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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.9 n.17 São Paulo dez. 2004
DOSSIÊ
Tratamento psíquico e tratamento somático na criança e no adulto
Psychic treatment and somatic treatment in children and adults
Marie-José Del Volgo*I; Inesita Machado(Trad.)
*Universidade de Aix-Marseille II
RESUMO
Médica fisiologista, com funções no quadro hospitalar de um laboratório de exploração funcional respiratória, preservo um espaço de palavra, um “instante de dizer” a todos os pacientes que fazem um balanço e uma avaliação de sua função respiratória. Foi nesse cenário que encontrei os pacientes apresentados neste trabalho. Todos os quatro são acometidos por doenças somáticas reais, medicamente confirmadas. Tratar a doença com a medicina e tratar o doente com a psicanálise, é com este custo que o tratamento psicanalítico pode continuar a se realizar numa medicina cada vez mais tecno-científica e desumanizante.
Palavras chave: Culpa, Cura, Doença, Psicanálise, Tratamento.
ABSTRACT
As a physiologist medical doctor, with functions in the hospitalar department of a laboratory of respiration functional research, I reserve some words, “an instant of saying” to all the patients who take a stock and have an evaluation of their respiratory function. It was in this scene that I found the patients involved in this research. All the four patients are affected by real somatic, clinically confirmed diseases. Treat the disease by medicine and treat the patient by psychoanalysis; it is the way in which the psychoanalytic treatment can continue to be practiced in a more and more techno-scientific and dehumanizing medicine.
Keywords: Guilt, Disease, Psychoanalysis, Treatment.
“Para a medicina, dividida em tantas especialidades, a psicanálise é uma bênção, pois recomenda, em toda forma de doença, tratar o doente, tanto quanto a doença. Isto sempre foi reconhecido como um princípio, mas, no entanto, raramente realizado pela falta de conhecimento psicológico [...]. Sem dúvida, já é tempo de levar a sério a expressão ‘tratamento individual do paciente’”. (Ferenczi, 1933, p. 121)
Minha prática clínica, a do instante de dizer1, considera a realidade psíquica do paciente e a realidade material da doença, dentro de uma complementaridade dos métodos, objetivante para a investigação médico-biológica e intersubjetivante para a psicopatologia clínica e a psicanálise. O campo da psicopatologia clínica é muito dependente daquele da linguagem e da palavra, procede de uma análise do discurso desenvolvido sob transferência e não permite confundir a palavra empregada pelo paciente com o elemento somático ao qual se espera que ele se refira e que a construção médico-biológica tentaria explicitar a seu modo. Não poderíamos, a partir daí, elevar à condição de causa determinante de sua doença, ou simplesmente como fator suplementar, ou rico aditivo, o que ouvimos do inconsciente do paciente. Estabelecer uma relação qualquer de causalidade entre um acontecimento somático e as circunstâncias de sua aparição consiste num erro fundamental, confundindo um evento de coisa e um evento de palavra. Não se trata de dissolver na causalidade múltipla esta palavra evocada por ocasião de uma queixa, mas de reconhecê-la como produto e efeito de seu colocar-em-palavras. Trata-se de restituir a todo sofrimento que se inscreve num “sintoma” – em seu sentido etimológico de “evento infeliz” – somático e inscrever, qualquer que seja a categoria nosográfica a que pertença, suas coordenadas imaginárias e simbólicas. O “romance da doença” (Del Volgo et. al., 1994), durante o seu colocar-em-palavras, sua historização, permanece muito dependente das regras da livre associação e da atenção flutuante. Assim, convém poder desprenderse, manter-se à distância da significação das palavras, inclusive e sobretudo as médicas, para poder abandonar-se à escuta de um discurso, aceitando-se renunciar à coisa somática de que ele parece falar.
Os quatro pacientes apresentados neste trabalho têm doenças somáticas reais, ou seja, medicamente confirmadas. Para Haykiel e Julie, trata-se de uma asma, enquanto que os dois outros estão curados de patologias graves há vários anos: uma má formação cardíaca em Karim e uma doença de Hodkin na Sra. I., sem que, no entanto, estivessem psiquicamente curados. De qualquer modo que estejam suas doenças somáticas, presentes ou passadas, podemos ouvir, na singularidade de seus discursos, o valor psíquico de seu sofrimento, para melhor diferenciar o somático do psíquico e, mais particularmente, o tratamento de um e de outro – tratamento de uma doença por um lado e tratamento do doente de outro – para retomar Ferenczi. Tratar a doença com a medicina e tratar o doente com a psicanálise, é a este custo que o tratamento psicanalítico pode continuar a se realizar numa medicina cada vez mais tecno-científica e desumanizante.
HAYKIEL E O MITO INDIVIDUAL DO DOENTE
Haykiel é um menino de cinco anos, com o ar sério e um olhar triste. Segundo os exames pelos quais veio me consultar, ficou demonstrado em sua avaliação respiratória que tem asma severa, muito sensível ao tratamento, que remonta provavelmente a uma bronquite ocorrida aos seis meses. Mas quando o encontro, na consulta individual, não falamos em asma. Haykiel vem com sua mãe, uma morena rechonchuda, doce, atenta e sorridente. À minha pergunta “o que traz você aqui?”, ele responde sem hesitação “estou doente”. Explica que tem dor de garganta e fala de um acontecimento durante o verão: foi arranhado por um gato durante suas férias na Argélia. A primeira reação da mãe é dizer que essa história é uma invenção de Haykiel. A criança diz então tratar-se de sua irmã. Sorrindo, a mãe diz nada saber sobre isso. Haykiel então anuncia uma outra verdade subjetiva: foi encontrado numa lata de lixo. Manifesto uma certa surpresa, e a mãe explica, primeiramente dirigindo-se a ele que estava realmente em seu ventre e, em seguida, explica o porquê da observação. Rindo, ela conta que o primo de Haykiel, também com cinco anos, caiu numa lata de lixo em seu nascimento. Segundo a mãe, no momento do parto, os estagiários da maternidade, num momento de confusão, jogaram o bebê no lixo, junto com outros dejetos. O bebê foi recolhido, verificouse que não havia nenhum dano, e ainda que houvesse muito receio, tudo acabou bem. Durante este relato, Haykel me pede uma folha para escrever seu nome. E, então, sua mãe prossegue dizendo que Haykiel caiu, há um ano, do segundo andar de sua casa. Pergunto a ele, e me diz que subiu num banquinho e inclinou- se para ver seu tio que estava em baixo. Apresentou um hematoma craniano que precisou ser operado e, em seguida, ficou bem.
No encontro com Haykiel, tenho cada vez mais surpresas, e isto desde suas primeiras palavras. Pelo menos em minha prática clínica, a maioria das crianças não têm resposta à minha pergunta sobre o que as traz ao meu consultório, olham para a mãe, manifestam uma distração evidente, ou acabam por responder “não sei”. Este não é o caso de Haykiel. Sem dúvida, na urgência da demanda, ele não deixa escapar a oportunidade oferecida para colocar em palavras o enigma de seu sofrimento psíquico, o trauma da queda e, sem dúvida, ainda que ele não fale diretamente sobre isso, a angústia da asma. “Asma”, etimologicamente, deriva de “angústia”. E a isto Haykiel associa rapida mente o enigma de suas origens. De onde ele vem? Seria ele um dejeto encontrado no lixo? A queda da varanda do segundo andar inscreve esta questão em sua história singular e, sem dúvida, a fantasia de uma perda do paraíso originário por um erro que ele teria cometido, expulso do corpo do Outro.
Perdido em suas interrogações e suas fantasias: é ele ou sua irmã? É ele ou seu primo? Haykiel pede para escrever seu nome numa folha. Escreve seu nome em dois lugares do papel, em cima e em baixo. Enquanto que o de cima é dividido, ele envolveu cada letra com um traço, o nome da parte de baixo está escrito mais corretamente e encontra-se envolvido no todo, sem separação de letras. O próprio desenho se apresenta dividido em duas partes, a de cima e a de baixo. A eficácia simbólica do relato de Haykiel, acompanhado por sua mãe, referese a seu valor de mito. Como ressalta Paul Ricoeur (1968), o mito, relato das origens, tem uma função de instauração porque sempre diz de que modo algo nasceu. É nesse sentido que Lévi-Strauss (1949) reconhece a função de eficácia simbólica do mito, fazendo a oposição dos “mitos sociais” recebidos pelo indivíduo, do xamã, por exemplo, à noção de “mito individual” que o sujeito neurótico produz em todo dispositivo analítico.
JULIE E SUA ASMA
Julie nos dá a oportunidade de ficarmos atentos às explicações psicológicas de doenças como a asma, de nos abstermos de qualquer crença psicossomática. Com ela, estaremos avisados de que é absolutamente necessário tratar a asma independentemente de qualquer determinação psicológica.
Julie é uma jovem de 16 anos, acompanhada por um jovem pai que explica imediatamente não ser o marido. Julie relata sua recente crise de asma, especialmente grave, atribuindo- a a um tratamento mal feito por ela. Aliás, foi encaminhada pelo médico em função de uma avaliação respiratória por esse mesmo motivo. O andamento da conversa irá convencê-la da necessidade do tratamento, conclusão a que chegamos sem técnica premeditada e menos ainda de forma protocolar. Essa jovem simpática conta, com muita espontaneidade, as circunstâncias da crise de asma que a levou à emergência de um hospital. Nessa semana, ela deveria ter comparecido a duas consultas com dois pneumologistas diferentes, consultas estas marcadas respectivamente por sua mãe e por seu pai, atualmente separados. Na realidade, ela acabou na emergência antes das consultas previstas. Poderíamos dizer que, assim, ela não teve que escolher entre sua mãe e seu pai. Há alguns meses ela tinha mais crises do que habitualmente. Para tratar as crises durante a noite, o “tratamento principal” consiste numa proximidade física com a mãe, que a abraça e consegue acalmá-la. Este ritual obedece à crença de que a asma e suas crises estão associadas ao stress. Ela me diz que de fato está estressada, que a asma vem com o stress e que sua mãe marcou uma consulta com um “psi” que trata o stress através dos pés. Apenas nos divertimos com esta possibilidade de tratar a cabeça pelos pés, ainda mais que ela explica, rindo, que deseja que este “psi” possa ter prazer nisso, pois seus pés cheiram mal. Durante uma forte crise, ela também foi consultar um homeopata, que lhe disse que em cinco dias tudo teria passado. Ele mudou seu tratamento e ela pensa que isso agravou sua asma. Neste momento, ela considera que deve fazer o tratamento para a asma, mas isso “enche”. O pai intervém para reduzir, minimizar essa afirmação. Que fantasmas mobilizam esta expressão em um e em outro? Apesar da dificuldade em saber algo sobre isso no quadro limitado de um trabalho psicanalítico, não perco a oportunidade de perguntar-lhe sobre essa expressão. Julie diz que o que “enche” é o hábito. No início, o material a diverte, mas, após a fase da descoberta e da novidade, tudo isso a aborrece.
Quando Julie volta a consultarse, dois anos mais tarde, chega com uma crise de asma particularmente grave2. Desta vez vem com sua mãe. Julie está angustiada, tem medo de tirar sangue, recusa o procedimento, as enfermeiras se agitam e pensam que é principalmente sua angústia que a deixa em tal estado psíquico. Conversamos alguns minutos. Julie está sem tratamento há 24 horas. O pneumologista solicitou um exame “com” o tratamento. Mas tanto Julie, quanto sua mãe entenderam o manuscrito do médico como “sem”. O que me faz pensar que ambas ficam tentadas a prescindir dos medicamentos e esperam ainda uma cura miraculosa; a mãe, com um tom de lamento, admitirá durante a entrevista, que os medicamentos são realmente necessários. Julie volta quatro semanas depois, “sob” tratamento, tendo tomado todos os medicamentos. Ela vai bem e seus exames estão normais.
Se devemos reivindicar uma separação radical entre a doença do médico, objetivada pelo médico e a do doente, compreendida como uma clínica da singularidade, para que possamos melhor tratar uma e outra, os traços corporais e a história da doença não deixam imunes a memória viva, ou seja, a memória inconsciente. A angústia e a culpa são os vestígios disso para Karim e para a Sra. I.
A MEMÓRIA NO CORPO E A ANGÚSTIA DE KARIM
Nesta manhã, de meu consultório, ouço uma criança chorar com força. Um menino de seis anos, com a cabeça raspada, acompanhado de seu pai, chora muito diante dos aparelhos de medição de fôlego. A enfermeira, habituada, explicou-lhe o que fazer, mas sua tentativa de colocar o bocal foi em vão. Este gesto simples, indolor, não justificava o terror da criança, que tem idade compatível com uma exploração respiratória. O exame foi pedido pelo pneumologista por causa de uma “tosse crônica”, não sensível aos brônquiodilatadores e aos corticói des inalados. O pai grita para que o menino aceite fazer o exame. Quando chego, minha intervenção não é muito mais eficaz; pergunto- lhe por que está chorando e evidentemente fico sem resposta. Tento afastar o pai que se mostra brutal com a criança e irrita todo o pessoal, que comenta: “Basta ver o pai!”. As coisas só pioram e, sempre sem voz, sem gritos – Karim não chama seu pai – ele volta seu rosto cheio de lágrimas para a porta e procura seu pai com o olhar. O pai volta, e eu os deixo.
Quando eu os recebo em minha sala, Karim está sem fôlego. Mas não falaremos da tosse e da suspeita de asma. O pai me diz que Karim sofreu “uma grave operação” por causa de uma “má formação cardíaca”. Na verdade, ele só mencionará isso, após várias tentativas de evitar o assunto. Primeiro, ele me mostra uma correspondência trocada entre o pneumologista e o cardiologista e, em seguida, a caderneta de saúde. Apesar de ter essas informações, pergunto à criança e aos pais os antecedentes médicos de Karim. O pai acaba dizendo que ele esteve doente aos 18 meses, mas que ele não compreende, não sabe que é ainda muito pequeno e não se deve falar disso.
A respeito da operação, pergunto ao menino se tem uma cicatriz. Ele diz que não sabe (são as primeiras palavras que pronuncia, retomando as do pai), mas ao mesmo tempo toca em seu peito. Pergunto-lhe onde se encontra seu coração e novamente responde não saber, ainda mostrando seu peito. Ao mesmo tempo, seu pai relaxou e fala da separação que durou dois anos. Karim ficou hospitalizado entre 18 meses e 3 anos e meio. Contrariamente a meus hábitos, interesso-me pela caderneta de saúde apenas no fim da consulta, mas leio em voz alta o nome da má formação cardíaca, “comunicação interventricular”. Duas páginas além menciona-se a “cirurgia cardíaca sem seqüelas”, que também leio em voz alta. Esse interesse pela caderneta de saúde é suscitado pelo próprio interesse de Karim, que murmura; “não podemos esquecê-lo”. Outrossim, minha participação muito ativa nessa entrevista foi provavelmente um efeito do desamparo manifestado pela criança com seu choro, e pelo pai, com sua brutalidade.
O pai me disse que foi muito difícil e que Karim tinha uma chance em mil de sobreviver, e me pergunta sobre a palavra “cardíaco”, “é o coração?”. Essa pergunta prova que a incompreensão e a ignorância que o pai atribui a seu filho lhe dizem igualmente respeito. Ser “cardíaco” significa, na linguagem popular, “estar doente do coração”. A palavra “cardíaco” realiza de alguma maneira uma condenação para Karim e provavelmente é responsável por seu medo dos “aventais brancos”, mas o mesmo se passa com o pai. Quando eles saem, a secretária me conta que o pai de Karim teria empurrado um dos médicos porque ele o recebeu mal. Ele pensa que “não é por usar um avental branco que uma pessoa pode tudo”.
Durante toda a entrevista, o pai se comporta de modo doce, calmo e atento em relação a seu filho. Ele fala da separação entre mãe e filho e da afeição e apego dos profissionais que se entristecem no momento de sua partida. Pergunto por que a mãe não acompanha Karim. O pai fala do táxi, do ônibus, do fato de que eles moram longe, mas Karim murmura maliciosamente “ela não deve ver os homens”.
O pai manifesta igualmente uma inquietação quanto ao envio de Karim, há um mês, para um centro especializado. Karim apresentou um atraso psicomotor, ainda que o pai o ache normal e inteligente, frisando: “ele conhece todas as partes do corpo”.
Os exames realizam-se normalmente. Ele faz tudo o que eu lhe peço sem reticências e sem o menor medo. Também com a enfermeira, tudo se passa bem. Para Karim, este interdito sobre o saber do passado de seu corpo, do qual ele carrega a cicatriz, interdito vindo do pai, contribui sem dúvida para o interdito de sua curiosidade sexual e de sua aprendizagem escolar. Ele fala pouco, murmura para fora de si, fechado, fixado num passado doloroso que lhe é proibido conhecer. A frase “não podemos esquecê- lo” remete fatualmente a caderneta de saúde, mas também à sua má formação cardíaca, sua operação e sua estada no hospital. Ele é pequeno demais para conhecer a verdade sobre seu passado e muito pequeno também para aprender a ler. Ora, seu interesse pela caderneta de saúde, livro de seu corpo e de sua saúde, manifesta seu interesse pela leitura de uma caderneta de saúde, antecessor de uma outra caderneta, a escolar.
Para Karim, a dificuldade em colocar o bocal evoca uma dificuldade em abrir a boca, em dizer um passado corporal muito doloroso e ainda muito presente, memória muito viva de um passado doloroso.
A CULPA EM CURAR-SE DA SRA. I.
A Sra. I. se queixa de falta de ar. Por isso, seu médico solicita uma avaliação respiratória. Com 70 anos, a Sra. I queixa-se também de perda de memória, o que é comum nessa idade. Mas ela poderia ter se queixado também de uma hipermnésia, relativa a um passado muito longínquo e sempre presente em sua consciência. Mas o esquecimento vem em primeiro lugar em seu discurso, um esquecimento que a traumatizou e a angustia ainda hoje, quando ela me fala disso. Há quatro anos, voltando do oftalmologista, ela não sabia mais onde morava, ou, mais exatamente, ela sabia onde morava muito antes e seus pensamentos dirigiam- se para esse único domicílio. Poderíamos dizer, ao ouvir a Sra. I., que esta visita ao oftalmologista, rotineira, havia esclarecido algo e ainda hoje contribui para a compreensão de uma mensagem e de uma verdade subjetivas inconscientes que a seqüência de seu relato irá, em parte, desvelar.
A Sra. I se lembra de que, voltando da visita ao oftalmologista, tomou o ônibus e chegou à sua casa, a seu domicílio atual, sem saber porém onde morava; sua memória não falhou, enquanto que a lembrança consciente referia-se a seu antigo domicílio. Esse retorno à casa não basta para assegurá-la e coloca a questão da angústia ligada a esse esquecimento, bem como a questão de uma angústia associada ao apartamento anterior. A Sra. I não mais se queixará de seus distúrbios de memória e, ao contrário, suas lembranças são muito precisas. Se ela “quis”, inconscientemente, na saída do oftalmologista, ir ao local de uma memória ferida, traumatizada, sem consegui-lo, o encontro desse dia lhe proporciona esse retorno, uma viagem no tempo, organizada na palavra e pela palavra.
A Sra. I conta então os acontecimentos marcantes associados a esse apartamento e a um momento particular em que ela tinha o hábito de visitar uma velha senhora para fazer massagens em sua perna traumatizada. Ela observa que esse gesto era gratuito, ao passo que hoje tudo se paga. Por ocasião de uma dessas visitas, o médico estava presente e a velha senhora aproveitou para assinalar a existência de um gânglio no pescoço da Sra. I. O Dr. D. a examina e recomenda que ela faça exames e consulte seu médico, que de fato trata-se de uma tuberculose. O médico da Sra. I é amigo do Dr. D., o que o impede de tomá-la como paciente.
A Sra. I, atormentada por esse encontro, fala com seu farmacêutico e este a incita a marcar uma consulta com o Dr. D. que, nessas condições, será obrigado a recebê-la. Ela segue o conselho do farmacêutico, marca a consulta e os exames evidenciam uma doença de Hodkin. Ela obtém uma consulta com o Professor P., que lhe diz que é preciso agir rapidamente, hospitalizá-la o quanto antes. Como é época de Natal, ela expressa o desejo de passar esse dia com seus dois filhos, de oito e dez anos. Para convencê-la da urgência da hospitalização e do tratamento, o Professor P. lhe diz: “pequena”, e ela ri com a evocação desta expressão, “você escolhe: um Natal sem seus filhos ou um Natal com eles e todos os outros sem”. Mas ela passará o Natal com eles, e o Professor P. proferiu outras palavras proféticas. Ele lhe disse que, se escolhesse o tratamento, iria sofrer e seria muito difícil, com irradiação, com quimioterapia, mas que, se fizesse tudo segundo sua determinação, estaria curada em cinco anos. Ela disse que o tratamento foi realmente muito duro e tem sempre em mente a exatidão do prazo. Cinco anos após o início do tratamento, o Professor P. anunciou-lhe sua cura.
Quando lhe agradeceu, ele lhe disse que ela só devia sua cura a si mesma. Já se passaram 25 anos e todos se surpreendem com o fato de que esteja tão bem, sem nenhuma seqüela respiratória ou cardíaca.
Se a Sra. I. está curada somaticamente e não tem nenhuma seqüela física, ela ainda se encontra psiquicamente doente de seu Hodkin. O que ainda a faz sofrer, diz, é o fato de ter sido obrigada a “abandonar” seus filhos durante a doença, é o sentimento de tê-los privado da infância, enquanto que ela mesma teve uma infância muito feliz, sem preocupações. Ela se vê como uma “criança solta no campo”, e esta evocação a faz sorrir, enquanto que falar de seus filhos faz com que chore. Seus filhos deviam limpar a casa, cuidar de tudo, enquanto ela ficava deitada após a químio. Quando começava a melhorar, era preciso fazer a sessão seguinte. Quando ficou curada, seus filhos quiseram continuar a cuidar da casa, mas ela não permitiu. Ela se preocupa com o mais velho, solitário, e se pergunta se isto não é conseqüência de sua doença.
O que atormenta a Sra. I, tanto quanto a lembrança de seus filhos, é o fato de que gostaria de retribuir aos médicos, ao Dr. D. e ao Professor P. o bem que lhe fizeram. Pensa que esses médicos nunca deveriam partir; eles eram tão humanos e ainda hoje ela gostaria de fazer qualquer coisa por eles; eles poderiam lhe pedir qualquer coisa que ela faria, até lhes dar um de seus olhos, e acompanha essas palavras com um gesto mostrando seu olho.
Sabe-se que o anúncio do diagnóstico e a revelação selvagem da promessa de morte3 que ele traz consigo, quando se trata de uma doença com grande potencial letal, vêm satisfazer a necessidade de punição de um sujeito ordinariamente neurótico e seu sentimento inconsciente de culpa. A cura da Sra. I., que ela só devia a si mesma, segundo as palavras da autoridade médica, pode apenas reforçar sua própria implicação em tudo o que lhe acontece, como, por exemplo, a culpa por não ter cuidado de seus filhos e pelo comportamento solitário do mais velho.
Ainda que haja complexos infantis determinando a culpa neurótica da Sra. I., pouco acessíveis em tal quadro de trabalho limitado pela situação clínica, a paciente usa este “instante de dizer”, usa minha oferta de escuta para dizer que o sofrimento atual, a presente angústia, resulta de sua história mais antiga e de suas questões que permaneceram ali. Ouvindo-se a Sra. I., ela seria responsável, culpada de sua cura, mas também de sua doença. Em resumo, ela teria desejado essa doença e, nesta economia psíquica, o pagamento da dívida possibilitaria descarregá-la da culpa, partilhar responsabilidades. Ouvindo-a, poderíamos dizer que só estará completamente curada quando pagar suas dívidas. Falar da surpresa dos outros com o fato de que esteja tão bem manifesta sua própria incredulidade sobre sua cura e explica sua angústia, bem como a de seus filhos a cada vez que ela vai ao médico.
Freud (1918) escreve, em O Homem dos Lobos (p. 31): “Uma de minhas pacientes me contou que seus filhos nunca chegaram a gostar do avô porque, ainda que brincando ternamente, ele os assustava dizendo que ele ia abrir suas barrigas”. Essa figura do avô explica a figura simbólica e imaginária do médico, figura ambivalente de um “mestre”, de um “pai” bom que protege, mas que é também a de um “lobo” que abre a barriga e que devora. Freud (1918, p. 38) prossegue: “O lobo continuava a ser o pai [...]. Depois de ser insultado pelo mestre-lobo, ele soube ser opinião geral de seus amigos que o mestre, para ser apaziguado, esperava dele dinheiro.” A angústia sempre está presente para a Sra. I. em cada encontro com o médico, apesar do final favorável da doença. O que mantém a Sra. I. nesse sofrimento culpado não é tanto o fato de não ter pago aos médicos, de não ter lhes dado um presente qualquer. Depois de 25 anos, ela sem dúvida teve essa possibilidade. O que mantém a Sra. I. nesse sofrimento culpado, o que angustia e faz sofrer a Sra. I. é muito mais ter sempre na memória as palavras do Professor P., segundo as quais ele seria a causa de tudo, do sucesso dos tratamentos, da cura somática e, portanto, também de sua doença. A idéia de pagar sua dívida através de uma doença física, dar, perder um olho, vai no sentido desse fantasma de que ela teria feito a sua doença.
Encontramos essa crença nas diversas teorias psicossomáticas em que a unidade psicossomática se encontra concebida num laço causalista. Uma das teorias mais correntes incrimina uma carência da vida fantasmática na origem da doença psicossomática, uma incapacidade do paciente em “fantasmar”. Sobre isso, François Perrier (1971-72) escreve: “Parte-se de uma posição em que se questiona o sujeito como se ele fosse, de algum modo, inconscientemente responsável por sua doença, e que ele devesse, portanto, responder em nome de seu inconsciente corporal, da linguagem de seus órgãos, de suas lembranças, de sua história, de seus fantasmas [...]. Isto para que uma certa ordem teórica ou explicativa se estabeleça, que dê sentido às relações entre o psiquismo e o soma ao mesmo tempo, para celebrar um filosofismo dualista e para o fantasma de não sei que holística [...] É horrível! Monismo fusional e reconciliador do corpo e do espírito! (p. 212).” Ele prossegue: “Em função dessa discordância entre uma lei, uma escrita e um discurso, uma ordem, uma ética, uma verdade e um mito pessoal, o corpo fica encarregado de substituir qualquer outra lei e qualquer ordem possível, em nome da ordem biológica a partir de então conflitual, eventualmente prejudicial [...]. A ordem biológica substitui o impossível acordo entre uma lei e uma verdade para um dado sujeito... o corpo vem no lugar de uma impossibilidade ética (p. 223).”
A psicologia, ciência do comportamento em sua ampla definição, tenta explicar a causa ou a evolução das doenças somáticas a partir de comportamentos inadaptados que seria conveniente corrigir. Essa tentação de atribuir ao doente a causa da doença, de “psicologizar” as doenças somáticas, pode ser encontrada no modo culpabilizador de se mobilizar as iniciativas de prevenção, qualquer que seja o grau de verdade científica desses estudos. Graças à prevenção, a doença poderia ser evitada. Dito de outro modo, se a pessoa não se submete aos atos de prevenção, ela terá que se haver com ela. No limite, poderíamos não reembolsar a esses maus cidadãos as despesas causadas pela doença que de algum modo eles mesmos fizeram. É a mesma ideologia que prevalece nas prescrições de um “ortobioestilo” (Skrabanek, 1994): não fumar, comer corretamente, praticar esportes... para estar em boa saúde, sem o que seríamos responsáveis, ou melhor, culpados pelas desordens e doenças físicas.
As verdades e os saberes médico-biológicos estão evidentemente distantes daquilo que chamei, com Roland Gori, “o romance da doença” (Del Volgo et. al., 1994). Estes vêm de uma ordem biológica, médica e não da ordem da palavra. A Sra. I., como vimos, cria, improvisa um relato romanesco, bem como Haykiel, Julie e Karim. O “romance da doença” é esta obra imaginária comparável ao “romance familiar” (Freud, 1909), alimentada por fantasmas inconscientes e levada pela associação livre que preside sua construção.
A doença do médico não é a “doença do doente”, expressão criada pelo cirurgião da dor, René Leriche, e que Canguilhem elevou à dignidade de conceito. Não se trata, neste “instante de dizer”, nesta oferta de escuta, de promover e de obter um saber exato sobre a doença, mas de possibilitar a emergência de uma verdade subjetiva do doente sobre sua doença e os fantasmas que ela mobiliza e organiza. Não é tanto a doença que leva a dizer, mas o sofrimento, a dor (Del Volgo, 2003), o pathos tão variável de um doente a outro. Não poderíamos estabelecer uma relação direta entre o conhecimento médico e o saber inconsciente, tanto um estabelece a doença quanto um objeto ali onde o outro determina a posição subjetiva do doente. Leriche considera que na doença o que há de menos importante é o homem. Não se trata de conhecimento médico, e até orgânico ou biológico, mas de um saber inconsciente, convocado a partir das palavras empregadas para dizer seu sofrimento no sentido do poeta René Char (1977, p. 190), para quem “as palavras que vão surgir sabem de nós o que delas ignoramos”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Canguilhem, G. (1943). “Essai sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique” suivi des “Nouvelles réflexions concernant le normal et le pathologique” (1963-66). In: Le normal et le pathologique. Paris: PUF, 1979.
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Endereço para Correspondência
Marie-José Del Volgo
Laboratório de Psicopatologia Clínica e Psicanálise
da Universidade de Aix- Marseille I.
101 rue Sylvabelle F-13006 – Marseille - França
mjd.cm@wanadoo.fr
Recebido em setembro/2004
Aceito em outubro/2004
NOTAS
1 Preservo um espaço de palavra, um “instante de dizer”, a todos os pacientes que vêm à consulta para uma avaliação de sua função respiratória.
2 Os exames mostram uma importante obstrução brônquica.
3 Em Brun (1989), explicita clara e rigorosamente os determinantes psíquicos da cura de um ponto de vista psicanalítico.
I “Maître de Conférences” na Faculdade de Medicina da Universidade de Aix-Marseille II. Médica no Hospital Nord de Marseille e Diretora de Pesquisa no Laboratório de Psicopatologia Clínica e Psicanálise da Universidade de Aix- Marseille I.