabalho, Renata Petri faz uma exposição e discute o dispositivo institucional de quatro instituições de orientação psicanalítica que recebem crianças psicóticas para tratamento. Ela apresenta o funcionamento da Escola Experimental de Bonneuil, em que estagiou, Antenne 110 e Courtil, três instituições estrangeiras, para finalizar com a elaboração do trabalho desenvolvido na Lugar de Vida, instituição que lhe serviu de campo de pesquisa.
Segundo a autora, o motivo de sua escolha em discutir quatro experiências institucionais distintas justifica-se na medida em que o relato do funcionamento dos dispositivos institucionais e de alguns casos de cada instituição propõe soluções particulares para os impasses vividos, dando a relevância necessária à singularidade de cada situação clínica. Nos relatos das experiências das instituições estrangeiras, Renata Petri vai pensando o lugar dos profissionais no tratamento institucional da criança psicótica a partir da nomeação que cada instituição dá aos membros de sua equipe: em Bonneuil, os profissionais são simplesmente chamados de "adultos"; em Antenne 110, são chamados de "educadores"; no Courtil, depois de algum tempo de funcionamento mudou-se a denominação dos profissionais de "educadores" para "interventores"; e, no Lugar de Vida, são nomeados como "coordenadores de atividades".
Em todas as experiências institucionais apresentadas, contudo, o agente da clínica se põe em cena como sujeito dividido, há desejo pessoal em jogo, esse desejo tem nome próprio, e serão tantos quantos forem os profissionais na instituição. É assim que, em Bonneuil, afirma-se que a criança psicótica precisa que o adulto se interesse por outras coisas além dela. Em Antenne 110, a posição desejante de cada educador é condição indispensável para o trabalho, e, no Courtil, fala-se de desejo de analisante do lado dos interventores.
Renata Petri adverte que o lugar do analista não pode ser confundido com o lugar do educador, pois este representa um ideal, transmitindo valores que vão colaborar com a construção do eu da criança. No entanto, retoma as formulações de Colette Soller, afirmando que existem particularidades no trabalho de psicanálise com crianças, sobretudo quando se trata do que essa autora chamou criança/objeto, pois, neste caso, o analista deverá ocupar o lugar de Outro primordial, não deixando de operar no eixo da ética da psicanálise. No trabalho com crianças psicóticas não se pode falar em eu já constituído, nem tampouco em sujeito, a não ser a partir da posição ética de supô-los ali onde ainda não operam. Neste sentido, aquele que ocupa o lugar de Outro primordial para uma criança deve desejar algo para ela, deve se apresentar faltante, pois só assim a criança poderá se constituir como um sujeito desejante.
Petri demonstra ficar claro, portanto, que o profissional que trabalha nessa clínica institucional é convocado no lugar de sujeito, uma vez que o tratamento da psicose infantil, como afirma Baio, deve ser pensado como uma "contra-análise", pois não é um tratamento do sujeito, mas do Outro implacável.
Os agentes dessa clínica formulam demandas, mas não impõem uma resposta correta a ser dada. Portanto, seria possível dizer que existe uma posição de mestre, contudo, trata-se de um mestre barrado, na medida em que sabe que nada sabe pelo outro, posição radicalmente diferente da do mestre da pedagogia. Em suas considerações finais, Renata Petri faz quase uma provocação, quando aproxima a posição desse profissional que trabalha com a psicose infantil na clínica institucional daquilo que Freud designou como "educador analítico", ou seja, um certo tipo de educador especializado, atravessado pela psicanálise, que tanto mal-estar gerou entre os psicanalistas com posições mais ortodoxas.
Com coragem, a autora finaliza seu trabalho afirmando que esse tratamento institucional não poderia ser pensado como uma análise no sentido do tratamento padrão, mas seria, sem dúvida, uma psicanálise possível na medida em que preserva a ética analítica e uma vez que "estas crianças, habitando um lugar de objeto nas relações com o outro, não deixam outra opção para o adulto que as toma em tratamento, senão o lugar de sujeito, e é este sujeito, dividido, com uma escuta analítica, mas se servindo do discurso de mestre, que estamos chamando aqui de educador" (p. 126).
Recebido em outubro/2003.
Aceito em novembro/2003.