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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.10 n.19 São Paulo dez. 2005

 

DOSSIÊ

 

O significante e o real na psicose: ferramentas conceituais para o acompanhamento terapêutico1

 

The significant and the real on Psychosis: conceptual tools to therapeutic accompaniment

 

 

Maurício Castejón HermannI

Universidade Metodista de São Paulo

 

 


RESUMO

O presente artigo visa a apresentar reflexões sobre a clínica do acompanhamento terapêutico com pacientes psicóticos. O ponto de partida é o reconhecimento de que essa clínica depende de olhar em rede, ou seja, uma dimensão institucional que vai orientar a execução de um projeto terapêutico de intervenção, tanto no âmbito de uma montagem institucional, quanto na perspectiva da clínica privada. Posteriormente, serão apresentados recortes clínicos vividos nessa clínica que serão articulados com dois momentos da teoria lacaniana das psicoses: a noção de real atrelada ao significante e a noção de real articulada com a teoria dos nós-borromeus. Por fim, explicitar-se-á a questão que motiva a execução dessas elaborações, mais precisamente a noção de sinthome como orientação clínica e teórica para a prática do acompanhamento terapêutico.

Palavras chave: Acompanhamento terapêutico, Lacan, Psicose.


ABSTRACT

This article aims to present reflections about therapeutic accompaniment with psychotic patients. The start point is to perceive and to accept that the therapeutic accompaniment clinic is depended of a network view of different professionals that take part on this practical. This manner will orient the therapeutic intervention project execution on an institution or on a private clinic. Lately will be presented two clinical fragments and correlated with two moments of lacanian theory of psychosis: the notion of the real articulated with the significant and the notion of the real articulated with the borromean ring theory. At the end will be present the question that motivates this elaboration's execution, more specifically the notion of symptom as a clinical and theoretical orientation to therapeutic accompaniment practices.

Keywords: Therapeutic accompaniment, Lacan, Psychosis.


 

 

O campo de produção teórica sobre a clínica do acompanhamento terapêutico vem crescendo a olhos vistos no Brasil. É certo que ainda notamos, nas publicações sobre o tema, um formato de coletânea de artigos, conforme os livros denominados A rua como espaço clínico (1991) e Crise e cidade (1997), ambos organizados pela equipe de acompanhantes terapêuticos do Hospital-Dia A Casa, além de diversos artigos esparsos publicados em revistas especializadas de psicologia e psicanálise. Esses artigos, ou ao menos uma parte deles, têm a característica de recortar alguma cena clínica e articulá-la com conceitos da psicologia ou da psicanálise. Nota-se, então, uma tentativa primeira de aproximação entre a teoria e a prática, ainda decerto tímida, sobre as questões próprias desse fazer clínico. Uma dúvida importante pairava sobre o campo, mais precisamente sobre aqueles que se apropriavam da psicanálise para lançar suas primeiras teorizações. Acompanhamento terapêutico (AT) não é psicanálise do tratamento padrão, mas usa esse referencial teórico para sistematizar a sua clínica. Mas, então, o que é o AT? É somente um fazer junto? Talvez seja impossível responder a essa questão somente pelo viés do fazer, ou então se ressalta a necessidade de recorrer às teorias psicológicas ou psicanalíticas para entender que não se trata somente de um fazer junto, mas sim de considerar especificidade da psicose e sua complexidade.

Um marco importante na produção teórica foi a publicação do livro Ética e técnica no acompanhamento terapêutico _ Andanças com Dom Quixote e Sancho Pança (1998) de Kleber Barreto. Esse livro percorre questões importantes sobre essa clínica, tendo como fio condutor um mesmo pensador da psicanálise, no caso, Winnicott. Outra publicação elaborada sobre a mesma referência teórica, no caso Deleuze e Guattarri, é o livro de Maria Paula Cauchik, Sorrisos inocentes, gargalhadas horripilantes _ invenções no acompanhamento terapêutico (2001), um trabalho que incorre na mesma persistência em sistematizar a experiência clínica pelo mesmo eixo teórico.

Em 2004, Sandra Carvalho publica sua dissertação de mestrado sobre o tema, ao interrogar-se sobre o estatuto da clínica do AT: Acompanhamento terapêutico: que clínica é essa? Em seu livro, Carvalho mapeou o campo por meio da aplicação de questionários aos participantes do Primeiro Encontro Nacional de Acompanhantes Terapêuticos, realizado em São Paulo, no ano de 2001. Esse trabalho pôde descrever o campo por meio daqueles que justamente trabalham nessa clínica, os próprios acompanhantes terapêuticos (at). Observa-se que, além da crescente produção teórica, há também um aumento significativo de interessados em praticar essa clínica, com um espectro bastante variado de referências teóricas oriundas da psicologia, da psicanálise e também da filosofia. Em suma, o campo do AT está em franca ascensão, seja pelos interessados em tê-lo como uma possibilidade de trabalho, seja também por aqueles que optaram em aproveitar o seu percurso clínico para sistematizar suas questões em pesquisas acadêmicas.

Dentro desse contexto, será apresentado aqui um fragmento da pesquisa de Doutorado2, que está em andamento, cujo tema central é o AT com pacientes psicóticos, utilizando um percurso entre a clínica e as elaborações teóricas sobre a psicose em Jacques Lacan. No entanto, antes da apresentação de uma proposta de articulação teórica, ressalte-se o fato de que não é possível descolar a intervenção clínica do AT de um olhar em rede. O ponto de partida para este artigo será um recorte sobre a dimensão institucional dessa clínica articulado à sua origem institucional. Entende-se,portanto, que o fazer clínico comporta a dimensão de uma equipe de trabalho, mesmo que essa equipe esteja constituída, em um determinado momento do caso, somente pelo AT. Portanto, este relato de pesquisa iniciar-se-á pelo movimento institucional que criou essa modalidade clínica, para depois redimensionar a importância do olhar em rede no AT.

Posteriormente serão apresentadas articulações clínicas com recortes conceituais da teoria lacaniana das psicoses. Há, portanto, um eixo teórico presente nesta reflexão que se explicita: trata-se da noção de real na psicose, noção esta que se desdobrará em duas reflexões presentes neste artigo.

A primeira delas parte da constatação de que Lacan, em seu ensino, reformula a contribuição freudiana sobre as psicoses, ao introduzir o recurso da lingüística. Sugere-se pensar sobre a noção de significante e seu estatuto na estrutura psicótica, de acordo com a concepção presente no Seminário As Psicoses (1955-56). Decorre daí uma indicação clínica importante para o AT: como pensar a escuta do delírio na clínica do AT, mais precisamente na formulação de um projeto terapêutico?

Posteriormente, faremos um salto até o seminário Mais, ainda (1973-74) e o Seminário R.S.I. (1975-76). Nesse momento, por meio da teoria dos nós-borromeus, será pensada a especificidade da psicose, não mais como uma estrutura clínica permeada pela lógica do significante, mas sim através da noção de real como topologia.

Cabe reduzir a clínica do AT a um fazer junto, ou então é possível que haja algo de analítico nessa modalidade de intervenção? Para discutir essa questão, será utilizada a noção de sinthome, trabalhada por Lacan no seminário dedicado ao James Joyce, para levantar pontos importantes sobre a intervenção no AT. Como pensar a cena clínica, ou seja, o at, o "acompanhado/paciente" e o laço social? Pode essa intervenção clínica incidir na construção de um sinthome?

 

A dimensão institucional do acompanhamento terapêutico

Conforme Silva (2001), os Hospitais-Dia ou os atualmente conhecidos CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial) são caracterizados conforme a experiência francesa de substituição dos manicômios. Trata-se da Psicoterapia Institucional Francesa, idealizado por Oury, cujo marco foi o do Hospital La Borde. Tal experiência, no percurso da história da reforma psiquiátrica, trouxe elementos significativos e que ainda são atuais para a caracteriza ção dos equipamentos citados, além das políticas públicas, como a política de setor (territorialização do espaço urbano e levantamento epidemiológico da população como estratégia de planejamento e execução de políticas públicas).

De acordo com Silva, o CAPS se organiza em torno de uma demanda específica de atendimento a psicóticos e autistas. Historicamente, é possível pontuar a contribuição de Esquirol, no período humanista de tratamento à loucura, como o precursor da idéia de que o tratamento às psicoses seria viável, desde que houvesse um espaço institucional destinado para essa demanda específica. Ora, a contribuição de Esquirol tem a sua importância, pois anteriormente não havia qualquer planejamento institucional ou critérios de organização dos internos por patologias ou afins. Aliás, tomando o clássico exemplo da Salpétrière, o que se via era um grande depósito de excluídos, que ali estavam em função da manutenção da ordem social burguesa e monárquica. Enfim, a contribuição de Esquirol teve o intuito de "ordenar a casa", separar e acolher a demanda específica da psicose naquilo que anteriormente poderia ser comparado ao "balaio de gatos" e, por fim, criar uma instituição específica de atendimento às psicoses.

O segundo aspecto aqui ressaltado é o de que esta mesma instituição (atuais CAPS) se organiza em torno de uma concepção de sujeito, no caso, o sujeito do inconsciente da psicanálise. O aparecimento de Jacques Lacan e sua entrada na psica nálise possibilitou a construção de uma teoria da subjetividade para a psicose, atrelada a um modo de intervenção clínica. Passa a existir, então, neste momento, uma via de tratamento possível, calcado em uma posição ética, teórica e técnica: a do sujeito do inconsciente da psicanálise lacaniana.

Assim, é possível afirmar que a arquitetura terapêutica de uma instituição para psicóticos, ou seja, sua gama de dispositivos clínicos tem em comum este olhar da psicanálise para o sujeito do inconsciente, o qual circula nos distintos dispositivos clínicos e institucionais. Desse modo, ao menos em termos conceituais circunscritos a um momento histórico, os psicanalistas, a psiquiatria, a terapia ocupacional, a enfermagem, enfim os profissionais que compunham a equipe da instituição compartilhariam dessa concepção lacaniana de subjetividade na psicose.

O conceito de coletivo é capital para se aprofundar na caracterização deste modelo institucional. O coletivo é pensado em função de uma tensão entre o modo de instituir a coletividade na realidade institucional, sem perder de vista as singularidades ali presentes, como uma estratégia política e ética capaz de tratar da alienação social e psicótica. Conforme Oury, citado por Silva (2001), "o coletivo [...], seria talvez uma máquina para tratar a alienação, tanto a alienação social, coisificante, produto da produção, quanto a alienação psicótica. É evidente que é preciso que haja em algum lugar _ se se quer verdadeiramente fazer alguma coisa eficaz ao nível da psicoterapia das psicoses_ uma máquina que possa tratar a alienação" (p.26). Para concluir, pode-se afirmar que o coletivo é mais facilmente definido pelo efeitos que se buscam produzir, e menos pelo conjunto de indivíduos aglomerados sob um mesmo teto. Para Oury, o que está em jogo, portanto, é o respeito ao outro em uma dimensão ética em que a inscrição do singular, do heterogêneo, seja possível de acontecer.

Pode-se, então, afirmar que a arquitetura terapêutica de um Hospital-Dia ou CAPS tem em comum este olhar para o sujeito do inconsciente, sujeito este que circula nos distintos dispositivos clínicos e institucionais. Propõe-se que esse modelo institucional exija um procedimento que aqui será denominado como o "olhar em rede". Este se dá justamente no momento em que os profissionais da instituição discutem como cada paciente se encontra em seu tratamento ou, então, como está o seu momento subjetivo. Em outros termos, é na reunião de equipe da instituição em que os profissionais localizam, na transferência, quais são as produções significantes do paciente em questão. Desse modo, na medida em que a reunião de equipe se realiza, efetiva-se também um procedimento institucional pertinente para a consolidação de uma escuta institucional para os técnicos, em que o singular de cada paciente seja também acolhido no coletivo institucional. É por meio desse procedimento que um técnico se instrumentaliza para intervir, na transferência, com o paciente. O "olhar em rede" se dá, fundamentalmente, na reunião de equipe.

Assim, é possível circunscrever o surgimento do dispositivo AT em função de uma demanda institucional. Percebeu-se que inúmeros casos não se engajavam no tratamento institucional, o que então precipitou um movimento da própria instituição em mandar profissionais da equipe ao encontro do paciente. Nota-se aí uma espécie de extensão da instituição, como se a mesma não se restringisse aos espaços físicos, já que nesse movimento há uma expansão de seu território. Mauer e Resnizky (1988) relatam esse movimento institucional, ao descrever inúmeras funções para esse profissional. Destacamos uma definição que ilustra o que era pensado como o fazer do at.

"Ao estabelecer um contato cotidiano com o paciente, o acompanhante terapêutico poderá obter uma informação fidedigna sobre o comportamento do mesmo na rua, dos vínculos que mantém com os membros da família, do tipo de pessoas com que prefere se relacionar, das emoções que o dominam. Registrará também condutas chamativas da vida cotidiana em relação à alimentação, ao sono, à higiene pessoal. Tudo isso favorecerá em menor tempo uma compreensão global do paciente por parte da equipe e servirá como indicador de diagnóstico e prognóstico de inestimável valor" (p. 62)

Sua função deriva-se de uma dependência institucional, já que em sua origem o AT esteve vinculado a uma prática institucional e, portanto, a uma equipe de trabalho. Parecia aí que sua função se restringia a um fazer cotidiano de cunho assistencialista, ao auxiliar o paciente a cuidar de suas necessidade básicas. Caberia hoje pensar a prática do at como algo que se aproxima do que foi descrito por Mauer e Resnizky, ou seja, reduzir a sua função à coleta de informações e à realização de tarefas assistenciais?

É interessante notar os efeitos da concepção institucional construída na França sobre a história do surgimento do dispositivo clínico do AT, tal como ocorreu na Argentina, no ano de 1971. Os dispositivos clínicos presentes na arquitetura terapêutica de uma instituição para pacientes psicóticos, em sua origem, compartilhavam de uma mesma noção de sujeito do inconsciente. Desse modo, seria possível esperar que o acompanhamento terapêutico, vinculado a uma história institucional, não trouxesse consigo um olhar mais aprofundado para as questões específicas da subjetividade da psicose? A história do seu surgimento, apesar de atrelada a uma equipe institucional, mostra que o at poderia prescindir de uma concepção de subjetividade na psicose para intervir em sua clínica. Aliás, os trabalhos na área do AT confirmam a nossa hipótese. Ibrahin (1991), por exemplo, descreve o movimento de saída do profissional da instituição, a partir da figura do auxiliar psiquiátrico: "(...) o período inicial da atividade extramuros caracterizou-se por uma postura semelhante à da fase anterior. Ou seja, além de abarcar a função tríplice de proteção, vigilância e controle, o papel do acompanhante terapêutico consistia basicamente em `estar com', na companhia permanente, ou como alguns preferiam, ser um `ego auxiliar'". (p. 47)

Mais do que isso, ressalta-se a necessidade de incluir aí a dimensão institucional da clínica do AT. Não se trata de pensá-lo como um auxiliar psiquiátrico ou aquele que assume tarefas assistencialistas, mas, sim, como uma intervenção clínica inserida em uma equipe de trabalho, em que essa mesma equipe pode lançar mão desse dispositivo clínico. Em reflexões anteriores, foi salientado que o projeto de intervenção clínica no acompanhamento terapêutico depende de uma escuta analítica e de um olhar institucional para ser formulado (2001).

Desse modo, é imprescindível considerar a noção de sujeito do inconsciente, tanto em uma instituição que queira construir o dispositivo clínico do AT, quanto no âmbito da clínica privada. A indicação de um at exige uma reflexão sobre o que a equipe de tratamento (institucional ou particular) reconhece como demandas específicas do paciente que favoreçam a arquitetura terapêutica de sua intervenção clínica. Há algo que escapa de uma montagem de tratamento, cuja demanda pode ser acolhida pela intervenção clínica do AT? Assim, é impossível abrir mão de um olhar em rede e de uma formulação teórica, como a escuta psicanalítica, para a formulação de um projeto de intervenção clínica para o AT.

 

O significante e o acompanhamento terapêutico

O caso Schereber possibilitou a Freud (1911) uma sistematização de hipóteses teóricas importantes acerca da paranóia, gerando uma formulação sobre os mecanismos gerais presentes na etiologia das psicoses. Não serão trabalhadas as questões teóricas formuladas por Freud, mas, trata-se de recuperar a dimensão ética da psicanálise frente ao sintoma, uma vez que a reconstrução do mundo pelo paranóico é uma tentativa de tornar o seu entorno menos aterrorizante e que ele o faz por meio do delírio. Afirma que o paranóico produz o delírio e que esse delírio pode ser considerado, por muitos, como uma produção patológica. No entanto, faz questão de assinalar que essa produção delirante é, na verdade, uma tentativa de restabelecimento, de reconstrução de seu entorno. Esse aspecto é fundamental porque se articula com a ética da psicanálise em relação ao delírio e sua escuta. Não se trata de remover o sintoma, tal como a medicina propõe, mas sim de escutá-lo.

Lacan recupera essa dimensão ética de Freud ao tornar mais preciso, em sua proposta teórica, um tratamento possível para as psicoses. No Seminário As Psicoses (1956), é trabalhada a noção de real para se pensar o modo como se constitui o mecanismo de formação do sintoma na psicose. Lacan (1956) propõe que "no que é inconsciente, tudo não é somente recalcado, isto é, desconhecido pelo sujeito após ter sido verbalizado, mas que é preciso admitir, atrás do processo de verbalização, uma Bejahung primordial, uma admissão no sentido do simbólico, que pode ela própria faltar" (p. 21).

A Bejahung pode ou não se efetivar e é nesse ponto que incide uma primeira dicotomia, já que aquilo que recai nesse primeiro modo de simbolização seguirá uma via distinta daquilo que se orienta para uma recusa à admissão do simbólico. Trata-se de um fenômeno de exclusão, uma recusa do sujeito do inconsciente frente à ordem simbólica da cultura, no caso, a ameaça de castração. Para Lacan, o que não foi possível ser admitido à ordem simbólica retorna pela via do real. O delírio, como sintoma, surge como efeito desse retorno do real, como uma significação imaginária que não encontrou eco no universo discursivo da linguagem. A formação do sintoma na psicose se articula com o mecanismo de defesa denominado foraclusão, mecanismo este eleito pela criança no momento mesmo de sua provação edípica. O psicótico, desse modo, rejeita o acesso à realidade articulada à trama de significantes da ordem simbólica. Há algo que lhe falta, o significante "Nome-do-Pai".

Da formulação teórica apresentada, decorre uma indicação clínica. Lacan nos sugere expressões para pensar o manejo da transferência na psicose. Compara o analista de psicóticos como aquele que testemunha o delírio ou, então, como alguém capaz de secretariar a produção delirante do psicótico. O efeito clínico dessa proposta é o de oferecer uma construção de borda para esse sujeito, ao sustentar sua produção significante advinda de seu delírio.

 

Será apresentado, a seguir, um relato de caso clínico em que a escuta do delírio foi capital para a instalação do dispositivo terapêutico.

Essa experiência clínica permitiu corroborar a hipótese de que a mobilidade do enquadre do AT traz consigo situações concretas, tais como a rua, o carro do at e a residência do próprio paciente que favorecem o acolhimento do sujeito psicótico. No início deste artigo, foi visto que a origem do AT esteve atrelada a uma demanda institucional em que certos pacientes não se engajavam na oferta de um tratamento clínico. A pertinência desse recorte está, portanto, nas evidências da clínica da psicose, ou seja, no fato de que em inúmeras situações o processo de instalação do dispositivo terapêutico é lento e, mesmo em alguns casos, impossível, se ocorrer nos moldes tradicionais de consultório particular ou em ambulatórios de saúde mental. Por conseqüência, podemos ressaltar a potência do modelo clínico do AT para a sua instalação, desde que tenha consigo uma escuta sobre o que paciente produz em seu delírio, além de um reconhecimento do lugar que o at ocupa na transferência.

Apresenta-se o caso de Beto, um rapaz de 20 anos que passava por dificuldades emocionais intensas e, nesse momento de crise, procurou um acompanhante terapêutico para realizar uma pesquisa sobre esportes. Dizia que achava importante incluir novas modalidades esportivas nas olimpíadas. Apesar de uma dúvida sobre seu diagnóstico psicanalítico, seu analista sugeriu essa intervenção clínica por acreditar que o paciente poderia intensificar a sua produção, já que se encontrava reticente em aderir ao tratamento.

Desde o início dos AT, Beto trazia uma ambigüidade com relação à proposta de trabalho, já que em seu pedido de ajuda havia um interesse, mas também uma repulsa a qualquer tentativa de aproximação. Beto deixou uma mensagem na secretária eletrônica do consultório: _ « Venho da parte do meu analista. Gostaria de marcar um horário para saber mais sobre Acompanhamento Terapêutico». (...) Foi acertado um dia e horário. O at chegou em seu apartamento e ele já o esperava na calçada. Desconfiado de que era o próprio Beto, o at não o abordou diretamente, visto que é melhor ir pelas bordas... Tocou o interfone: _ « Por favor, o Beto está? » _ « Olha, ele saiu ». Durante esse breve diálogo, foi possível observar pelo reflexo da parede, com o rabo de olho, a movimentação do rapaz que estava ali. Era ele, Beto, que escutou a conversa e de imediato se voltou para o at: _ « Ei, você! Eu sou o Beto

Neste primeiro encontro, foi realizado um combinado acerca do trabalho. A freqüência estabelecida era de duas vezes por semana, com uma hora de duração. Ambos iam investigar o material existente sobre esportes, uma vez que estava de acordo com o conteúdo de sua produção delirante. Beto afirmara que gostaria de ir mais a fundo nessa pesquisa, mas se deparava com dificuldades. (E quais seriam?) Foi enfático ao circunscrever o AT somente para este fazer: _ « Eu não quero conversar. Não gosto de me abrir e falar das minhas viagens. É só para fazer esta pesquisa. »

No encontro seguinte, Beto não aceitou realizar a sua pesquisa. Disse que queria ver o jogo do Guga pela televisão e que, portanto, não tinha a menor chance de saírem para pesquisar. O at insistiu na necessidade de realizar o segundo encontro da semana e, então, sugeriu um novo horário para o dia seguinte. Novamente ao interfone: _ « Ele não está ». Nesse ínterim, o at aguardou na calçada e, depois de meia hora, Beto entrou no apartamento. Parecia bastante invocado. Pelo telefone celular, ocorreu o seguinte diálogo: _ «Olha, não estou com o menor saco para pesquisa. O que você está fazendo aí?

» Foi quando o at respondeu: _ « Sou pago para te oferecer dois horários de acompanhamento terapêutico. Eu vou ficar na calçada, nos dias e horários combinados. Se você quiser, você saberá onde me encontrar.» E do outro lado da linha: _ « Que absurdo!!! Não quero saber de você! Vai embora! E volte na segunda-feira

Nos AT subseqüentes, Beto transitava nesses dois pólos. Em alguns momentos, estava aderido à proposta, interessado em realizar sua pesquisa e, em outras circunstâncias, repulsivo a qualquer tentativa de aproximação. Poderia não ocorrer o encontro, mas mesmo em sua ausência, em seus desencontros provocados, algo da presença do at permanecia. Desde o início, os telefones celulares se mostraram como importantes objetos in termediários. Com o passar do tempo, os AT começaram a ocorrer quase que freqüentemente, sem furo de sua parte, pois ele sabia que nos dois horários estipulados durante a semana havia um compromisso entre eles. Não era determinado, a priori, o local do encontro. Ora se encontravam em sua casa, ora na rua ou no barzinho, espaços esses localizados dentro de um limite de um bairro de São Paulo. Quando se aproximava o horário combinado, um telefonava para o outro e acertavam como seria o AT do dia.

O que dessa experiência podemos deduzir? Como pensar a questão do enquadre, no fragmento clínico relatado anteriormente? Vejamos o que Fulgêncio Jr. (1991) escreve: "O setting é uma garantia e uma necessidade para a realização do trabalho. Na prática do acompanhante, é evidente que o setting não está colado ao espaço físico: onde quer que esteja terapeuta-paciente, o setting está presente. A essa presença que percorre o espaço físico, a esse campo denominou-se setting ambulante." (p. 234) Em outro texto, escrito por Cenamo et alli (1991), encontramos a idéia de que o enquadre clínico e a função do at se definem a partir de uma determinada tarefa.

A noção de setting ambulante traz uma mobilidade em duplo sentido. Mobilidade quanto à própria característica do trabalho de AT, pois afinal, trata-se de uma clínica de circulação. A dupla pôde escolher e percorrer caminhos na cidade e, assim, abriu-se o campo para a transferência se instalar. Mas a idéia de mo bilidade está também presente nas possíveis transformações que o próprio setting pode sofrer, de acordo com as redefinições de direção do tratamento. Logo, a definição de enquadre em função de uma determinada tarefa é pertinente. Tomando-se como tarefa inicial o acolhimento do sujeito psicótico e instalação do dispositivo de tratamento, pergunta-se: o que compõe o enquadre do AT, no início do tratamento?

Vimos que a definição de setting dentro do AT depende de sua tarefa. No caso do acolhimento do sujeito psicótico, há algo que se fixa no enquadre, no caso, a determinação de horário e da freqüência. É claro que cada caso apresenta um modo peculiar para o estabelecimento desse enquadre. No entanto, acreditamos que é esta a condição fundamental para o acolhimento do sujeito, uma vez que é dada a condição para propiciar o jogo presença/ausência e, portanto, o campo possível para o manejo da transferência e seus cálculos. No caso relatado, fica clara a pertinência desse tipo de estratégia de instalação do dispositivo terapêutico, já que a mobilidade do at de ir ao encontro do paciente implicou o sujeito Beto a lidar com a sua ambigüidade, um pedido de ajuda e uma recusa. Do nosso ponto de vista, houve uma aposta possível nos recursos disponíveis do paciente, aposta esta que foi sustentada in locu. Por fim, ressaltamos que aí está a riqueza desse dispositivo, uma vez que ocorreu, nesse caso, um acolhimento efetivo do sujeito. Seria possível a realização dessa tarefa, caso o at estivesse imbuído de uma con cepção de setting tradicional? Será que não é o caso de concordar com o dito popular, que nos adverte: se Maomé não vai a montanha, a montanha vai a Maomé?

 

O real e a psicose

Conforme Harari (2003), o conceito de topologia, oriundo da geometria, refere-se ao estudo de relações não-métricas. Seu foco é o estudo das relações entre os elementos que compõem uma determinada figura que pode ser deformada continuamente. Lacan lançou mão de diversas figuras topológicas, tais como a banda de Moebius, o oito interior, entre outros. A questão teórica que o motivou a trabalhar a topologia referia-se ao problema da identificação. Como lidar com os espaços de dentro e de fora? O acento aqui dado é o da dimensão espacial, em que o recurso topológico serviu justamente para denunciar o fato de que dentro e fora não estão definidos de uma maneira estanque, contrariando a divisão eu e não-eu ou mundo interno e mundo externo, muito comum entre psicólogos e mesmo entre psicanalistas.

O recorte aqui apresentado é o de trabalhar a figura topológica do nó-borromeu, ao relevar o fato de que ele serve como um sistema de relações formais em jogo. Outro aspecto relevante é o de que os três aros pertencentes ao nó-borromeu se articulam de uma maneira especial, ou seja, fica impossível desprender um dos aros e manter os outros dois aros atados. Afirma-se, portanto, que oque constitui um nó-borromeu é justamente essa relação de interdependência entre os três elementos presentes em sua figura, atados entre si.

Os elementos que o compõem, segundo a proposta de Lacan, são os registros do Simbólico, do Imaginário e do Real. Esses registros podem ser definidos, sucintamente, da seguinte maneira: o registro do simbólico é o lugar da palavra e da linguagem. Por sua vez, o registro do imaginário se refere àquilo que Lacan trabalhou no estádio do espelho, ou seja, a constituição de uma imagem corporal, imagem que nos fascina e nos remete à "mesmidade". Por fim, o registro do real, por estar fora da lei simbólica ordenadora, refere-se justamente àquilo que é da ordem da desorganização, capaz de despertar angústia. Ressalta-se também o fato de que Lacan dedicou um grande esforço e, com sucesso, formalizou uma distinção entre o registro da realidade e do real ao longo de sua obra, presente neste momento de seu esforço de formalização. Decorre dessa proposta do nó-borromeu uma idéia importante. Para pensar os três registros do real, simbólico e imaginário afirma-se que eles também estão atados em uma relação de co-dependência, sem qualquer hierarquização de um sobre os outros dois.

No Seminário Mais, ainda (1973), Lacan trabalha a noção de real sem explicitar qualquer referência à problemática da psicose. De início, distingue o que é da ordem do gozo fálico (marcado pelo artifício da linguagem) e do gozo do ser. O gozo do ser, tomado como topologia, é marcado pelo imperativo do supereu, no momento mesmo em que essa instância psíquica determina que o ser goze de suas repetições, do estar sempre aí e não querer saber "d´isso". Tal idéia permite pensar nos desdobramentos freudianos sobre a compulsão, a repetição. Em seguida, Lacan relaciona a noção de real com a topologia, ao afirmar que a condição de formalização de seus impasses só poderia ser superada pelo artifício da lógica matemática. Gozo do ser e real são coincidentes, tendo ambos a topologia como referência. A topologia serve para sistematizar os momentos importantes de uma análise, momentos esses articulados com a ascendência do real sobre o simbólico. Para finalizar, Lacan lança mão do artifício da lógica matemática e da topologia como estratégia de transmissão daquilo mesmo que se pretende transmitir. O recurso topológico, diz ele, permite formalizar a experiência analítica em sua integralidade.

 

Lacan, desde o seminário denominado

Seminário R.S.I. (1975), acrescenta um quarto elemento à figura topológica do nó-borromeu de três elementos. Falamos aqui do "Nome-do-Pai". O quarto anel serve como um operador da realidade psíquica do sujeito, já que há uma crítica que se faz ao conceito de realidade psíquica, uma vez que fora possível creditar a ela um estatuto próprio de funcionamento. Lacan propõe a idéia de realidade operatória em detrimento da noção de realidade psíquica, já que o problema não é o de pensar na existência ou não da realidade psíquica, mas, sim, de qualificá-la como autônoma e/ou fechada em si mesma.

Assim, a função do "Nome-do-Pai" é a de inscrever um sintoma na criança, independentemente de seu próprio sintoma. Lacan descreve o fato de que não importa qual é o estatuto do sintoma do pai, pois a transmissão que ocorre passa muito mais pelo não dito do que pelo dito. O "Nome-do-Pai" tem como função inscrever o sintoma na criança, além de propiciar e mesmo sustentar a amarração dos registros do real, do simbólico e do imaginário. O sintoma aparece como elemento suplementar, como conseqüência da incidência paterna na ordenação dos registros aqui citados.

E a psicose? Como pensar a foraclusão do "Nome-do-Pai" na provação edípica? Rabinivich (1993) retoma a contribuição lacaniana ao afirmar que aquilo que foi foracluído permite delimitar o lugar mesmo da construção de uma suplência, conforme o próprio exemplo de Joyce. Há três elementos possíveis para ocupar o lugar de suplência na psicose, ou então, suplementar a falta do Nome-do-Pai: o sinthome, o fazer um nome e o ego. Tais suplências não produzem significações, uma vez que elas assumem o estatuto de S1 e, por isso mesmo, não são nem metafóricos e nem metonímicos.

Longe de querer esgotar este tema, será apresentado somente um comentário sobre a função da escrita em Joyce. As figuras de linguagem, seus artifícios lingüísticos, as misturas de línguas, são elas expressão de um sintoma em Joyce? A resposta é taxativa: não. Para a psicanálise, aquele que tem um sintoma justamente padece de um sofrimento, quando tem algo de si para dizer sobre sua dor. Joyce, em contrapartida, tem em seu sinthome o seu trabalho de linguagem e um reconhecimento de seu nome na vida pública.

Distingue-se o homo sapins do homo faber. Cabe ressaltar o desinteresse pelo primeiro, pois não interessa mais a dimensão racional ou política do homem, mas sim a potência criadora do segundo. É o "homem que faz", o artesão que, no caso de Joyce, sugere pensar em um artesão das palavras. Joyce cria seus artifícios para se sustentar no mundo ou, conforme Rabinovich (1993), produz um discurso que segue a via oposta do discurso analítico. Enquanto este último propicia a escansão do significante, o discurso "joyceano" tende a atrair todos os possíveis S2 para o S1, entendendo aí que o S1 está voltado para a idéia de sinthome. Na psicose, a ausência do "Nome-do-Pai" nos orienta a formular a idéia de que a construção do sinthome assume o lugar de suplência, de amarração, pertinente para pensarmos a direção do trabalho analítico.

A clínica mais uma vez nos serve como referência para ilustrar as questões teóricas anteriormente trabalhadas, que servirão para pensar a questão do trabalho de construção do sinthome.

Desse modo, será apresentado um recorte clínico que ilustra o trabalho de escrita de João, um senhor que, num momento de seu percurso clínico, deparou-se com uma questão importante. Dizia que sofria de "assistite". Interrogado sobre o sentido desse neologismo, João foi enfático: _ « `Assistite': Tite vem de doença, inflamação e assistir é ser assistido, vigiado ou controlado. `Assistite' é ser vigiado de modo inflamado. » Sua explicação é, sem dúvida, um belo neologismo para definir a sua paranóia. Interrogado se ele poderia inventar uma palavra ou frase que pudesse barrar a sua "assistite", João se lançou em um trabalho de escrita. O que apresentaremos a seguir são fragmentos de sua escrita em que o acompanhante terapêutico sustentou a produção significante de João em torno da questão que o motivara a trabalhar. O silêncio era raramente interrompido, somente quando ele pedia o cinzeiro ou então um gole de café. A escrita de João será apresentada respeitando seu estilo de construção de frases, seus acentos e suas pontuações.

 

Primeiro Fragmento

« at: _ Você me disse: _ Não estou bem. E então eu te perguntei: _ Por quê? E aí me respondeu que era a dona da pensão. Bom, agora eu te comento: comigo você não sofre de `assistite', mas parece que com os outros sim."

João: _ Sim.

at: _ Tanta coisa para este sim? João, aventure-se no papel. Segue uma folha para você começar..

João: _ As coisas, não são bem assim... Eu, compro, no bar, e não dei liberdade alguma, para, ésta folga deles. E, na pensão, também. Eu moro lá, e pego, para... então... prestar serviços e receber, todo, minuto órdens de Dona Eustácia. Com o quê, venhamos, conversando, há uma possibilidade, de eu ficar, mais calmo, com isso tudo, e evitar, problemas, para mim, e para êles.

: _ É justamente nesta linha que eu quero prosseguir. Qual é a possibilidade de ficar mais calmo? Acredito eu, criar um nome para barrar a "assistite" e compreender melhor as situações onde a "assistite" é freqüente.

João: _ Nós devemos impor os nóssos obstáculos, e acalentar ás nóssas tristezas.

at: _ Entendi mais ou menos. Esta é a frase para barrar a "assistite?

João: _ + ou -, é á frase, para prosseguir melhór. Lá. onde, eu móro, e na vida cívica.

at: _ Dentro do que estamos conversando, o que quer dizer esta frase?

João: _ Dentro, de melhoria, para mim. Lá, onde eu móro, e geral. A frase, quer dizer, um currículo, do homem mais enérgico.

at: _ Um sinônimo para enérgico...

João: _ Menos prestativo. côm relação á êles.

at: _ OK. A frase é: Nós temos que impor os nossos obstáculos e acalentar as nossas tristezas.

João: _ É.

at: _ Vamos parar por aqui?

João: _ Sim

Dois meses depois... um outro fragmento de escrita

« at: _ Oi, João, tudo jóia? Hoje você me disse uma coisa diferente sobre a dona da pensão. Você disse que tem medo dela. Nunca tinha escutado a palavra medo com a idéia de `assistite'. Você poderia me explicar isso?"

João: _ Uma pessôa quando é demais chata, eu acho quê, a gente, sente mêdo déla. A "assistite" quê é, a dôr de estomago meu, está bem, com o remédio, que, estou tomando, num Dr. que consulto; no P.S.

at: _ Eu pensei que a chaticeda Dona da pensão te causasse

`assistite'. Não é isso? O medo está junto com a `assistite'?

João: _ É isso. o mêdo também, dá `assistite'.

at: _ E o que você faz com isso? Como se vive com alguém assim? Você poderia arrumar um jeito de melhorar esta situação?

João: _ É horrível conviver. Tenho, que ter paciência e controlar e contornar. Melhorar, também é o tratamento aqui, que me acalma, e me mantem. (...) _ Temos, qué ser homem, e ter nossos Objetivos, o resto não se vê. É + ou _ assim.

at: _ Como é mesmo aquela frase: temos que impor os nossos obstáculos e acalentar as nossas tristezas?

João: _ Temos, quê, guardar, o quê, pensamos, diante, de pessôas, mál queridas, como êles. E, fazer, quê, não vê, o quê, êles, nos dizem, e fazem.

at: _ E se eles repetirem o mal feito?

João: _ Se, eu estiver bem, e bem guardado, também, pode, passar isto. »

Após um ano de tratamento, João abre um novo significante, como se segue:

« at: _ Oi, João! Posso te perguntar uma coisa? Você se entristece quando o céu está cinza, próximo de chover?

João: _ Me entristeço, e fico côm ódio. Porquê, não gósto, de lugares assim. Mê sinto bém, côm lugares do interior, ônde é bóm viver, côm paisagens, pôuco sol, sombra, e garoa, quê dá saúde, não gripe, como aí.

at: _ O céu escuro te dá ódio? Nunca ouvi esta palavra vindo de você. Ódio, como assim? (...) _ Será que a turma do bar e a Dona Eustácia podem te deixar com ódio? Poderia ser?

João: - Também, coopéra, isto, eu ficar, bêm côm ódio, você acertou, senão, as vêzes, não ligo, para o têmpo.

at: _ Ficar bem com o ódio. Como assim?

João: _ Destas coisas, p. têm os dramas da Dona Eustácia e do bár. (...) _ Só isto... Dá prá ir....

at: _ Ir para onde?

João: _ Vivendo, com esta, irregularidades, que eu acho. Que eu acho, que este tratamento, que me da São Paulo (tempo) e onde moro, é um defeito deles (irregularidade). Deles, lá, onde, eu, moro.

at: _ Tem mais alguma coisa para dizer?

João: _ OK. Só. Obrigado. »

Passado mais algum tempo, João começou a sentir uma forte tristeza. Foi notado que ele diminuíra consideravelmente a sua produção delirante, no entanto, parecia que também havia perdido o senso de humor e até mesmo de produção criativa. Em uma cir cunstância, foi possível comentar com ele que continuava triste e que este seu modo cabisbaixo poderia também deixar o at triste. Essa intervenção foi importante, pois ele gradativamente retomou o humor e pôde, a seu modo, estar mais disposto com o outro.

É possível afirmar que Lacan rompeu com a teoria das psicoses vinculada com a noção de significante ao oferecer sua proposta

de articulação entre gozo do ser e real por meio da topologia? O que foi visto nesse fragmento de caso clínico foi a sustentação da produção delirante de João, conforme a função do analista descrita no Seminário As Psicoses: a de secretariar o significante "assistite", presente na transferência. Percebeu-se, ao longo do tratamento, que outros significantes surgiram, tais como o medo, o ódio e a tristeza. A contribuição lacaniana acerca da teoria dos nós-borromeus aparece como uma estratégia de formalização dos significantes que se sucederam em seu percurso de tratamento. Podemos então afirmar que a teoria dos nós-borromeus nos permitiu insistir no manejo do secretariado do alienado, já que a teoria do real como topologia inclui aí, em sua formalização, aquilo mesmo que Lacan denominou, no Seminário Mais, ainda, como issopira ou issouspira (Hermann, 2004). A escrita de João lhe permitiu trabalhar sobre o seu sintoma, ao criar aí uma possibilidade de construção de algo que versasse sobre a construção de seu sinthome.

 

O real e o acompanhamento terapêutico

O caso João tem especificidades que são importantes para serem consideradas neste momento de reflexão. Sua equipe de tratamento era composta pelo at, um psiquiatra e pela sua curadora (pessoa responsável em administrar suas finanças pessoais). Em termos de dispositivos clínicos, João dispunha somente das saídas com o at, saídas essas que eram marcadas por passeios em São Paulo, sempre de carro. Essas saídas permitiram ao at uma aproximação maior das questões da ordem do sintoma de João. Além da "assistite", afirmou ter vivido uma relação "tensiolítica" com sua mãe. Sua explicação era bastante convincente, pois descrevia sua mãe como alguém que lhe dava atenção e cuidados, mas não conseguia se desvencilhar dela. Ela lhe dava carinho, mas lhe causava vergonha e medo; sua presença era excessiva. Era notório que João reproduzia, na situação específica do início do AT, uma condição bastante similar à que Lacan descreve no primeiro tempo do Édipo, em que o outro é encapsulado pela transferência simbiótica. Não havia, nessas saídas, qualquer interesse voltado para as pessoas que estavam em seu entorno. Ao constatar essa condição, o at se dispôs a interrogar João acerca de seus temores. Como então tratar da "assistite"? Foi aí que o at ofereceu dispor um dos horários da semana para ir ao consultório para desenvolver o trabalho que anteriormente foi relatado; no caso, trabalhar sobre as vicissitudes de sua vida na pensão, no bar, enfim, em seus espaços de circulação. Esse trabalho de produção de escrita durou algo em torno de dois anos. Depois desse período, João se interessou somente em realizar os AT.

Os opositores desse manejo devem agora se interrogar. Ir para o consultório? A clínica do AT não é uma clínica de circulação? Afirma-se que o at tem consigo um olhar em rede, olhar este que pretende construir, sustentar e fazer a produção do paciente circular pelos dispositivos clínicos que compõem sua arquitetura terapêutica. Trata-se de construir bordas possíveis para o retorno do real, conforme já trabalhado nesta reflexão, no momento em que se discutiu o viés institucional do AT. Nesse prisma, acredita-se que o at é o articulador dos profissionais que compõem a rede de tratamento. Construir uma rede de profissionais, que pode ainda não estar operando com os profissionais pertinentes para cada caso, também compõe um projeto clínico importante para o AT. Foi o que aconteceu, pois na singularidade deste caso foi possível ao at operar com a escuta analítica, ao demandar de João um trabalho de escrita.

O exemplo aqui trabalhado possibilitou ofertar um novo dispositivo clínico a João, o que permitiu incrementar a gama de dispositivos clínicos que o assistia. De um lado, mantiveram-se as saídas e as circulações pelos AT e, de outro, abriu-se um espaço de trabalho para pensar os efeitos dessas saídas e diante às pessoas presentes em seu entorno. João pôde, no consultório do at, lançar-se em um processo de escrita, de construção de seu sinthome. Nota-se aí que não se tratou de uma substituição de um dispositivo sobre o outro, mas de um incremento de uma oferta clínica. Ressalte-se o fato de que, concomitantemente ao processo de escrita de João, foi possível sustentar as saídas e promover circulação. Seu modo de estar junto foi também se modificando, tornando-se menos aterrorizado e mais confiante frente à oferta do laço social.

O AT para João produziu efeitos importantes. O A.T. Atrapalha e Trabalha3. A circulação, a aposta em propiciar uma aproximação do sujeito psicótico com o laço social permitiu a João situar-se na tensão entre o retorno do real e seus avanços na construção de seu sinthome. João já não recorria à velha estratégia de reproduzir a transferência simbiótica, bastante freqüente no início de seu tratamento. O projeto terapêutico do AT, neste momento do caso, era o de promover cenas sociais importantes para que o sujeito João experimentasse, em ato, possibilidades de encontro com laço social.

Concordamos então com Palombini (2004), ao formular a hipótese de que a intervenção clínica do AT incide sobre a dimensão do espaço e do tempo. A autora descreve a dimensão espacial da cidade, com seus fluxos, entendendo aí que é possível encontrar brechas de enlace do sujeito psicótico em espaços públicos, fora dos limites territoriais das instituições de tratamento, instituições estas que também tornam o tempo estagnado, normatizado. Pensa-se então que o sujeito psicótico, em seu modo singular de se relacionar com o tempo e o espaço, constrói pontos de contato importantes para a inscrição do seu singular no tecido social. São essas ofertas de aproximação ao laço social que provocam efeitos importantes na subjetividade do sujeito psicótico. O par at/paciente pode, em uma oferta realizada na transferência, aventurar-se nas andanças pelas vias públicas da cidade.

Ainda assim, insiste-se em uma questão essencial: Como teorizar a transferência na modalidade clínica do AT? Esta questão merece um comentário à parte, uma vez que há duas visões distintas a respeito da função do at. A primeira delas é fundamentada na idéia de que a clínica do AT se baseia em um "fazer junto". Basta se ater em um dos sentidos possíveis da palavra acompanhamento, no caso: "comer pão juntos". Assim, para os defensores desta visão, a clínica do AT se fundamentaria somente neste fazer junto, como se sua função clínica se justificasse "nessa ação entre como `amigos'". Examinemos essa visão mais de perto. Será realmente válido reduzir a clínica do AT a este "fazer junto"?

A segunda visão busca justificar a idéia de que a escuta psicanalítica é capital para o bom manejo da transferência e, também, para a própria formulação do projeto terapêutico. Certa ocasião, houve um encaminhamento de um psiquiatra que dizia oseguinte: - « Olha, estou te encaminhando este paciente... Ele é bastante sozinho. Vê se você leva ele numa boate ou então em uma casa de massagem. » Bom, se se baseia na idéia de que a clínica do acompanhamento terapêutico é somente um fazer junto, seria possível "comprar" a recomendação do psiquiatra e, de pronto, realizar os programas sugeridos. No entanto, será este realmente um bom projeto terapêutico? Será que não foi justamente a proximidade com um outro corpo que fez com que o referido paciente entrasse em surto? Retomamos aqui a necessidade de escutar o delírio para formular o projeto terapêutico.

Por fim, é neste momento que seguem as questões ditas fundamentais para essa reflexão sobre o AT, bem como sobre o eixo central a respeito do qual se desenvolvem as inquietações teóricas sobre essa clínica. Do ponto de vista epistemológico, é possível teorizar a clínica do AT com conceitos psicanalíticos, mesmo sabendo que eles advêm de uma experiência clínica construída artificialmente no interior de um setting analítico? Há então como legitimar o uso de conceitos psicanalíticos nesta nova modalidade clínica? Como então promover a derivação (reformulação) dos conceitos sem recorrer à camisa de força/ajuste da conveniência epistemológica? Nesse sentido, formula-se a hipótese de que o AT promove efeitos analíticos? Dito de outro modo, em que medida propor uma circulação nos espaços públicos incide sobre a subjetividade do sujeito psicótico, de modo a promover um trabalho subjetivo para a construção de um sinthome?

Tome-se como exemplo a língua francesa. Além dos artigos definidos e indefinidos, tal como existem também no português, há também o artigo partitif. Seu modo de emprego ocorre antes de um nome concreto ou abstrato e serve para indicar uma quantidade indeterminada, uma parte de um todo que não pode ser contabilizada. Examinemos um breve diálogo, a título de ilustração. "_ O que há nesta xícara?" "_ Café." Na língua portuguesa, afirmamos, por exemplo, que o conteúdo de uma xícara é composto por uma substância líquida, escura, com um bom aroma, etc., denominado café. Na língua portuguesa, não existe um artigo próprio para o diálogo acima proposto. Agora, vejamos como esse mesmo diálogo ocorre na língua francesa: "_ Qu´est-ce qu´il y a dans cette tasse?" " C´est du café." O artigo partitif da segunda oração é a palavra du, necessário na gramática francesa para o ato lingüístico de identificar a natureza da substância em questão, no caso, o café.

O problema que se coloca nessas inquietações pode ser precisado a partir do exemplo do artigo partitif. Quando se formula a questão se há algo de analítico na clínica do AT, o que se busca identificar é se as cenas construídas no par at/paciente produzem algum tipo de efeito que pode ser comparado ao efeito que uma intervenção clínica propícia ao paciente psicótico. Desse modo, é capital que se faça uma reflexão sobre o que é propriamente analítico na clínica psicanalítica tradicional das psicoses. Acredita-se, então, na necessidade de recuperar a proposta clínica de Jacques Lacan sobre a construção do sinthome como orientação clínica. Desse modo, seria possível, a partir do modelo tradicional de consultório, buscar identificar, na experiência clínica do acompanhamento terapêutico, algum ponto de contato que se assemelhe à intervenção clínica de consultório? Dito de outro modo, há algo de analítico no AT?

 

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Recebido em julho/2005
Aceito em setembro/2005

 

 

NOTAS

1 Este artigo originalmente foi apresentado na Jornada de Psicose da EPFCL-SP, no ano de 2005. Sua versão original foi modificada para a presente publicação.
2 Projeto de Doutorado sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Carlos Nogueira (in memoriam) e da Profa. Dra. Miriam Debieux Rosa.
3 Expressão criada por Fernando Colli.
I Psicanalista e acompanhante terapêutico. Doutorando em Psicologia Clíninica pela USP. Docente e Supervisor Clínico da Faculdade de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo. Membro da EPFCL-SP.

 

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