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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.10 n.18 São Paulo jun. 2005
DOSSIÊ
Atualidade da clínica de orientação psicanalítica em ciências da educação: pesquisas e práticas
Psychoanalytical oriented clinic and educational sciences: research and practices
Jean-Luc de Saint-Just*I; M. Stella Machado (Trad.)
*Escola Psicanalítica da Bretanha e do Departamento "Psycanálise e Trabalho Social"
RESUMO
O presente artigo constitui uma reflexão em torno de um trabalho com grupos de análise de práticas realizados com estudantes de educação especializada, e busca analisar os efeitos psíquicos e sociais desses grupos sobre os estudantes, bem como interrogar sobre o saber que daí pode emergir para cada sujeito. Constatou-se que, nesse trabalho, os es tudantes demonstravam, em inúmeras ocasiões, uma dificuldade de elaborar um saber profissional quanto à sua prática educativa a partir dessas sessões de trabalho. Concluiu-se que tais dificuldades podiam advir de processos relacionados com uma dimensão sadomasoquista da postura dos estudantes.
Palavras chave: Grupos, Psicanálise, Educaçao especializada.
ABSTRACT
This paper is a reflexion regarding a work with groups that analyze practices which are carried out with Specialized Education students. It tries to analyze the psychic and social effects of these groups over the students, and also to interrogate about the knowledge that can emerge from them. We have noticed that, during this work, the students were not able to elaborate a professional knowledge on their educational practices. We conclude that these difficulties come from processes related to a sadomasochist dimension of the attitude of these students.
Keywords: Groups, Psychoanalysis, Specialized education.
A oportunidade que tenho aqui de vir testemunhar a relação entre uma prática clínica de formação e uma pesquisa da mesma natureza, também de inspiração psicanalítica, vem ao encontro de questões epistemológicas que se acham no centro do ponto em que estou nos ensaios inerentes ao início de meu trabalho de tese: do lugar de minha prática de formador nesta pesquisa.
Para esclarecer de onde eu falo, parece-me importante indicar que sou, já há oito anos, formador em um centro de formação para o trabalho social na Bretanha. Como tal, animo, do mesmo modo que meus colegas desse centro e de centros equivalentes, grupos de análise de práticas, especialmente para estudantes educadores especializados. Esta modalidade de formação constitui um eixo central desse dispositivo.
É portanto lógico que eu me tenha interessado por aquilo que produziam tais grupos nos estudantes, todos participantes obrigatoriamente. Quais são seus efeitos psíquicos e sociais, e mais especialmente, uma vez que estamos em ciências da educação na área « Saberes e relação com o saber », o que me interessa é interrogar-me sobre o saber que pode emergir desses grupos, para cada sujeito, para cada estudante.
A partir de entrevistas clínicas com quatro estudantes de um outro centro de formação, meu trabalho de DEA (Diploma de Estudos Aprofundados) me permitiu determinar um certo número de processos psíquicos1. Na verdade, permitiu-se determinar principalmente o processo muito complexo de uma recomposição identitária, produto de um trabalho dialético entre o Eu ideal e o Ideal do eu, que como espaços estruturais participam de uma dinâmica essencialmente narcísica2.
No que diz respeito ao Eu ideal, testemunhado por esses estudantes, dar a entender a outros e a um Outro3, a sua prática profissional em uma relação implica empenhar-se em um processo de « destituição » do Eu ideal previamente constituído4. Se o estudante aceita a palavra dos outros e a palavra do Outro, em sua dimensão imaginária, estas virão confrontar-se para o sujeito com uma construção especular de modo a recompô-la. Para o estudante que fala de sua prática, isto constitui o retorno dialético da representação do Eu no trabalho. Estelle dirá nessas entrevistas: « é descoberta de mim/ isto parece enorme / acho realmente que é isto ».
No que diz respeito ao Ideal do eu, essa palavra subjetiva se dirige também a um grupo de uma instituição. No plano simbólico, ela tem um outro destino. Aí também, ouvindo esses estudantes, é a referência educativa precedendo o início da formação essencialmente familiar que passa por esse trabalho de recomposição. É que, num registro desta vez profissional, é bem a « educação familiar », tal como definida em Paris, em ciências da educação que constitui o objeto do trabalho dos educadores especializados. O estudante é levado a analisar sua prática a partir de concepções, de referências ideológicas e teóricas que são as deste setor profissional e do centro de formação. Estelle ilustra ainda esse processo explicando que « talvez eu idealize demais esta profissão ».
Estes dois processos constituem sem dúvida o que, por analogia com o setor do ensino, poderíamos chamar, referindo-nos ao conceito de Claudine Blanchard-Laville (2003) de « transferência didática », de « transferência educativa », no tempo da forma ção. Em outras palavras, como diz Jacques Lacan, « amor que se dirige ao saber » (Lacan, 1991).
No entanto, a análise destas entrevistas evidenciou um outro processo, não mais estrutural desta vez, situando os planos e as construções distintas do imaginário e do simbólico, mas o processo da dinâmica das apostas e tensões do envolvimento dos estudantes nesses grupos. A análise das resistências formuladas por dois dos estudantes entrevistados me permitiu compreender os riscos narcísicos deste trabalho de recomposição identitária ao qual os estudantes são levados.
Um processo narcísico que se exprimia explicitamente sob a forma de um receio da perda de sua imagem para um estudante, um receio do desmoronamento da base do narcisismo: « o amor a seu reflexo ».
Por isso, o que pontuou essa primeira etapa de meu trabalho de pesquisa não foi tanto o processo de resistência ao trabalho nesses grupos de análise de práticas. Foram, da parte dos estudantes que mais se empenham, os efeitos de desconhecimento que eles testemunhavam. Como pude mostrar no poster apresentado nessas jornadas, uma estudante que havia longamente usado sua prática com um jovem adulto que ela havia acompanhado de maneira privilegiada me fala de sua incompreensão quanto à violenta reação deste adulto quando ela lhe diz: « então como é que você sente a minha partida ? ».
O que constituía e constitui ainda um enigma para mim nesta constatação que eu sempre faço de maneira recorrente em minha prática, da parte dos estudantes que exprimem uma importante demanda de trabalho clínico, é o fato de que há um saber que lhes escapa em sua prática profissional subjetiva. Nestes grupos, constatei várias vezes que um estudante, que havia pedido para analisar um fragmento de sua prática e que havia manifestamente compreendido as interpretações esclarecedoras que lhe eram propostas, só conseguia usá-las com muita dificuldade, ou seja, elaborava com dificuldade um saber profissional quanto à sua prática educativa a partir dessas sessões de trabalho (de Saint-Just, 2001).
Não é necessariamente esquecer o que Freud ensina aos jovens analistas em seu artigo de 1914 sobre os processos de « Rememoração, repetição e perlaboração » (Freud, 1953): o tempo da perlaboração não é o tempo da interpretação. A perlaboração só se produz depois, e é este processo que produz, para o sujeito, um saber _ porém, perguntando-se o que, nesses grupos, condiciona uma possível emergência deste saber.
Algumas leituras me permitiram examinar certas pistas de reflexão quanto ao « desejo de não saber que sustenta o sujeito » ou a dimensão contemporânea de um « simbólico virtual » desenvolvido por Lebrun (2001), mas foi na análise de minha prática clínica que uma perspectiva real surgiu. E é aqui que eu lhes proponho, agora que vocês chegaram, espero, ao assunto, estabelecer o vínculo com minha prática.
É claro que meu trabalho de DEA me possibilitou levar em conta em minha prática os processos anteriormente descritos, principalmente a dimensão do processo narcísico. No entanto, se esta elaboração de meu projeto de pesquisa me permitiu colocar também no trabalho meu envolvimento com tal objeto, isto não constituiu análise real de minha implicação em minha prática de animador de grupos de análise de práticas. O desvio da pesquisa sobre o objeto de uma prática, como exterior à minha, me fez economizar uma análise de meu envolvimento nessa prática.
Como sempre acontece, foi a partir de um « malogro », de um efeito « teimoso », que veio insistir em minha prática, que compreendi depois (après coup) que não era a primeira vez que se manifestava uma insistência que poderia ser chamada de inconsciente.
Em um ateliê clínico recente composto de dez educadores especializados do terceiro ano trabalhando em sua dissertação de fim de curso, também ele de orientação clínica, como o grupo tinha manifestamente dificuldade para trabalhar, ouço os estudantes criticarem minha imposição de trabalho. É que antes eu lhes havia dito que essa dissertação exigiria deles um trabalho conseqüente que certamente lhes tomaria muito tempo livre. Eles me explicam que essa imposição os imobilizava e os instalava conseqüentemente em uma atitude passiva. Eles me explicam ainda que sabem muito bem o que este trabalho implica e que não há necessidade de lembrá-los a respeito.
Inicialmente surpreendido e um pouco desestabilizado, ponho isto na conta de uma resistência da parte deles no registro de uma preservação narcísica necessária. Digo-lhes portanto que entendo sua observação, a violência que ela pode representar, e tranqüilizando-os do melhor modo possível, incito-os a aproveitar mesmo assim o grupo para progredir em seu trabalho.
Isto produziu seu efeito por um tempo, mas bem depressa, logo na sessão seguinte, o grupo voltou à carga. Desde o início do ateliê a palavra inexiste e com exceção do estudante que apresenta seu trabalho, o silêncio é completo da parte dos outros estudantes. Espero alguns minutos que alguma palavra surja, mas os silêncios se seguem aos silêncios, até o momento em que, diante da insustentável situação, eu dou por terminado o trabalho do grupo, dizendo-lhes que não é possível continuar nestas condições.
Pergunto-lhes o que está acontecendo no grupo. Eles me respondem que também não compreendem. Conhecem a proposta do trabalho, mas não conseguem assumí-la. Proponho-lhes então fazer uma pausa para alguns minutos de reflexão, a fim de tomarmos uma decisão, pois de qualquer modo não seria possível continuar o ateliê assim.
Seria preciso encontrar outras modalidades de trabalho. Enfim, sinto-me irritado.
De volta ao ateliê, os estudantes me comunicam seu desejo de retomar o trabalho em grupo assumindo o que ele significa para cada um. A continuação da jornada resultou num trabalho clínico de muita qualidade. As análises das situações profissionais, assim como o que se passava no trabalho do grupo quanto às resistências de uns e outros, foram notáveis e apreciadas por todos.
É claro que a questão para mim após esta experiência foi a de saber o que havia acontecido nesse espaço.
Isto continuou em suspenso um momento até que eu pudesse me prover de alguns elementos de compreensão do quê, entre a queixa dos estudantes e minha cólera, havia permitido ao grupo retornar ao trabalho.
Na verdade, precisei esperar um outro encontro com outros estudantes para que, incitado a falar sobre meu trabalho de pesquisa, e dando livre curso às minhas associações, pudesse entender algo desta experiência precedente.
Durante esse curso, enquanto eu apresentava os resultados de meu trabalho de DEA, lembro-me do que os estudantes entrevistados mais empenhados nos grupos de análise de práticas tinham conseguido me dizer quanto a esta implicação: « a gente se sente mal, mas é bom! ». Eu só havia notado o caráter manifestamente masoquista do empenho deles, do desejo deles de participar desses grupos, sob uma forma relativamente anedótica. Eu ainda não havia feito a seguinte ligação (que me pareceu no momento tão evidente que eu a disse em voz alta): à natureza sádica do desejo de dominação do formador5, o estudante respondia às vezes no registro masoquista. Nas conversas clínicas, era recorrente: « a gente se purga bastante mas as coisas melhoram», ou « é um mal necessário ».
É que de repente, esta dimensão sadomasoquista adquiria sentido no que acontecera no ateliê de dissertação. O que eu havia manifestado era a dimensão sádica de meu desejo de domínio, de vê-los trabalhar o tempo todo e especialmente em um outro momento dos tempos de formação, um desejo de certo modo excessivo. Uma injunção à qual eles só puderam responder no registro passivo da inibição de toda palavra subjetiva, uma vez que eles eram levados a ser objetos de gozo. Talvez eu me engane, mas isto se parecia muito com o que se poderia chamar de uma injunção paradoxal.
Precisei pelo menos de dois tempos para chegar a uma solução, um tempo de destituição desta demanda e um tempo de reposicionamento da dimensão simbólica do terceiro. Quando meu discurso fez referência à lei e a representou desta vez neste ateliê, os estudantes puderam reinvestir subjetivamente este espaço de trabalho coletivo.
Eu já havia invocado tal questão, em uma comunicação anterior à universidade autônoma dos IUFM , em outubro de 2002 (de Saint-Just, 2003), da confrontação dos desejos entre o formador que deseja saber e o formado que às vezes nada quer saber, mas eu ainda não os havia assim articulado a um « processo sadomasoquista ».
Esta associação em dois tempos _ entre o tempo da interpretação das entrevistas clínicas, deixando em suspenso a dimensão sadomasoquista da implicação dos estudantes desses grupos e o tempo da perlaboração de uma prática clínica que me permite captar a dimensão de domínio sádico de minha demanda de trabalho, e na mesma ocasião aceder a um saber sobre meu próprio desejo de formador _, constitui também a abertura para outras perspectivas de pesquisa para minha tese.
Isto traz à baila um processo que estaria ligado a um « masoquismo moral » como o descreve Freud em seu artigo « Angústia e vida pulsional » publicado nas « Novas conferências de introdução à psicanálise » em 1933 (Freud, 1984). Um « masoquismo moral » que, associado a um gozo « mais além do princípio do prazer », constituiria então para os estudantes um indispensável apoio narcísico. A análise da dimensão sadomasoquista da postura dos estudantes toma assim uma dimensão subjetiva, subjacente à sua origem ou às suas manifestações intersubjetivas. Para retomar os propósitos de Freud, « o masoquismo seria constitutivamente uma `sadisação' de si ». O que não deixa de fazer eco com a dimensão sádica do desejo de saber no que contém de fantasia de domínio igualmente descrito por Freud em « Três ensaios sobre a teoria da sexualidade » em 1905(Freud, 1962). O que acontece então com o desejo de saber sobre si, inclusive para os estudantes, formadores e pesquisadoresclínicos? Tem relação com uma « `sadisação' de si », como diz Freud, isto é, com um masoquismo-narcísico? Isto também repete o fato que Jacques Lacan, referindo-se ao sofrimento que a análise representa, não recomendava a ninguém empenhar-se em uma análise sem que isto fosse o objeto de um desejo real de transformação6.
Em um plano epistemológico isto desperta em mim a questão da distinção entre a análise de meu desejo de pesquisador em face do objeto de pesquisa (os grupos de análise de práticas) e a análise de meu desejo de formador, na medida em que o desejo do formador se torna o objeto do desejo do pesquisador, o que vai além do que alguns chamam, a exemplo de Devereux (1980), a análise da « contra-transferência ». É que, aí, o pesquisador também é um praticante!
Vocês estão vendo em quê esta questão atualiza os laços entre uma prática em que o saber está em jogo no registro do « desejo do outro »7 e um trabalho de pesquisa que também só pode se sustentar no desejo de saber do outro, uma vez que é da prática de um outro que se tratava no momento em minha pesquisa, nas entrevistas clínicas realizadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Freud, S. (1953). La technique psychanalytique. Paris: PUF. [ Links ]
________ (1962). Trois essais dans la théorie de la sexualité. Paris: Gallimard. [ Links ]
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Lacan, J. (1966). "Estádio do espelho". Ecrits. Paris: Seuil. [ Links ]
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de Saint-Just, J.-L., (2001). Le savoir professionnel au risque des dialectiques du savoir. Revue Forum. Paris: Revue Forum, 98, dez./2001.
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Vallet, P. (2003). Désir d'emprise et éthique de la formation. Paris: L'Harmattan. [ Links ]
Recebido em agosto/2004
Aceito em dezembro/2004
NOTAS
1 Esses resultados foram publicados em uma obra coletiva (de Saint-Just, J.-L., de; 2003).
2 Referente ao estádio do espelho de Lacan (1966). No processo de elaboração da identidade, o Ideal do eu representa os modelos simbólicos do sujeito, no caso os ideais educativos e sociais. Para os estudantes entrevistados, o Ideal do eu é o que significa « ser educador ». Em compensação, o Eu ideal representa, nesse mesmo processo, a imagem que o sujeito tem de si mesmo. Segundo Jacques Lacan, o Eu é um engodo para o sujeito. É uma ilusão especular que o leva a confundir o real experimentado e a imagem de si (estádio do espelho). O Eu é portanto, por definição, um Eu ideal essencialmente imaginário, dando a ilusão de uma unidade identitária ali onde só existe superposição de imagens de si. Nessas entrevistas, é com a recomposição dessas imagens que cada sujeito se confronta nos grupos de análise das práticas. É aí que estas duas instâncias têm um estreito elo com os mecanismos narcísicos. Isto é, com o amor, não por si mesmo, mas pela imagem ideal de seu reflexo: « Eu ideal e Ideal do eu têm, é certo, a maior ligação com certas exigências de preservação do narcisismo » (Lacan, 1991, p. 396).
3 O formador que anima este grupo.
4 Os estudantes falam regularmente de suas « falhas » como sendo o que eles sentem nesses grupos.
5 Desejo descrito na obra de Patricia Vallet (2003).
6 Uma ligação entre agressividade e narcisismo que está também descrita por Jacques Lacan em « L'agressivité en psychanalyse » (1966a).
7 Nos dois sentidos do termo.
I Psicanalista, membro da Escola Psicanalítica da Bretanha e do Departamento "Psycanálise e Trabalho Social" da Associação Lacaniana Internacional.