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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.11 n.20 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGO

 

Uma criança em busca de uma janela: função materna e trauma

 

Child searching for window: maternal function and trauma

 

Un niño buscando una ventana: función materna y trauma

 

 

Silvia Abu-Jamra ZornigI; Lídia LevyII

Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende refletir sobre a relação entre trauma e função materna, contrapondo uma concepção do trauma enquanto estrutural (Freud) à noção trazida por Winnicott referida ao trauma enquanto uma descontinuidade de cuidados do meio ambiente. O caso clínico de uma criança adotada tardiamente, com uma história de vida inicial marcada por uma relação com uma mãe psicótica e por sua separação, nos ajuda a discutir pressupostos psicanalíticos sobre a importância das relações precoces no processo de construção subjetiva da criança.

Palavras-chave: Função materna, Trauma, Separação precoce, Adoção tardia, Psicanálise.


ABSTRACT

This paper intends to discuss the relationship between trauma and maternal function. From a Freudian perspective, one can think of trauma as structural, while Winnicott indicates that the concept of trauma can be related to a rupture of maternal care or to poor environmental holding. Based on a clinical case of an adopted child who had a very difficult infancy, we would like to reflect upon psychoanalytic concepts related to the importance of early relationships for the constitution of the child’s subjectivity.

Keywords: Maternal function, Trauma, Early separation, Late adoption, Psychoanalysis.


RESUMEN

Este trabajo tiene por objetivo pensar la relación entre trauma y función materna, haciendo una contraposición entre la noción de trauma como estructural (Freud) y la concepción de Winnicott que se refiere al trauma como una discontinuidad de cuidados del medio ambiente. El caso clínico de un niño adoptado tardíamente, con una historia de vida inicial marcada por una relación con una madre psicótica y por su separación, nos ayuda a discutir los presupuestos psicoanalíticos sobre la importancia de las relaciones precoces en el proceso de construcción subjetiva de los niños.

Palabras clave: Función materna, Trauma, Separación precoz, Adopción tardía, Psicoanálisis.


 

 

Introdução

A importância dada à primeira infância pela teoria psicanalítica é indiscutível, principalmente a noção de um sujeito constituído a partir da relação com o Outro. Desde Freud, o investimento narcísico dos pais constitui a base para a organização psíquica da criança. No entanto, enquanto na teoria freudiana a ênfase dada ao desamparo inerente ao ser humano coloca a questão do trauma como estrutural, autores como Ferenczi, Winnicott e Bowlby ressaltam justamente o oposto, ou seja, que esse desamparo só ocorre como efeito de uma ruptura na continuidade dos cuidados parentais.

Alguns autores procuram diferenciar trauma e traumatismo, relacionando traumatismo a alguma ocorrência externa que atinge o sujeito e trauma ao efeito produzido no sujeito por essa ocorrência (Kaufmann, 1996). Freud relativiza essa distinção ao considerar traumáticos tanto as situações ditas externas quanto o excesso pulsional que também ameaça a integridade psíquica do sujeito.

Observamos que ao longo da obra freudiana a noção de trauma sofreu modificações, mantendo, entretanto, o fator econômico como essencial. Em “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926), Freud caracteriza o trauma do nascimento como o protótipo da situação de angústia não só pela separação do bebê de seu objeto de amor, mas principalmente por se referir a uma angústia não inscrita no campo das representações. O bebê, por sua prematuração biológica ao nascer, fica numa posição de desamparo, só podendo perceber o fenômeno somático da angústia. No nascimento, ocorreria um transbordamento energético sem representação, no qual o real ameaça o sujeito, apontando para a experiência radical da morte. Por não poder tematizar o perigo real da morte, mas somente perceber a experiência corporal da angústia, cabe ao Outro materno introduzir uma estrutura que possa ser considerada a pré-história do sujeito. Assim, o que faz do nascimento um evento traumático é justamente o fato de estar relacionado a um aumento de tensão acima do limite tolerável, de ser uma auto-intoxicação.

Separada da mãe sem estar adaptada a um funcionamento autônomo, a criança sofre um transbordamento energético sentido como um ataque interno que será reativado em toda angústia posterior. Freud ressalta ao mesmo tempo a importância da relação com o objeto (separação do Outro materno), que vai exercer a função de contenção ao aparelho psíquico do neonato, mas, sobretudo, o fator econômico, já que a experiência traumática deve sua força patogênica à incapacidade do aparelho psíquico de processar e ligar, através de representações, o excesso pulsional (perigo interno).

Laplanche (1992) retoma a teoria da sedução freudiana para argumentar que o trauma é inevitável e estruturante na construção subjetiva, decorrendo do confronto entre a criança e o mundo adulto, que propõe à criança significantes obscuros, para os quais ela não tem resposta. Nesse contexto, a noção de trauma não pode ser separada da constituição subjetiva da criança, já que é justamente o que impulsiona a criança a trabalhar psiquicamente e a procurar um sentido para os significantes enigmáticos que aparecem no campo do discurso parental.

Autores como Ferenczi e Winnicott, no entanto, propõem uma diferenciação entre a experiência normal do nascimento e o trauma em si. Para Winnicott (1979), o surgimento do self se dá a partir do sentimento de continuidade de existência, baseado no estabelecimento de cuidados maternos que protegem o bebê dos excessos tanto pulsionais como externos. Assim, a noção de temporalidade contínua é introduzida pelos cuidados maternos, e a descontinuidade, referida ao trauma. A questão do trauma de nascimento não é colocada como estrutural, mas como uma falha, como uma descontinuidade relacionada a uma invasão prolongada e excessiva do meio ambiente. Ferenczi (1927) também questiona a relação estabelecida por Freud entre angústia e trauma do nascimento, indicando que o nascimento pode ser considerado um “triunfo” para a criança, por ser o resultado de um processo. Por um lado, a criança tem todas as condições para nascer; por outro lado, seus pais procuram, com seus cuidados e proteção, tornar essa transição tão suave quanto possível.

O que procuramos ressaltar é que a noção de trauma pode indicar uma ênfase ou no perigo interno (pulsional) ou em situações de vida que ficariam referidas a um perigo externo, parte da história de vida do sujeito. Se pensarmos na teoria freudiana, poderíamos dizer que Freud, ao longo de sua obra, passa de uma noção mais econômica da angústia para uma concepção mais histórica, mas mantém a tensão entre as duas perspectivas. Sendo assim, o trauma psíquico ficaria referido tanto às angústias presentes no processo de constituição subjetiva da criança, quanto às experiências vividas na realidade que não sejam passíveis de ser assimiladas e representadas, como, por exemplo, o impacto decorrente de uma separação do ambiente até então considerado protetor.

Sem dúvida a separação da figura materna para crianças de tenra idade, incapazes de assimilar o que está ocorrendo, assim como o desinvestimento materno abrupto, produzem efeitos traumáticos, podendo desencadear uma série de medidas defensivas com prejuízo da capacidade criativa da criança. Poderíamos citar os estudos de Spitz (1965), e Bowlby (1979) sobre o processo de vinculação, assim como os de autores que trabalham com a clínica de bebês (Golse (2003), Lebovici (1987), Cramer (1993)), para ressaltar a importância da qualidade das relações precoces no processo de construção subjetiva da criança.

Entretanto, sabemos também que muitas vezes o que se revela como determinante não é o evento em si, mas a forma como o sujeito procura repetir e elaborar o evento traumático. Nesse contexto, definir o evento traumático torna-se problemático, pois nem sempre o que traumatiza se relaciona a determinada situação, mas sim a uma palavra vazia, a um desmentido, a um vazio de simbolização.

Trabalhando com crianças e pais adotivos, é possível encontrar uma multiplicidade de pessoas que, tendo tido uma história de vida marcada por separações precoces, conseguem criar recursos psíquicos surpreendentes. Variáveis como a idade da criança na época da separação, a duração da separação, a natureza das experiências antes da separação, a presença de circunstâncias traumáticas envolvendo a separação, a presença e a qualidade da interação estabelecida com os pais adotivos, afetam de formas e níveis diferentes cada criança.

Mesmo reconhecendo que a qualidade dos cuidados parentais recebidos por crianças nos seus primeiros anos de vida é de vital importância para sua saúde física e mental, não podemos desconsiderar o potencial criativo e a incrível capacidade regenerativa das crianças na procura de vínculos alternativos que possam lhes fornecer experiências de acolhimento, intimidade e relacionamento contínuo.

Cyrulnik (2003) observa, a partir de uma pesquisa bibliográfica sobre personagens históricos com histórias de vida potencialmente traumatizantes, que pessoas que conseguem superar situações extremas de vida geralmente tiveram, em seu percurso subjetivo, adultos que puderam dar um sentido a essa experiência, permitindo que o afeto circulasse em palavras e não ficasse petrificado em ato ou em repetição posterior.

Guedeney (2002, p.510) também enfatiza que a noção de resiliência pode ser pensada como um processo que se constrói não só a partir de uma hipótese constitucional, sugerindo que “o aspecto decisivo da resiliência humana é ser construída na relação, na interação de uma pessoa com aqueles que a cercam”. Nesse sentido, “falar verdadeiramente” com uma criança produz efeitos estruturantes e libertadores. Em outras palavras, a construção de uma narrativa funciona como um envelope psíquico para a criança, permitindo-lhe uma ancoragem simbólica, ponto de partida para sua constituição.

A ênfase na qualidade essencial das relações iniciais entre a criança e seus pais deu margem à crença de que crianças abandonadas e/ou vítimas de maus-tratos seriam “problemáticas” e, portanto, não adotáveis tardiamente. Em 1953, Winnicott (1997, p. 117), defendendo a adoção nos primeiro dias ou semanas de um bebê, afirma que: os problemas aqui se relacionam muito à psicologia da criança que sofreu privações, e quando a história inicial não foi suficientemente boa em relação à estabilidade ambiental, a mãe adotiva não está adotando uma criança, mas um caso, e ao se tornar mãe, ela passa a ser a terapeuta de uma criança carente.

Não podemos discordar da ênfase dada por Winnicott à construção de laços precoces entre a mãe e o seu bebê, visto que é nessa relação que tem início a construção subjetiva desse bebê; uma relação permeada pela musicalidade da voz materna, por seu olhar de antecipação de um sujeito, por seu contato táctil – que propicia um envelope e uma sustentação física e psíquica ao bebê – e por sua capacidade de interpretar seus apelos. No entanto, a clínica e o trabalho institucional com bebês (Instituto Loczy, Budapeste1) indicam a possibilidade de esses marcadores simbólicos fundamentais serem mantidos ou retomados a partir da relação da criança com adultos que lhe ofereçam uma ancoragem narrativa.

A noção de narratividade como co-construção de uma história relacional auxilia-nos a pensar nas crianças adotadas que necessitam contar sua história inicial não através da palavra, como enfatiza Golse (2003), “mas sim através das suas especificidades interativas, que são para elas um modo de comunicação,de dizer e nos fazer compreender algo sobre seu passado” (p. 68).

A história de um menino atendido no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da PUC-Rio, além de ser um exemplo do êxito de muitas adoções tardias, propicia um questionamento sobre as “profecias” que costumam ser feitas acerca do destino funesto de crianças com situações de vida ditas traumatizantes na primeira infância.

Quando T. nasceu, sua mãe, diagnosticada como esquizofrênica, encontrou abrigo em uma cisterna localizada numa favela do Rio de Janeiro, vizinha a uma creche. Intrigados com o choro do bebê, os funcionários da creche descobriram os “moradores” da cisterna. A diretora da Instituição foi até o local e disse à mãe que poderia deixar o bebê com eles, durante o horário normal de funcionamento, sempre que assim o desejasse. T, portanto, começou a freqüentar a creche com a idade de um mês, sendo lá deixado pela mãe, pontualmente todas as manhãs, e apanhado todas as tardes, até completar cinco anos. Costumavam chegar, mãe e filho, com um forte cheiro de urina, na medida em que dormiam juntos em um mesmo colchão onde ambos urinavam. Na creche, T. tomava banho, alimentava-se e, apesar de ser tratado por pessoas diferentes, eventualmente recebia uma atenção especial por parte da diretora. Possivelmente em decorrência do espaço reduzidíssimo no local escuro e sem ventilação que habitava com sua mãe, T. não conseguiu andar normalmente até os 5 anos, arrastando-se e tropeçando quando pretendia correr. “Falava” muito, mas pouco se compreendia o que dizia; emitia sons indecifráveis para as pessoas que trabalhavam na Instituição.

Um fato marcante ocorreu no dia em que completou cinco anos. Como nunca tinha tido um aniversário, a diretora da creche decidiu fazer-lhe um bolo. Coincidentemente, no mesmo dia, alunos de uma escola da Zona Sul foram levar ovos de Páscoa para as crianças da creche e T., além de ganhar o chocolate, viu-se cercado por outras crianças que lhe cantavam “Parabéns para você”. Era visível a surpresa estampada em seu rosto diante daqueles olhares que o reconheciam em sua singularidade. Nessa ocasião começou a andar normalmente.

Na época, os funcionários da creche preocupavam-se cada vez mais com o destino daquele menino, que vinha dando mostras de não querer voltar para a cisterna. Até então, quando T. não estava na creche, a mãe levava-o para a atividade que fazia todos os dias, ou seja, dançava nas praças públicas do Rio de Janeiro e recorria à caridade dos passantes. Como o filho começara a andar, preocupada com a possibilidade de queele se perdesse ou fosse atropelado, amarrava-o numa árvore. Nessas circunstâncias foi um dia encontrado por uma conselheira tutelar.

Alguns procedimentos foram iniciados no sentido de proteger a vida do menor e entre eles a indicação de um acompanhamento psiquiátrico à mãe. Esta, no entanto, recusou-se a comparecer ao atendimento, mas concordou que o filho fosse colocado em um Abrigo. T. não chorou ou manifestou qualquer tipo de emoção quando foi para o Abrigo, mas demonstrava não desejar ficar ali. Uma característica marcante dessa criança era seu fascínio por janelas. Dizia querer ir para uma casa que tivesse janelas. Segundo os técnicos que o atenderam nessa ocasião, estava aberto para se ligar a qualquer pessoa que lhe possibilitasse sair dali, e declarava seu desejo de uma “nova mãe”. O desligamento progressivo da figura materna parece ter acontecido durante o ano em que ficou na Instituição.

Nesse período, sua mãe não quis vê-lo. Nas primeiras semanas, ia com regularidade até a porta do Abrigo, chamava a assistente social e pedia-lhe que entregasse algumas balas ao filho. Não aceitava o convite para entrar. Aos poucos, as visitas foram rareando, até ficar alguns meses sem aparecer. T. também começou a recusar qualquer encontro. Quando lhe perguntavam se queria ir até a porta, dizia não desejar mais vê-la: “Não quero morar mais com ela, e também não quero ficar aqui. Eu quero uma outra mãe”. O ressentimento manifestado nessa afirmação devia ocultar a dor da separação e a incompreensão diante do que vinha ocorrendo. Lembremos que também o vínculo com os funcionários da creche foi rompido, apesar de um técnico, que lhe dera assistência naquela Instituição, ter permanecido como ponto de contato entre ele, sua história passada e o Abrigo.

A equipe preocupava-se com o destino do menino de seis anos, que talvez não tivesse oportunidades de ter uma família. A avaliação psicológica apontara consideráveis dificuldades de aprendizagem. Nesse período, surgiu a possibilidade de uma adoção, deixando toda a equipe responsável pelo caso em estado de angústia.

Por um lado, havia uma mulher que, com todo seu distúrbio psíquico, funcionou como uma figura de referência estável nos primeiros anos de vida do filho. Por outro, um menino cada vez mais limitado em seu desenvolvimento, que demandava a todos algum investimento afetivo. Embora tenha constituído uma medida de proteção, a institucionalização deve tê-lo marcado com a experiência do abandono. Ao mesmo tempo em que era possível constatar a existência de falta de cuidados básicos em seus cinco primeiros anos de vida, era também possível afirmar que, apesar de todas as dificuldades, a mãe de T. demonstrara forte envolvimento afetivo, além de preocupação no sentido de proteger o filho. Entretanto, fazia-se necessário pensar o que seria melhor para a criança, e no caso de T. havia o agravante de não existir qualquer outro familiar que pudesse por ele se responsabilizar.

De certa forma, a “decisão” foi tomada pela mãe. No dia da audiência em que se deveria definir a situação de T., sua mãe não compareceu e, posteriormente, soube-se que entrara em surto, do qual não mais saiu até seu falecimento. Seria muito simples, mas talvez equivocado, interpretar o abandono materno como rejeição. Concordamos com Nazir (2002), para quem o abandono nem sempre é equivalente a rejeição ou a não-desejo. No presente caso, essa mulher parece transmitir uma compreensão de que o crescimento do filho dependia de seu próprio desaparecimento.

O desenvolvimento físico e emocional de T. a partir da adoção foi surpreendente; e levou-nos a perguntar que forças teriam atuado na manutenção de sua saúde psíquica, e se o sucesso da adoção não estaria diretamente ligado à experiência vivida com a figura materna nos primeiros anos, assim como à sua possibilidade de recontar essa história inicial através do vínculo afetivo estabelecido com a família adotiva.

A mãe, apesar da gravidade da doença que a afligia, pôde exercer uma função de sustentação e cuidado que permitiu à criança uma ancoragem simbólica suficiente para iniciar a narrativa de sua história. A cisterna, como espaço fechado, pode ser pensada não só em uma perspectiva claustrofóbica, sem janelas, mas também como um primeiro envelope de sustentação à mãe e ao filho. È interessante observar que foi a partir do choro de T. que os funcionários da creche descobriram sua presença na cisterna. Ou seja, o nascimento psíquico de T. tem como fiadores não só sua mãe/cisterna, mas o espaço aberto da creche. Ao oferecer acolhimento sem restringir a liberdade da mãe de resgatar seu filho e voltar a seu entorno fechado ao final de cada dia, a creche propicia um ir-e-vir que aponta para a construção de um espaço transicional, fundamental à subjetivação da criança.

Winnicott (1979) postula a importância da provisão ambiental, especialmente no início da vida infantil, e acrescenta que a criatividade tem suas raízes na experiência de ilusão que se estabelece entre a mãe e o bebê, permitindo que ele desfrute de um sentimento de continuidade de existência e da ilusão onipotente de poder criar seus próprios objetos. Poderíamos supor que a mãe, através do holding oferecido pela creche, pode sustentar essa experiência fundamental à constituição do psiquismo de seu filho, fornecendo-lhe elementos proto-simbólicos para estabelecer novos laços afetivos no decorrer de sua história.

À medida que crescia e percebia que nem sempre podia contar com a mãe, T. ligou-se inicialmente aos técnicos da creche e, depois, já no Abrigo, expressava com freqüência seu desejo de “mãe”. Esse desejo de estabelecer uma relação significativa com um adulto que pudesse ocupar essa função parece indicar um trabalho de elaboração de T. e não apenas a demanda de substituir um objeto pelo outro. Querer morar em uma casa com janelas indica a possibilidade de efetuar um trabalho de luto que lhe permita dar um sentido à sua história inicial: a nova mãe só sendo possível pelo reconhecimento de uma mãe perdida, mas não suprimida. Ou seja, a possibilidade de elaborar a perda do objeto materno faz com que T. possa se descolar da posição de vítima passiva de um destino funesto para ocupar o lugar de co-autor de uma nova história. Nazir (2002) indica que a criança não sofre passivamente seu destino, mas contribui para sua aceitação, e quando consegue crescer e estabelecer contatos com as pessoas que a cercam (mesmo que timidamente, como no caso de T.), é possível reconhecer um movimento no sentido de adotar e ser adotado.

Se considerarmos o trauma uma ruptura no sentimento de continuidade de existência da criança, a ida de T. para o Abrigo estaria mais próxima a uma experiência traumática. No entanto, não podemos nos esquecer de Bowlby (1980), quando afirma que a criança pode ter sido mal alimentada, mal alojada, pode estar muito suja e sofrendo de doenças, pode ser maltratada, mas, a menos que tenha sido completamente rejeitada, ela está segura em saber que há alguém para quem ela tem valor. Essa indicação parece encaminhar a questão não somente para o efeito de descontinuidade entre a perda do objeto primordial, a institucionalização e a adoção tardia, mas, sobretudo, para a possibilidade de a criança construir uma narrativa que faça um contorno entre sua história inicial e sua história presente.

Na infância, a questão traumática relaciona-se justamente à possibilidade de a criança passar da repetição à elaboração, da posição de vítima à posição de sujeito em relação ao evento traumático. Uma situação traumatizante, uma vez recoberta pela função simbólica de uma palavra plena que tenha efeito de ancoragem para a criança, pode funcionar como um ponto de partida na construção fantasmática do sujeito. Lembramos de Ferenczi, quando relaciona o trauma não só à violência sofrida pela criança e causada por um adulto, mas, sobretudo, ao desmentido do adulto, impedindo que a criança possa significar o que sofreu e produzir um sentido para seu sofrimento.

A criança adotada terá marcado em sua história um fracasso parental cujos efeitos traumáticos de alguma forma se farão sentir. Inúmeros fatores contribuem para a elaboração da vivência de abandono, entre eles a presença de novos objetos que venham ajudá-la a realizar um trabalho de luto. A entrada da família adotiva na vida de T. ofereceu-lhe o suporte necessário para enfrentar a perda do objeto materno, permitindo-lhe colocar em palavras seus sentimentos e sua vivência de abandono. No entanto, o fundamental parece ter sido o investimento dos pais adotivos; pais que não recuaram perante as vicissitudes da história de seu filho, acreditando em seu potencial criativo de poder inventar e escrever uma história na qual eles participam de forma contundente, justamente por sustentarem a versão de que uma história escreve-se continuamente, não se encerrando na conclusão do capítulo da primeira infância.

 

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Endereço para correspondência
Silvia Abu-Jamra Zornig
R. Sara Vilela, 100
22460-180 Rio de Janeiro, RJ
tel.: (021) 2294-5605
silvia.zornig@terra.com.br

Recebido em setembro/2005
Aceito em novembro/2005

 

 

NOTAS

1 O Instituto Loczy, em Budapeste, foi fundado por Emmi Pikler e é uma instituição reconhecida internacionalmente por seu trabalho com bebês e crianças abandonadas.
I Psicanalista, membro da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, professora adjunta do Departamento de Psicologia da PUC-RJ, membro fundador da ABEBÊ, membro da Associação Universitária Brasileira de Psicopatologia Fundamental.
II Psicanalista, membro da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, professora adjunta e coordenadora da Graduação do Departamento de Psicologia da PUC-RJ.


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