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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.9 n.17 São Paulo dez. 2004
ARTIGOS
Um retorno a Freud para fundamentar a clínica psicanalítica com bebês e seus pais: os estudos sobre telepatia
A return to Freud to found the bases to the psychoanalytical clinic with babies and their parents: the writings about telepathy
Leda Mariza Fischer Bernardino1
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
RESUMO
O trabalho propõe um percurso pelos textos de Freud sobre a telepatia, para fundamentar teoricamente a clínica psicanalítica com bebês e seus pais. As idéias de Freud sobre a transmissão de pensamentos e as condições específicas por ele apresentadas para a telepatia permitem avançar algumas hipóteses para responder a essas questões, na medida em que muitas das condições para que este processo ocorra, por ele levantadas, podem ser identificadas na comunicação entre mãe e bebê.
Palavras-chave: Clínica psicanalítica, Bebês, Transmissão de pensamentos, Presença do analista.
ABSTRACT
This paper proposes to examine the Freud’s writings about telepathy to found theoretical bases to the psychoanalytical clinic with babies and their parents. Freud’s ideas about thoughts transmission and the specifically conditions that he identified in the telepathy bring some hypothesis to answer these questions.
Keywords: Psychoanalytical clinic, Babies, Thought transmission, Psychoanalytical presence.
Na clínica psicanalítica com bebês e seus pais, várias questões permanecem em aberto, do ponto de vista de sua sustentação teórica, embora muitos resultados clínicos venham sendo descritos e os efeitos da intervenção pela via da palavra sejam evidentes. Assim, vários transtornos das funções apresentados pelos bebês _ alimentares, do sono, excretórias _, quando suscitam uma entrevista psicanalítica conjunta do bebê com seus pais, muitas vezes podem ser relacionados a situações difíceis, vividas pelos pais ou pela mãe durante a gravidez, parto ou puerpério, ou mesmo remeter a alguma situação da história passada deles (ao seu próprio tempo de bebês, por exemplo). Da mesma forma, transtornos psicossomáticos se prestam às mesmas articulações _ eczemas, refluxos gastro-esofágicos, alergias. A escuta psicanalítica dessas situações permite a circulação da palavra, a recordação de situações dolorosas e mesmo a construção de uma parte não simbolizada da história de um dos pais. O efeito se faz no corpo do bebê, que deixa de apresentar tais transtornos.
O que a clínica permite verificar _ nestes casos em que ocorre a remissão do quadro clínico, após a consulta com o psicanalista — é que o bebê é receptivo à intervenção psicanalítica, mas resta ainda explicar teoricamente como e por quê.
Podemos destacar pelo menos três questões a responder:
1) Como é possível que o bebê, ainda com parcos recursos em termos de linguagem, seja sensível ao que ocorre com os pais, simbolicamente falando?
2) Como se explica que o bebê seja receptivo às palavras do analista, ditas para ele e seus pais?
3) A presença do bebê é realmente necessária nestas intervenções, ou o efeito nele provocado seria indireto, decorrente do que se produziu nos pais?
Muitos analistas já teorizaram a respeito, dentre os quais se destacam D.W. Winnicott e Françoise Dolto. Enquanto para o primeiro, a intervenção é centrada na mãe, principalmente a partir de duas idéias básicas: da preocupação materna primária (Winnicott, 1956) e do papel de espelho do rosto da mãe (1971); para a segunda, a intervenção é centrada na criança, que mesmo na ausência da mãe (em situações de abandono ou de ausência maternas) é tomada como sujeito de intervenções sobre o que lhe ocorre, desta vez a partir da idéia de imagem inconsciente do corpo (Dolto, 1992) e da pressuposição da autora de que há escolha por parte do bebê no que lhe acomete (1999).
Como se dá que isso ocorra, se tomarmos a realidade do bebê tal como se nos apresenta hoje, após as inúmeras pesquisas psicanalíticas sobre a constituição da subjetividade e as inúmeras pesquisas dos cognitivistas sobre as competências do bebê? Sabemos hoje que os bebês são receptivos aos sons, principalmente à voz materna, que eles já são capazes de reconhecer ao nascimento.
Sabemos também que os psicanalistas lacanianos trabalham com o conceito de permeabilidade biológica ao significante. Claro está que os objetos voz e olhar são pregnantes nos primeiros meses de vida do bebê, dando lugar privilegiado para a instauração do circuito pulsional, que não mais privilegia o campo oral, ligado anacliticamente à alimentação, mas dá especial relevo ao que se passa em termos da receptividade à voz materna e suas modulações, bem como ao que é possível ver do rosto materno e dar a ver em retorno, à figura materna (Laznik, 2000).
Mas nada disso responde à questão do acesso à significação, que, até onde avançamos, necessita de uma certa chave, de uma certa imersão na linguagem e da submissão do bebê aos efeitos da estrutura da língua, o que requer um tempo submetido à maturação de estruturas neurológicas (cronológico, pois) e tempos lógicos de inscrição, apagamento e retroação (tempos lógicos), em termos de construção de subjetividade. Como isto poderia ocorrer com os bebês nos primeiros meses de vida?
Teríamos que conceber uma espécie de significação primitiva, nos moldes kleinianos, em que se transformariam as informações do exterior, segundo uma correspondência binária de afetos (Klein, 1934) _ bom/mau? Mas, como aplicar essa lógica tão elementar a circunstâncias tão complexas como as relatadas nos casos descritos na literatura _ que falam de angústia, solidão, perdas, vividas por um outro _ diferentes das experiências cotidianas do próprio bebê ele mesmo? Tomaremos o caminho do retorno a Freud, a partir da leitura de seus textos sobre a telepatia, para tentar avançar um pouco nesse ponto: a transmissão que se dá da mãe ao bebê, de algo que para ela tem estatuto de inconsciente, ou mesmo de real. Pois, o que a clínica revela é que o bebê atua _ com seu corpo, suas funções, suas manifestações _ como uma formação do inconsciente dos pais, principalmente da mãe! O bebê colocaria em ato um retorno do recalcado, nesse sentido. Ou, indo mais além: o bebê teria o papel de carregar, em sua presença real, um não simbolizado que marcou a família.
Para Freud, a telepatia oferece interesse principalmente porque permite investigar o que ele destaca como a transmissão de pensamentos e que ele relaciona à sua pesquisa sobre o inconsciente. É nesse registro exclusivo que se detém seu estudo sobre o tema, fenômenos paranormais à parte. Sua abordagem sobre esse polêmico tema demonstra, mais uma vez, a coragem de um investigador que não recua diante do que não é “politicamente correto” ao seu campo de investigação ou à sua época. Pode-se reconhecer aí, mais uma vez, a admirável vocação desse pesquisador no verdadeiro sentido do termo.
Freud trabalhou especificamente o tema da telepatia em três diferentes textos, a partir de exemplos que lhe foram fornecidos por pessoas anônimas, por meio de cartas. Mas já encontramos uma importante menção ao termo em seu artigo sobre O Estranho (1919), ao abordar uma novela de Hoffmann, O Elixir do Diabo. Trata-se de analisar o que ele nomeia como estranheza e que se articula ao fenômeno do duplo. Tomemos o parágrafo em seu todo:
“Assim, temos personagens que devem ser considerados idênticos porque parecem semelhantes, iguais. Essa relação é acentuada por processos mentais que saltam de um para outro desses personagens _ pelo que chamaríamos telepatia _, de modo que um possui conhecimento, sentimentos e experiência em comum com o outro. Ou é marcada pelo fato de que o sujeito identifica-se com a pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um estranho. Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu (self)” (p. 293).
Retenhamos dessa citação, inicialmente, o ponto forte: um ponto de identificação que produz indiferenciação entre alguém e seu duplo e tem como efeito uma estranheza. A telepatia é conceituada aí como um compartilhamento de processos mentais, nessa situação em que dois fazem um.
A referência seguinte se dá em 1921, em Psicologia de grupo e análise do ego, em uma nota de rodapé do capítulo X, justamente o que aborda o grupo e a horda primitiva. Freud analisa a atuação do hipnotizador, indicando como alguns procedimentos (usar um objeto brilhante) “servem apenas para desviar a atenção consciente e mantê-la retida” (p. 159); compara ainda com os procedimentos técnicos de fazer chistes (p. 160). Na nota, o editor assinala como esse mecanismo “desempenha um papel na ‘transferência de pensamentos’” (p. 160, n. 1).
Retenhamos dessa citação justamente esta observação do editor: a pregnância do papel do hipnotizador, o desvio da atenção consciente e a transferência de pensamentos.
Em seu primeiro texto explicitamente dedicado ao tema, Psicanálise e Telepatia, escrito nesse mesmo ano (1921), mas publicado somente vinte anos depois, Freud analisa algumas profecias não realizadas. Numa delas, descrita por um analisante (o engenheiro com uma ligação edípica com a irmã, que tem desejos de morte em relação ao cunhado), Freud situa a profetisa que errou a previsão como receptáculo do desejo do paciente: “o conhecimento foi transferido dele para a suposta profetisa, por algum método desconhecido que excluiu os meios de comunicação que nos são familiares, ou seja, teremos de inferir que existe algo como a transmissão de pensamento” (p. 225). Freud mostra ainda como as atividades da profetisa (próprias à astrologia que ela praticava) tinham a “função de desviar suas próprias forças psíquicas e ocupá- las de maneira inócua, de modo a poder tornar-se receptiva e acessível aos efeitos sobre ela causados pelos pensamentos do cliente, podendo, assim, tornar-se uma verdadeira ‘médium’” (p. 225). Outra observação de Freud que nos interessa vem em seguida, quando ele vai analisar o conteúdo do que foi transmitido, que, como ele marca, não é algo indiferente, mas, diz ele: “mostra-nos que um desejo extraordinariamente poderoso, abrigado por determinada pessoa e colocado numa relação especial com sua consciência, conseguiu, com o auxílio de uma segunda pessoa, encontrar expressão consciente sob forma ligeiramente disfarçada” (p. 225). Freud então conclui: “o conteúdo da profecia coincidia com a realização de um desejo” (p. 226).
Como observamos nesse texto, fica claro o ponto de interesse de Freud em relação à telepatia: a questão da transmissão de pensamento, que ele retira do campo do ocultismo para tentar analisá-la à luz de suas descobertas sobre o inconsciente, o desejo e a transferência. Retenhamos mais um ponto, pois: trata-se de um desejo extremamente poderoso, inconsciente, que não se expressa pela via da palavra falada, mas encontra expressão em outra pessoa, cuja consciência está a serviço dessa recepção.
No ano seguinte, 1922, em outro texto, Freud discute a relação entre Sonhos e Telepatia. Aparece aí, na análise de uma carta de um pai que teve um sonho premonitório com a filha, a seguinte constatação: “existia um vínculo íntimo de sentimento entre o pai e a filha” (p. 248). Em seguida, embora enunciando que “a telepatia nada tem a ver com a natureza dos sonhos”, faz uma precisão: diferencia “sonho” de “estado de sono”. Mostra ainda outra diferença: enquanto o sonho é produto da vida mental, a concepção de “sonho telepático” pressupõe, segundo ele, “uma percepção de algo externo perante o qual a mente permanece passiva e receptiva” (p. 251). Conclui o artigo, afirmando: “o sono cria condições favoráveis à telepatia” (p. 264), bem como, que “as leis da vida mental inconsciente se aplicam à telepatia” (idem).
O que nos interessa destacar nesses fragmentos são as seguintes idéias: a presença de um vínculo afetivo forte e a receptividade aos fenômenos mentais durante o estado de sono.
Em 1925, no apêndice C de algumas notas adicionais sobre a interpretação de sonhos como um todo, denominado O significado oculto dos sonhos, Freud faz a seguinte afirmação: “no decurso de experimentos em meu círculo particular tive, com freqüência, a impressão de que recordações intensa e emocionalmente coloridas podem ser transferidas com sucesso, sem muita dificuldade” (p. 172). Mas complementa: “submeter a um exame analítico as associações da pessoa de quem se supõe que os pensamentos sejam transferidos, amiúde vêm à luz correspondências que, de outra maneira, teriam permanecido irreveladas” (idem). Freud situa esse acontecimento em um momento preciso: quando “uma idéia emerge do inconsciente ou, em termos teóricos, quando ela passa do ‘processo primário’ para o ‘processo secundário’” (p. 173).
Desse texto podemos destacar a tonalidade emocional forte das recordações em jogo, e, ainda, a origem inconsciente da idéia e a necessidade de suscitar as associações daquele que transferiu as idéias.
No terceiro texto sobre o tema, Sonhos e ocultismo, de 1933, Freud situa nos seguintes termos a telepatia: “supõe-se que o processo telepático consiste num ato mental que se realiza numa pessoa e que faz surgir o mesmo ato mental em uma outra pessoa” (p. 72). O interessante é que ele propõe, entre os dois atos mentais, “um processo físico, no qual o processo mental é transformado, em um dos extremos, e que é reconvertido, mais uma vez, no mesmo processo mental no outro extremo” (p. 72), fazendo inclusive uma analogia com a comunicação telefônica. Indo mais adiante, Freud faz a hipótese de que se trata “de um método original, arcaico, de comunicação entre indivíduos” (p. 73), que ele pressupõe ter existido antes da linguagem oral, nas comunidades humanas, e ser ativado em condições especiais, tais como “de pessoas apaixonadamente excitadas”. Ora, como não pensar imediatamente na relação mãe-bebê, que envolve certamente a excitação e a paixão, bem como no que se passa enquanto letra, ou seja, marcas inscritas no corpo do bebê a partir do desejo materno?
Enfim, os textos de Freud sobre telepatia permitem-nos identificar vários elementos presentes na clínica com os bebês e seus pais. Podemos afirmar que, principalmente a mãe e o bebê, pela intimidade de seu laço, compartilham processos mentais. É a partir do psiquismo materno que o bebê forma o seu psiquismo. São justamente os parcos recursos do bebê, em termos de um psiquismo ainda à espera de inscrições, que o colocam nessa condição de receptividade ao que permanece inconsciente no Outro materno. O bebê é absolutamente sensível ao que ocorre com a mãe.
Lembremos que o bebê ainda não tem as defesas que o recalque impõe aos sujeitos humanos: ocorre com ele naturalmente o que os médiuns ou hipnotizadores tentam que se dê através de artifícios: a distração da consciência para maior abertura ao que vem do outro. O mesmo se pode afirmar quanto ao que ocorre durante o sono, em que a consciência dá lugar aos fenômenos inconscientes (como o sonho). O bebê vive nos primeiros meses justamente neste estado de sonolência que é propício para receber o que o cerca, e registra principalmente o que tem uma tonalidade afetiva importante para o outro, uma força de transmissão.
Podemos pensar ainda em um processo de reversibilidade: assim como a mãe põe seu psiquismo a serviço da constituição de seu bebê, identificando-se com ele e funcionando como se fosse sua “sede” psíquica; assim também o bebê oferece seu psiquismo às marcas maternas, embora, pela situação de desamparo em que se encontra, em uma posição de total submissão. Essas marcas, por sua vez, extrapolam a transmissão consciente e dão passagem também aos registros inconscientes parentais, devido justamente à extrema permeabilidade do bebê. Além disso, a própria mãe está vivendo nesses momentos iniciais de constituição de sua relação com o filho, o que já foi ativado durante a gestação e que Monique Bydlowski (1988) descreveu sob o nome de “transparência psíquica” como: “afluxo regressivo e rememorativo de representações”, ou seja, uma condição especial que torna a grávida e a puérpera especialmente sensíveis ao que o bebê, com sua presença real, desencadeia de sua história passada.
Será que poderíamos pensar em algo como a tão falada comunicação de inconsciente a inconsciente, citada por Melanie Klein? Pensamos que não, na medida em que, entendendo o inconsciente como o discurso do Outro, nesta clínica, somente a mãe é dotada de um inconsciente, já passou pelo processo de constituição que resultou em sua divisão subjetiva. Já para o bebê, considerando-se sua incipiente entrada no mundo simbólico e das relações, trata-se ainda de estar exposto a essas marcas que vêm do Outro e que, em um primeiro momento, estabelecer-se-ão como traços mnêmicos registrados por simultaneidade, ainda num estatuto de puro real. Somente em um segundo plano as inscrições dar-se-ão a partir de associações, por exemplo, de causalidade, registro este do inconsciente freudiano, segundo o que Freud propõe já no Projeto para uma Psicologia Científica (1895).
Da mesma forma, ainda dialogando com as idéias kleinianas, será que poderíamos pensar em introjeção e projeção nesta comunicação? Ainda aqui responderíamos que não, na medida em que não são fenômenos pareáveis, não são correspondentes. Mas, consideradas suas diferenças, seria interessante discuti-los neste contexto da comunicação mãe/ bebê. No que se refere à introjeção, trata-se de um fenômeno essencialmente simbólico: o bebê recebe e registra psiquicamente os traços, as marcas que a mãe imprime no seu corpo, através dos quais ela transmite também os pontos inconscientes de sua história e o lugar que esse bebê recebe na cadeia significante familiar. Quanto à projeção, fenômeno imaginário, poderíamos pensar na “mostração” representada pelo sintoma do bebê: trata-se de um “dar a ver” encenado pelo bebê, por meio de seu distúrbio de função, de comportamento, ou psicossomático, que poderia ser concebido como um acting out, produzido no bebê, a partir dos efeitos de um aspecto da história materna, paterna ou parental que pede interpretação, na medida em que a presença do bebê permite esse retorno do recalcado e reabre a questão.
Vemos, portanto, que a presença do bebê é um elemento necessário para que se desencadeiem as associações da mãe, ou seja, o retorno do recalcado.
A intervenção psicanalítica vai atuar, assim, de duas formas, para o bebê:
1) de modo indireto, porque a escuta e as palavras do psicanalista têm efeitos sobre a mãe (ou pais), permitindo-lhe(s) posicionar-se de outra forma perante o filho;
2) de modo direto, porque a presença do analista e sua voz, diridirigidas tanto ao bebê quanto à mãe (ou pais), fazem função de terceiro termo. O analista liga os registros que se produzem heterotopicamente: enquanto o bebê está ainda no campo da letra e da constituição do significante, a mãe está já nas representações de palavra.
O analista, nesta clínica, com sua presença e sua escuta, propõe o espaço para a construção de um texto que permita à mãe (até mesmo aos pais) elaborar essas experiências desencadeadas pela presença real do bebê; além disso, atua como terceiro, representando a linguagem e a palavra em uma relação predominantemente corporal (as inscrições, enquanto letras, ainda estão a meio caminho entre corpo e significante), acalmando o bebê e liberando-o de ficar preso à letra.
É uma intervenção, pois, que visa a produzir significação para a mãe, que já tem acesso a este campo. Para o bebê, os efeitos são significantes, ou seja, promovem ali onde havia letra _ inclusive tendendo patologicamente a permanecer rigidificada nessa posição _ a passagem para o significante.
A passagem para a linguagem _ e para a palavra falada _ implicam uma perda de gozo. Na passagem da letra ao significante, há o objeto real que cai, ou seja, há a renúncia ao corpo como sede do sujeito e a correlata identificação ao significante que lhe dá “direito de cidadania” no mundo simbólico. A intervenção do analista como terceiro _ com sua chamada à linguagem para o bebê e com o acesso à simbolização por parte da mãe ou dos pais produzida por sua escuta, que pode pôr sentido em algum ponto aberto de sua história passada _ implica a perda desse gozo. Essa perda, ou, em termos conceituais, esse apagamento da letra, dá lugar aos efeitos de erotização, produzidos no campo da fala materna e nos jogos vocálicos entre mãe e bebê. Podemos perceber aí que se trata de uma possibilidade arcaica de significação. A voz não vem somente como objeto real, mas como uma qualidade, um atributo, traz afeto, o que, em termos freudianos, é a base que permite a significação. Verifica-se então, como efeito, a remissão do sintoma. Após a circulação das palavras, na consulta conjunta pais/bebês com o psicanalista, a criança passa a dormir bem, o eczema desaparece, o refluxo deixa de aparecer etc. Parece algo mágico, mas na verdade, um processo muito complexo de inscrições, envolvendo diferentes registros, teve de ocorrer.
Nesse sentido, mesmo sendo uma clínica do só-depois para a mãe _ pois permite ressignificar ou mesmo simbolizar experiências dolorosas do passado _ a clínica psicanalítica é uma clínica preventiva para os bebês, pois pode desatar um ponto de real que, caso contrário, se fixaria enquanto pura letra e poderia organizar em torno desse real um padrão de relações ancorado na psicossomática, ou ainda, um transtorno global do desenvolvimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Endereço para correspondência
Leda Mariza Fischer Bernardino
R. Carmelo Rangel, 941, Batel
80440-050 Curitiba, PR
tel.: (41) 243-5676 (res.)
fax: (41) 242-2993 (cons.)
ledber@terra.com.br
Recebido em junho/2004
Aceito em agosto/2004
1 Psicanalista, membro fundador da Associação Psicanalítica de Curitiba, analista membro da Association Lacanienne Internationale, professora titular da PUC-PR