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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.22 São Paulo jun. 2007

 

DOSSIÊ

 

A contribuição da psicanálise para a atuação no campo da educação especial

 

Psychoanalytical contibution to the action in the special education field

 

La contribución del psicoanálisis para la actuación en el campo de la educación especial

 

 

Leda Mariza Fischer Bernardino*

Associação Psicanalítica de Curitiba
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo analisa as relações entre psicanálise e educação especial. O trabalho com crian ças com problemas de desenvolvimento requer o conhecimento do processo de constitui ção subjetiva e seu entrecruzamento com o desenvolvimento. Os conceitos psicanal íticos de sujeito e desejo, como eixos de um processo de reabilita ção, oferecem à criança um lugar de sujeito e não de objeto de técnicas ou treinamentos. Discute-se a questão da diferença, a partir do conceito de estranho familiar para Freud e as conseqüências clínicas desta abordagem. São apresentados exemplos de como a escuta psicanalítica promove este lugar de sujeito, tanto na clínica quanto em instituições.

Palavras-chave: Psicanálise, Crianças com problemas de desenvolvimento, Educação especial, Sujeito, Desejo.


ABSTRACT

This article analyses the rapports between psychoanalysis and special education. The professional care of children who have developmental problems request the knowledge about the subject constitution process and its relations with the development. The psychoanalytical concepts of subject and desire when used like axes of the rehabilitation process may offer to children a place of subjects and not an object place of techniques and trainings. It discusses the concept of difference, since the Freud’s concept of ‘the uncanny’. The article presents examples of psychoanalytical listening to promote the subject place, in the clinic and in the institutions.

Keywords: Psychoanalysis, Children which have developmental problems, Special education, Subject, Desire.


RESUMEN

El artículo analiza las relaciones entre psicoan álisis y educación especial. El trabajo con niños con problemas de desenvolvimiento requiere el conocimiento del proceso de constitución subjetiva y su entrecruzamiento con el desarrollo. Los conceptos psicoanalíticos como ejes de un proceso de rehabilitación ofrecen al niño un lugar de sujeto y no de objeto de técnicas o entrenamientos. Discute-se la cuestión de la diferencia a partir del concepto de extraño familiar para Freud y las consecuencias clínicas de este abordaje. Son presentados ejemplos de como la escucha psicoanalítica promove este lugar de sujeto, en la clínica y en instituciones.

Palabras clave: Psicoanálisis, Niños con problemas de desenvolvimiento, Educación especial, Sujeto, Deseo


 

 

As relações entre Psicanálise e Educação vêm sendo pesquisadas desde os primórdios da inven ção da Psicanálise. Conhecemos as importantes questões que Pfizer discutiu com Freud, com sua proposta de “pedoanálise”, uma espécie de pedagogia psicanalítica com fins de desenvolvimento moral que não teve muita repercussão a posteriori (Millot, 1987). Dispomos da brilhante reflexão de Freud (1914/ 1974a) sobre “a psicologia do escolar”, artigo no qual ele aponta a estreita relação entre os professores e as figuras parentais. Nas Novas conferências (1932/1974b), acompanhamos a preocupação de Freud com as crianças e sua afirmação quanto à posição contrária que a análise toma, em relação ao trabalho educativo – enquanto a primeira trabalha com o levantamento do recalque para dar lugar ao saber inconsciente do sujeito, a segunda preocupase em reforçar tal recalque no sentido de aculturar as pulsões para favorecer a vida em comunidade.

Depois de muitos trabalhos práticos, como o de Vera Schmidt, por exemplo, em Moscou, que tentaram aplicar a Psicanálise à Educação, tornou-se referência o livro de Catherine Millot (1987) Freud antipedagogo, que colocava por terra as expectativas de que a relação entre esses dois campos pudesse ter uma grande aplicabilidade. Para ela, seria impossível uma “educação analítica”, uma vez que não é possível prevenir as neuroses e pelo fato de que educa- ção e psicanálise perseguem fins contrários, como afirmara Freud nas Novas conferências; tampouco é possível transpor o método psicanal ítico para a relação pedagógica. Entretanto, Millot não deixou de reconhecer a importância dessas experiências, por exemplo, na educação de crianças na idade escolar e na mudança de costumes educativos.

Em 1989, contudo, uma autora brasileira, a psicanalista Maria Cristina Kupfer questiona o alcance das idéias de Millot, ressaltando a importância da consideração da transferência na relação professor/ aluno; citando a riqueza da pesquisa de Freud sobre o desejo de saber e sua ligação com o querer saber sobre o desejo. Mais recentemente, em Educação para o futuro, Kupfer (2000) demonstra como é possível “casar” Psicanálise e Educação, principalmente se levarmos em conta o campo dos distúrbios graves de desenvolvimento (que abrange crianças com problemas na estruturação subjetiva), ou dos problemas do desenvolvimento infantil (crianças com deficiências, síndromes, lesões).

O que permite a Kupfer tomar uma posição diametralmente oposta à de Millot é o alargamento do conceito de Educação, que para ela não está restrito aos aspectos pedagógicos, mas estende-se principalmente à inserção do bebê humano na cultura. Segundo a autora: “o ato de educar está no cerne da visão psicanalítica de sujeito. Pode-se concebê-lo como o ato por meio do qual o Outro primordial se intromete na carne do infans (a criança que ainda não fala), transformando-a em linguagem. É pela educação que um adulto marca seu filho com marcas de desejo” (p. 35).

Nessa concepção, não se pode conceber a separação entre os campos da Psicanálise e da Educação, na medida em que estão intrincados no processo de constituição subjetiva. Além disso, essa articulação revela-se de extrema importância na compreensão do processo de constituição de um sujeito, quando este apresenta problemas de desenvolvimento ou problemas de estruturação. Abrese um diálogo importante entre Psicanálise e Educação Especial.

 

A psicanálise e a criança com problemas de desenvolvimento

Encontramos o germe das idéias de Kupfer já na década de 60, na França, na obra de uma psicanalista que se destacou na pesquisa das psicoses e do autismo: Maud Mannoni, que escreveu o livro A criança atrasada e a mãe. As idéias apresentadas nesse livro lançavam luz, pela primeira vez, sobre a complexa dinâmica da relação entre um filho com sérios comprometimentos mentais e seus pais. A repercussão dessas idéias revolucionou não só o conceito de deficiência mental como todo o sistema de atendimento clínico/educacional vigente para o atendimento dos deficientes e de suas famílias naquele país.

Na verdade, o que Mannoni fez foi transpor para o campo da Educação Especial as mesmas idéias que a levaram a questionar a Educação em geral, a Psiquiatria, os serviços de saúde mental, a sociedade como um todo, a partir da Psicanálise: ela apontava a ausência de lugar para os sujeitos, nesses dispositivos que foram criados justamente para recebê-los. Mannoni utiliza o conceito lacaniano de sujeito, concebido como sujeito do inconsciente, lugar a partir do qual um ser humano se posiciona no mundo de modo singular: como falante, desejante, partícipe de uma história familiar.

A subversão representada pelas idéias de Maud Mannoni está exatamente em sua proposta de estender o conceito psicanalítico de sujeito a todas as crianças, até àquelas consideradas apenas “trein áveis”, como uma aposta, para que as condições de surgimento do sujeito – sua antecipação por parte de um outro desejante – encontrem-se presentes. Cada ser humano pertence a uma família, na qual recebe um lugar e passa a fazer parte de uma história. Tem direito a apropriar-se desses elementos simbólicos e a estruturar sua personalidade a partir das relações que vivencia. Esse é o ponto essencial a ser considerado, quer se trate de uma criança que tem um curso de desenvolvimento considerado normal, quer tenha recebido um diagnóstico de deficiência, lesão cerebral, psicose, delinqüência, neurose.

A partir de Freud, a noção do homem restrita ao âmbito biol ógico passou a ser uma ficção, já que, a partir do momento em que nasce, o homem entra em um mundo de cultura e de linguagem que o separa para sempre do estado de puro ser biológico. Portanto, sob essa ótica, um problema do desenvolvimento infantil – decorrente de uma lesão, de uma incapacidade genética ou constitucional – deve ser compreendido também no âmbito simb ólico. Uma lesão, por exemplo, não vai existir como pura lesão, um signo cuja significação seria universal, mas como um significante que vai se combinar com outros significantes, na rede de inter-relações na qual está situado seu portador. Segundo Maud Mannoni, “mesmo nos casos em que está em jogo um fator orgânico, a criança não tem só que fazer face a uma dificuldade inata, mas ainda à maneira como a mãe traduz este defeito num mundo fantasm ático que acaba por ser comum aos dois” (1964/1977, p. 19).

Assim, ao encarar os diversos problemas do desenvolvimento infantil, dando ênfase ao déficit em si, à lesão orgânica, à incapacidade constitucional, estamos tendo uma visão artificial e distorcida, que concebe o homem como puramente biológico. Uma noção falsa, já que desde os primeiros instantes após o nascimento o ser humano se distancia disso: recebe um nome, é cercado por palavras, sentimentos, contatos corporais, que extrapolam o mero conforto físico. Até o seio ou a mamadeira recebem logo outra significação – porque nem só de fome chora a crian ça pelo peito: é a presença física da mãe que é reclamada; é a seguran- ça que ela traz ao desamparo origin ário do bebê que é buscada. Nem mesmo antes do nascimento é somente de um corpo que se trata: na gestação, os pais já podem imaginar seu filho, fazer projetos para ele, escolher seu nome, começar a amá-lo. Tudo isso o filhote humano recebe ao nascer, tornando sua separação do mundo animal, do âmbito biológico exclusivo – o corpo real – cada vez mais inexorável. A ênfase nos déficits, no “quadro clínico”, na “síndrome”, pelo contrário, exerce um papel dessubjetivante, pois impede que todo o movimento de antecipação subjetiva e de inscrição no campo Simbó- lico seja acionado.

Outro avanço nesse debate ocorreu em Buenos Aires, a partir dos trabalhos da neuropediatra Lydia Coriat, que atendia crianças com problemas no Hospital de Niños e deu início a um trabalho em equipe interdisciplinar, entendendo que apenas os conhecimentos da neurologia não eram suficientes para o tratamento das crianças com deficiência mental. Dialogando inicialmente com a psicologia genética de Piaget, essa autora logo encontrou novos limites, que a levaram até a psicaná- lise. Desse encontro surgiu uma institui ção – o Centro Lydia Coriat – que há mais de trinta anos se ocupa do tratamento de crianças com problemas de desenvolvimento e da formação de profissionais nesse trabalho interdisciplinar que tem como eixo a psicanálise, no que se refere à compreensão da criança como sujeito de desejo. Como afirma Jerusalinsky – um dos membros dessa equipe desde seu início –, “abriu-se então um espaço que nunca mais seria fechado: o espaço do que se ignora no destino de uma criança, para além da doença que a afete ou do limite que sua deficiência lhe trace” (1999, p. 14).

Essas proposições, que têm como princípio as idéias formuladas há mais de um século por Freud e que foram desenvolvidas por vários clínicos e teóricos desde então, são ainda desconhecidas da filosofia que permeia o sistema de atendimento de crianças com deficiência. O que acompanhamos nos últimos anos é uma super especialização e um incremento tecnológico de recursos para atender essas crianças nessa dimens ão de um aparelho biológico que falha. Desde os testes aplicados às técnicas de reeducação, aos aparelhos mais sofisticados, o indivíduo é dividido em partes e atendido por vários profissionais que se ocupam cada qual de sua especialidade, visando ao distúrbio em si. A dimensão de sujeito da criança com alguma deficiência é parcial ou totalmente ignorada. Sua história, as particularidades de sua vida, seu desejo, não são levadas em conta. Ela se transforma, ao contrá- rio, em objeto de cuidados: é de sua inteligência que se trata, de seus movimentos, de sua audição, de sua fala. Não lhe perguntam o que ela quer, com o que sonha, o que sente, qual é sua história, quais poderiam ser seus projetos de vida.

Maud Mannoni (1976), em seu livro Educação impossível, já questionava esse ponto dizendo: “Pode-se criar uma situação onde pais, reeducadores, médicos, longe de procurar ouvir a criança como sujeito desejante, integram-na como objeto de cuidados, nos diversos sistemas de recupera ção, ‘raptando-lhe’ toda palavra pessoal” (p. 10).

Como se inserem esses processos de reabilitação na vida de alguém que não sabe de si, que ocupa o lugar de objeto de cuidados e só tem lugar através de sua deficiência? O desejo que conta é sempre o do outro, suposto o único desejante na relação: são os pais que querem que ele aprenda a ler e a escrever, é a professora que quer que ele se comporte na sala de aula, é a sociedade que quer que ele se adapte. Que espaço há para trabalhar o desejo da criança, do adolescente com deficiência, diante desses chamados que recebe? Como se reabilitar, quando se tem, por exemplo, como único lugar de identificação o do deficiente, daquele que nada sabe, nada quer, nada pode? Ainda a esse respeito, Maud Mannoni assinala: “A minha experiência ensinou-me que as diferentes formas de reeducação, tão preciosas quando são empregadas com conhecimento de causa, de nada servem quando a criança não está apta a se beneficiar delas como indivíduo autô- nomo e responsável” (1964/1977, p. 195).

Atualmente, os progressos em neurociências trazem um novo embasamento para ressaltar a importância de conceitos como sujeito e desejo. A descoberta da plasticidade cerebral permite entender como as intervenções terapêuticas, quando aplicadas em um contexto de significações e quando despertam o interesse da criança e dão lugar ao seu desejo, podem ser eficazes até mesmo redefinindo estruturas cerebrais nobres antes lesionadas. Essa plasticidade define “a possibilidade de adaptação funcional do sistema Nervoso Central. Isto é possível graças à capacidade de produzir mudanças estruturais e funcionais por efeito de influências endógenas e exógenas, que podem ocorrer em qualquer período da vida, mas sobretudo nos primeiros anos da mesma “ (Foster & Terzaghi, 1996, p. 71).

Os mesmos autores complementam: “A plasticidade cerebral, entendida como uma propriedade de estruturas e funções que se evidencia no neurodesenvolvimento, também está presente em situa ções patológicas” (1996, p. 87). Mas, como sustentam ainda esses autores, “se o sistema não entrar em funcionamento, não se possibilita o equilíbrio entre sobrevivência e morte neuronal que leva à sua adequada maturação” (p. 82).

O que mobiliza o sistema a funcionar não são as técnicas, por mais sofisticadas que estas sejam, mas um fator preliminar. Esteban Levin mostra que o elemento que põe o sistema em funcionamento é justamente o desejo do Outro, representado pelas funções parentais: “Nesta ‘plasticidade’, nesta regeneração neurônica, é essencial a efetuação cênica, que por meio do campo do Outro mobiliza o desejo da criança, instando-a a demandar e desejar a despeito da sua organicidade” (2001, p. 180).

Mas, como sustentar o lugar de Outro, desejante, quando as funções materna e paterna entram em curto-circuito no momento em que os pais são informados a respeito da deficiência do filho? São tantas as informações sobre a realidade do quadro, sobre o que a criança “não” conseguirá realizar, que se torna muito difícil situar esse filho em um lugar fálico, etapa necessária para ele poder se constituir para além de seu corpo, com a sustentação do investimento parental. Torna-se quase impossível substituir o filho imaginado até ent ão por este filho cuja imagem destoa bastante do esperado.

A abordagem que a Psicanálise propõe nesse campo relaciona-se com uma determinada posição de abertura, caracterizada basicamente pela disponibilidade de escuta dessas situações. Cada pessoa tem uma hist ória única; cada sintoma tem um sentido particular para cada um; cada doença, cada deficiência vai adquirir significação a partir do contexto em que se insere.

Que sentido tem, por exemplo, a deficiência de um filho para a fam ília? Que significação inconsciente a própria criança dá à sua dificuldade, comandada pela significação fornecida pelos pais?

Os pais de Tobias comparecem ao consultório e contam seu drama familiar: seu filho, que até os 2 anos e 10 meses tivera um desenvolvimento até “acima do esperado” (sic), sofrera uma queda de um edifício, ficara em coma e sobrevivera, mas com uma lesão cerebral difusa, que atingira o tronco cerebral. Então com 4 anos, Tobias recusava-se a participar das diversas reabilitações a que era submetido: simplesmente dormia. Ao ouvir os pais, tornavase evidente uma exigência de perfei ção, de ultrapassar os próprios limites, que o pai já trazia de sua hist ória familiar. Como lidar agora com este fato: falharam como pais, pois “não protegeram suficientemente seu filho”, e seu filho falhava também, pois não era mais perfeito. Que processo doloroso ter de abandonar a imagem anterior do filho e dar lugar a uma nova imagem, passível de identificação para ele, em sua nova condição... O próprio Tobias, ao ouvir contar na sua frente a história de seu acidente, com os olhos muito atentos e lágrimas escorrendo, mostrou aos pais que precisava entender o que estava acontecendo. Os pais tinham os exames mais sofisticados nas mãos, os melhores especialistas trabalhando cada função defeituosa do filho, conheciam todos os termos científicos envolvidos com o “quadro” que o acometia, mas não dispunham do essencial: a sustentação para ocupar o lugar de pais. Não sabiam como ser pais desse filho, o que lhe transmitir, o que esperar dele.

A posição de escuta promove um lugar de esvaziamento do saber. Não se trata de fornecer um diagn óstico que fecha qualquer possibilidade de articulação; não se trata tamb ém de prescrever remédios que eliminariam toda a angústia familiar – inclusive a que serve de motor para as mudanças necessárias –, muito menos de indicar treinamentos que alienariam o indivíduo, fixando-o em uma posição objetal. A posição de escuta permite o acesso à verdade da história de cada um.

Não é por se tratar de uma crian ça com uma síndrome descrita nos livros que não haveria verdade a pesquisar; nem um saber inconsciente constitutivo, ou mesmo impeditivo, do surgimento da subjetividade. O meio científico, em geral, prefere ignorar esse saber, colocando em seu lugar uma série de certezas representadas por quadros diagnósticos, técnicas, exercícios, medicamentos e treinamentos, sem se dar conta do efeito que isso pode produzir: o de privar a criança da dimensão humana essencial, a do desejo.

Evidentemente, os progressos no campo das precisões diagnósticas são benéficos e necessários para o avanço da detecção, tratamento e mesmo prevenção dos problemas, ou em alguns casos da própria defici ência. Trata-se de alertar quanto ao uso clínico que se faz desse conhecimento científico, dependendo da posição em que o especialista se coloca. Um diagnóstico preciso – que deveria ser o primeiro passo para um bom projeto de reabilitação – pode tomar outra direção quando o saber do especialista passa a representar uma verdade absoluta que pode até mesmo predizer um destino.

Ressalte-se que é muito importante a detecção da presença de um problema de desenvolvimento na criança, o mais precocemente possí- vel. Mas não se deve esquecer que o que ocorre com o organismo de uma criança é um dos aspectos a partir dos quais ela se estruturará, ou não. Simbolicamente, o fato de ter determinado problema fará parte dos significantes da história desse sujeito. Segundo M. Mannoni, “a realidade da doença não é em nenhum momento subestimada em uma psicanálise mas o que se procura evidenciar é como a situação real é vivida pela criança e por sua família. O que adquire então um sentido é o valor simbólico que o sujeito atribui a essa situação como ressonância a certa história familiar” (1976, p. 65).

Essa autora aponta como a crian ça vai construir uma significação para o que a acomete e para si mesma a partir das palavras veiculadas por seus familiares, de acordo com a importância que é dada à doença ou à deficiência. E acrescenta: “é tamb ém a verbalização de uma situação dolorosa que pode permitir-lhe dar um sentido ao que vive” (1976, p. 65).

Jaime, 10 anos, na primeira entrevista que teve juntamente com sua mãe, ouviu-a pela primeira vez falar de seus projetos quando o estava esperando e de sua desilusão ao vê-lo nascer com lábio leporino. Desilusão que ela sempre tentou mascarar de mil formas. Vemos essa criança sair de sua estereotipia de gestos e palavras sem sentido para dizer “está doendo, está doendo muito”... Essas verbalizações puderam então conectar- se a um saber: fez-se um sentido para a experiência difícil que mãe e filho tinham compartilhado. A mãe falou, o filho ouviu, compreendeu e respondeu – um diálogo se estabeleceu. Foi difícil, mas foi verdadeiro; era possível identificar ali uma rela- ção mãe/filho.

Qual o sentido de ensinar algu ém a usar a linguagem corretamente, a ter uma coordenação motora precisa, uma lateralidade definida, se ele não puder situar-se em relação ao seu corpo, à imagem que o espelho lhe devolve, em relação ao espaço, à família, ao seu lugar nessa família? Na maioria das vezes, tenta-se efetivar essa circunstância paradoxal no âmbito do treinamento, no qual não há lugar para um sujeito, mas para um objeto de técnicas, exercícios, métodos. Os tratamentos ou reeducações serão inoperantes enquanto desconhecerem a necessidade de considerar a dimensão subjetiva em jogo em cada criança com as chamadas “necessidades especiais”.

A dimensão subjetiva começa a se esboçar na relação mãefilho, que se instaura antes mesmo de a criança nascer. A criança não é representada pelo que é na realidade durante a gestação, um embrião em desenvolvimento, mas por um corpo imaginado, já completo e unificado. Sobre essa imagem, suporte imaginário que se sobrepõe ao embrião, é que se inclina a libido materna. Essa imagem, nos primeiros tempos de vida, recobre o corpo e a condição real do bebê: a mãe vai atribuir-lhe traços de caráter, vai descobrir semelhanças entre o filho e outros membros da família, vai supor sentimentos e palavras, desconhecendo completamente a extrema ignorância e impotência do bebê real.

Assim, a história não se inicia com o filho em questão; ela o precede e isso é fortemente determinante para seu futuro: todo sujeito se situa em um mito familiar, o lugar que receberá determinar á a réplica dos parceiros (mãe, pai, irmãos, outros familiares...).

São essas réplicas do Outro, esse discurso que começa a ser dirigido não para o bebê em si, mas para o que ele encarna na cena familiar, que o constituirão como sujeito: simbolicamente, ele come çará a existir. Sem ser suposto sujeito, sem ser suposto falante e desejante, não haverá possibilidade de instauração destas funções.

O surgimento de uma incapacidade, um defeito físico ou uma lesão, vai se confrontar com esse lugar pré-existente à crian- ça e disso resultará uma combinatória. Como assinala A. Jerusalinsky, em seu livro Psicanálise do autismo, “qualquer traço singular que a criança apresente vai adquirir seu significado em função desta estrutura prévia” (1985, p. 19). Para muitas mães, olhar para um filho que apresenta uma imperfeição é como “a contempla- ção da cabeça de medusa – confronto com a castração, para Freud, ou com a morte, para o mito” (Kupfer, 1996, p. 30). Essa incapacidade, defeito ou lesão, que faz parte do corpo real, pode ainda inverter o processo: adquirir supremacia em relação ao filho imaginado e sua existência simbólica. Sendo assim, além da deficiência que marca seu corpo, esse bebê ainda ficará em condi ção precária em relação à sua estruturação simbólica: estarão ausentes as condições para tal.

A primeira relação dual entre a criança e a mãe vai normalmente dar lugar a uma relação triangular, com a entrada do pai (ou outro terceiro) no circuito, exercendo uma função estruturante, de abertura das relações da criança com o meio, na conhecida situação edípica descrita por Freud. Vivenciar a situação do desejo da mãe voltado para outro que não ela, rompe a relação dual e há a ampliação do universo da criança, que passa da mãe para o mundo; mundo entendido a partir da inscrição da Lei inicial – de proibição do incesto – presentificada pelo pai como função. Torna-se possí- vel, então, organizar o meio que a cerca: as relações familiares, as leis da cultura, a simbolização (que abre caminho para a fala, a escrita, a leitura, o cálculo).

O acesso à condição de sujeito depende de o filhote humano ter passado por este processo: pela função materna, que permite existir através do desejo desse outro da espécie; e pela função paterna que, ao desviar o foco do desejo da mãe, que até então incidia exclusivamente na criança, deixa um espaço livre para a criança ocupar, inaugurando seu próprio desejo e seu próprio questionamento sobre si.

Na criança deficiente, as perturbações podem situar-se tanto em uma função quanto em outra. A função materna, nesse caso, vai ser atingida de modo dramático, como bem o descreveu Mannoni (1964/1977): o problema apresentado pela criança afasta-a do lugar de falo materno, uma vez que, ao invés de resgatar a promessa edipiana de recuperação da falta vivida em sua infância, vem redobrar essa falta. Como sabemos, a partir da descrição do complexo de Édipo por Freud, a menina encontra uma solução para o que vivenciou como “castração” através da montagem de uma “equa- ção simbólica”, com a troca do falo perdido pelo filho que ela terá quando crescer. No caso do anúncio de uma deficiência, o problema da criança é vivido como um defeito da mãe. É seu narcisismo que fica abalado e as reações inconscientes ao filho vão passar por extremos como negação, rejeição, ou transformação no contrário (a superproteção que mascara o desejo de morte).

Por outro lado, a entrada que a mãe normalmente daria ao pai, dirigindo seu desejo para ele e inscrevendo-o como terceiro na sua relação com o filho, vê-se obstruída por esta situação “especial ”: de um filho deficiente é a mãe quem cuida; no nível fantasm ático, é como se ele lhe fosse “dado” para que dele cuide fora da influência do marido – e dos terceiros elementos em geral. Não é à mãe que cabe, naturalmente, cuidar eternamente do filho deficiente?

Pode configurar-se aí a situação de dependência absoluta do deficiente: a dificuldade de romper essa relação dual com a mãe e direcionar-se para a cultura. A história da criança pode ficar atrelada à história da mãe por toda a vida, situada no lugar da eterna criança, que não pode ter acesso a um desejo e a uma história própria. Situação que, no extremo, ao não sofrer interven ções, acaba acrescentando à deficiência uma estruturação psicótica.

Em contrapartida, o que os servi ços especializados – sejam eles clí- nicos e/ou educacionais – costumam propor convencionalmente para os deficientes? A reeducação em escola especial, com ênfase no treinamento em atividades de vida diária, em espaços em que os professores ou técnicos desempenham exatamente o mesmo papel da mãe: desejando pela criança, numa ideologia de educação que infantiliza o deficiente e na qual a criança é objeto de cuidados, mas não se torna sujeito no processo educativo.

Esteban Levin fala com muita propriedade dessas situações em que as crianças viram “dublês da institui- ção”, não podendo sair dela. Criamse relações de dependência que fazem da criança um objeto dessa institui ção. Para o autor, é necessário realizar um “trabalho de luto” com essas instituições que trabalham com portadores de patologias graves: “o luto implica que a instituição compreenda a sua função e o seu funcionamento como estabelecimento de trânsito, e não como lugar definitivo para a criança” (2001, p. 243).

Atualmente, a lei sobre a inclus ão, e o debate sobre a sua aplicabilidade nas diferentes instituições, oferece uma importante via no sentido de marcar a circulação social como principal objetivo de todo processo educacional. O alcance simbólico dessa lei, ao atribuir um lugar social aos considerados “diferentes”, pode ter importantes efeitos no processo educativo e na preparação para o trabalho, se as instituições tiverem abertura para essa proposta.

 

A difícil questão da diferença

Vemos produzir-se, seja na vida familiar, seja na vida social, uma situa ção paradoxal: o aparecimento dos problemas de desenvolvimento marca a criança por sua diferença, por estar em dissonância em relação a um ideal de criança perfeita, de filho perfeito, que é o lugar normalmente dado ao filho na família e à criança no campo social. Ao mesmo tempo, justamente por ser portadora dessa diferença, fica-lhe impedido o caminho do desenvolvimento que lhe possibilitaria marcar sua diferença, ao se situar como sujeito de desejo. Tentemos entender esse paradoxo.

Se em um primeiro momento de sua recém-iniciada vida o bebê necessita alienar-se no desejo do Outro para sobreviver e vir a ser; em um segundo momento, há - ou deve haver um chamado para diferenciarse, constituir-se como sujeito único e singular. Neste caso, trata-se de uma diferença que é condição essencial para a construção da identidade.

Surge, então, a seguinte questão: se a diferença é assim fundamental, por que o diferente e a relação com a diferença provocam reações tão fortes?

Somos levados a pensar que estamos lidando com dois conceitos de diferença; conceitos diferentes, embora interligados. Temos a diferença que produz efeitos estruturantes: aquela, essencial para que o ser humano passe de uma definição geral para uma definição particular de quem ele é. E temos a diferença que produz estranheza, aquela que marca o real do corpo e produz conseqüências, tanto em quem a apresenta quanto nos outros que deparam com ela.

Esse paradoxo está relacionado com a importância da identificação em espelho com o outro para a constru ção arcaica do eu, como muito bem apontou Lacan: “é pelo semelhante que o objeto como o eu se realiza: quanto mais pode assimilar de seu parceiro, mais o sujeito conforta ao mesmo tempo sua personalidade e sua objetividade, garantes de sua futura eficácia” (1987, p. 40).

A relação com o dessemelhante, por não possibilitar uma identifica- ção imediata, abre uma brecha nessa construção primitiva. As reações que daí decorrem são também arcaicas. Como sugere Lígia Amaral (1991), a deficiência desencadeia uma dinâmica psicológica de sentimentos e emo- ções, produzindo o que a autora caracteriza como ‘hegemonia do emocional sobre o racional’ (p. 188-190).

Interessa-nos aqui situar como essa “perigosa dessubjetivação” provocada pelo encontro com o diferente atualiza a questão da diferença como experiência de castração, descrita por Freud – operação traumá- tica e fundadora da angústia (1925/ 1974c), mas indispensável para um sujeito se separar do Outro e construir uma identidade própria. Para se defender dessa angústia de castra ção, apela-se para o mecanismo de defesa da recusa dessa diferença, através de sua afirmação máxima: o diferente torna-se o estranho, isto é, não é reconhecido como semelhante. Mas, curiosamente, esse “estranho ” provoca uma ressonância interna, sendo muito difícil ficar indiferente a esse elemento: ele compele o sujeito a reagir. Freud, em um estudo brilhante sobre esse sentimento de estranheza que acomete os homens, aponta a relação intrínseca que existe entre aquilo que é percebido como estranho e acarreta uma inquietação, mas produz o efeito concomitante de familiaridade. Segundo ele, a inquieta- ção está justamente na intimidade contida no próprio elemento percebido como êxtimo ao sujeito. Ele salienta neste texto intitulado O estranho (1919/1974d): “Pode ser verdade que o estranho seja algo que é secretamente familiar, que foi submetido ao recalcamento e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa condição” (p. 306). Freud ajuda-nos a entender a ligação entre essas duas acepções do conceito do diferente.

Como o diferente é reconhecido, então? Pela sua diferença que causa estranheza e impede de reconhecê- lo como semelhante. A relação com o íntimo recalcado da castração produz uma tendência ao afastamento disso que pode remeter a esse insuport ável. Ora, isso obstaculiza um verdadeiro encontro com o sujeito que aparece como diferente, esvazia sua subjetividade, afasta-o de um lugar de desejo, de singularidade, de complexidade, reduzindo-o e aprisionando- o no atributo que marca a sua diferença: é o “deficiente mental ”, é o “síndrome de Down”. Como se não fosse necessário saber mais sobre ele, como se não houvesse mais para saber. Podemos ilustrar isso com um fato que testemunhamos: uma mãe de uma menina com uma síndrome rara carregava no bolso, ao invés de uma foto da filha, um recorte de jornal em que estava descrita a dita síndrome!

Como diz Goffman, “enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente dos outros que se encontram em uma categoria em que pudesse ser incluído... Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída” (1982, p.41).

Percebemos, por esse movimento, que é em defesa do que se produz de dessubjetivação em cada um, no confronto com uma diferença significativa, que essa dessubjetivação é rapidamente projetada no dessemelhante; ao mesmo tempo, outras diferenças (e aí entra o fator cultural) são facilmente toleradas (ou até admiradas, cobiçadas) em nome de certo estilo, que é o traço subjetivo diferencial de cada um.

Velho (1985) aborda essa questão: “Assim, em qualquer sociedade ou cultura, existe uma permanente margem de manobra ou áreas de significado ‘aberto’, onde possam surgir comportamentos divergentes e contraditórios. (...) Esta margem pode estreitar-se, ampliar-se muito rapidamente ou permanecer estável por gera- ções. (...) O fato é que essas tensões, divergências ou contradições são próprias da natureza da cultura e do caráter altamente individualizado da espécie”. (p.85)

Nesse contexto, como esse sujeito com uma diferença significativa vai construir sua própria identidade? Como esse sujeito vai encontrar sua significação, mais além desse caráter dessubjetivante apontado para ele a cada vez que se vê no olhar dos outros?

 

A escuta da diferença

Como observamos, o encontro com a diferença produz como primeiro efeito a reedição de momentos primitivos da história da estruturação subjetiva de cada um; momentos já recalcados e cujo retorno não é bem vindo. Ao mesmo tempo, trata-se de um encontro necessário, para que se torne possível uma relação verdadeira com esse que é marcado pela insígnia da diferença. Para que uma mãe e um pai possam reconhecer seu filho, para que um professor possa reconhecer seu aluno, para que um profissional da área da saúde possa estabelecer uma relação terapêutica. Sem esse encontro, as relações passam a ser exclusivamente técnicas, automáticas, impessoais. Sem esse encontro, não se constitui um sujeito, uma vez que este necessita do olhar e das palavras do outro para consistir.

Nesse sentido, pode-se compreender a necessidade da fun- ção de escuta. Nessas situações extremas, em que se rompem as expectativas e a família tem que se confrontar com um real difícil de simbolizar, o espaço de escuta pode permitir o surgimento da verdade de cada um; a assunção dos desejos inconscientes que geralmente são condenados severamente pelos meios sociais e cientí- ficos. Cada elemento da família tem algo a dizer. É necessário promover a circulação de palavras, para que se encontrem os recursos simbólicos que permitirão a cada um reencontrar as significa ções perdidas, ou mesmo inventá-las. Só assim a criança, como sujeito, estará apta para um verdadeiro aprendizado, um processo de reabilitação que faça sentido, compensando as áreas que são deficitárias, mas sem usurpar-lhe a condição de sujeito desejante.

O papel do trabalho terapêutico é o de oferecer um espaço no qual um caminho possa ser percorrido entre a colocação da quest ão que perturba e a descoberta de uma resposta singular. Nesse espaço, o papel desse outro, representante do Outro simbólico – o terapeuta que sustenta, acompanha e testemunha esse processo – é fundamental. Esse outro (Outro), o profissional, para aí estar e propiciar esse movimento, precisa abandonar a falsa ilusão do discurso da competência, diante do preconceito que marca a todos, e a ele também, portanto. O medo está na base do estranhamento, da surpresa. Não se esconder sob a competência permite uma abertura para a surpresa, um acolhimento para o novo que pode surgir.

Foi assim que Raul surpreendeu a terapeuta e seus pais, ao abandonar o palhacinho, seu brinquedo preferido nas sessões, mas que – como seu ato o demonstrou – o representava como esse objeto de cuidados que era desconsiderado como sujeito (Bernardino, 1996).

O espaço de escuta promovido pela Psicanálise não é um espa ço exclusivo do tratamento psicanalítico padrão. Essa postura teórica pode fundamentar a criação de propostas alternativas de atendimento, pode servir de eixo para desenvolver atividades expressivas, criativas, de inter-relação. Enfim, atividades nas quais aquele que é considerado “diferente” possa ter um lugar de falante, desejante, atuante. Pode ainda ampliar-se para a escuta dos pais, em grupos de apoio que permitam que se reconheçam em suas dificuldades e seus desafios cotidianos comuns; e que também se surpreendam e compartilhem essas surpresas quando se orgulham dos filhos, reconhecem-se neles! Esse lugar pode finalmente ser ofertado aos profissionais que trabalham com educação especial ou com reabilitação – tanto a equipe técnica quanto a equipe de professores e de funcionários.

Em uma escola para deficientes mentais, iniciamos um trabalho de grupo com os alunos (Bernardino, 1984) a partir de atividades expressivas. Os alunos podiam escolher entre: pintar, realizar colagens, modelagens, desenhos, nesse espaço para o qual eles próprios montaram as regras de funcionamento. Quanto ao coordenador, cabia-lhe o papel de escuta: ouvir o que eles expressavam, relacionar fatos atuais com passados, tanto familiares quanto institucionais, promover debates a partir das pró- prias falas dos alunos. Assim, José, 16 anos, com diagnóstico de defici- ência mental de nível moderado, num determinado encontro do grupo, ao se abordar uma questão relacionada com a sexualidade, começou a cantar o seguinte trecho de uma música: “... o que a gente faz, é por debaixo dos panos...” Marcos, outro participante do grupo, em outro encontro, dirige-se a um colega que não conseguia fazer sua atividade e pedia para os outros fazerem por ele, enunciando o seguinte dito popular: “quem não arrisca não petisca”. São exemplos do que se produz quando se aposta que a expressão subjetiva é possível.

Em outra escola, desta vez dirigida a alunos com paralisia cerebral, a demanda feita aos estagiários de psicologia que supervisionávamos era muito clara: os alunos tinham muitas fantasias, era preciso falar da realidade com eles. Os alunos eram adolescentes e as fantasias que traziam referiam-se a encontros, namoros, expectativas de relacionamentos, e mesmo fantasias sexuais. As estagi- árias estavam, de início, apavoradas: como fariam para trabalhar a tão demandada realidade? Quando se trabalhou com elas a seguinte questão: qual adolescente não fantasia, e principalmente sobre a sexualidade? – elas puderam, com muita surpresa e não sem sofrimento, reconhecer naqueles alunos a presença das mesmas quest ões que assolavam a adolescência que elas próprias também viveram. Foilhes possível, então, conduzir um grupo com aqueles adolescentes, os quais, mesmo comunicando-se precariamente através da fala, utilizavam o alfabeto móvel, gestos específicos, solicitavam ajuda dos colegas, traziam seus escritos, para enunciar suas dúvidas, seus projetos, seus medos. Por exemplo, em um dos grupos, debatia-se sobre qual seria a melhor idade para a primeira relação sexual. Um dos alunos escreveu no alfabeto móvel: “depende”. A estagiária perguntou: do quê? Ele então cutucou na testa com o indicador diversas vezes, para indicar que dependia da cabeça de cada um!

Nessa mesma escola, desta vez em um grupo do qual participavam professores e técnicos, os estagiários perceberam que esses profissionais, apesar de trabalharem com adolescentes e adultos, referiam-se aos alunos indistintamente nomeando-os como “crianças”. A simples mudan- ça de registro, ao apontar essa disson ância entre a realidade vivida por um adolescente e o lugar dado a ele na escola, permitiu o avanço em uma discussão importante: como lidar com a sexualidade exacerbada de alguns alunos. Não se tratava mais da “monstruosidade” de uma “criança grande” que apresentava masturba- ção compulsiva, mas de dar lugar às questões de um adolescente sobre o que ocorria com seu corpo. Na medida em que se pôde falar disso, o aluno em questão não precisou mais repetir compulsivamente seu ato no real do corpo em busca de simboliza ção.

Em outra situação, agora de escuta de pais, trata-se de um pai que está muito assustado com as manifesta ções do filho de 13 anos, com síndrome de Down, que está apaixonado pela professora e não pára de assediá-la. Ao ser indagado se, quando adolescente, tinha alguma vez se apaixonado por alguma professora, esse pai muito surpreso admitiu que sim, que também já se apaixonara assim! A surpresa devia-se ao fato, inédito, de ter podido reconhecer-se no filho. Até então, só podia ver na situação uma demonstração de mais uma das características da síndrome do filho... Agora parecia ser possível conversar com o filho sobre o assunto e até ajudá-lo a se conter, a redirecionar sua libido.

Em um caso trazido à supervis ão, desta vez envolvendo o atendimento psicoterapêutico de uma adolescente surda, ao desenhar as diversas partes de sua casa, para contar à terapeuta como era o local em que morava, a paciente escrevia, abaixo dos desenhos, o nome de cada peça. Quando chegou ao banheiro, ao inv és de escrever PIA, fez um lapso e escreveu PAI. O pai era quem mais cuidava dela, até ter falecido, dois anos antes. Ela pôde, com a ajuda da terapeuta, “falar” um pouco disso e trabalhar seu luto.

Em outra escola para deficientes mentais adultos, num trabalho de preparação para a profissionalização, no qual as estagiárias que supervision ávamos deram uma abertura para a expressividade dos alunos, surgiu uma questão. Falava-se sobre respeito ao outro, como uma das condições do ambiente de trabalho. Um aluno ent ão contou que era chamado de “louco ” pelos vizinhos, concluindo então que se tratava de uma falta de respeito. Uma aluna, pela primeira vez, falou de seu interesse por bordado, atividade que existia na escola, mas da qual não participava, pois sempre era recrutada para fazer caixas, o que fazia bem. Depois do grupo, pôde esbo çar para sua professora uma demanda nesse sentido; no sentido de fazer o que queria e gostava e não o que lhe mandavam fazer.

Esses fragmentos de situações muito simples ilustram a essência do que a abordagem psicanalítica instaura nos dispositivos em que se insere: determinada posição de escuta, a partir da qual se dá lugar aos sujeitos ali presentes, o que não deixa de produzir efeitos.

 

Conseqüências clínicas

Esses aspectos, que constituem o que Freud nomeou o infantil da hist ória de cada um, compõem a base psíquica de um sujeito, os chamados aspectos estruturais, que organizam e dão significação aos aspectos instrumentais e funcionais do desenvolvimento (Bernardino, 2006). As habilidades que se desenvolvem na medida das capacidades maturacionais da criança têm nesses elementos estruturais seu motor e seu direcionamento. Assim, motricidade, atenção e percepção, comunicação, socialização, aprendizagem, necessitam desse eixo psíquico para adquirir sentido e articular-se ao desejo. Da mesma forma, as funções corporais – sono, alimentação, excreção – adaptam-se às normas culturais e adquirem ritmo a partir dos aspectos psíquicos que as sustentam. Esse processo deve ocorrer com todas as crianças - mesmo quando apresentam problemas de desenvolvimento, como no caso das deficiências mentais, sensoriais, motoras – para que o corpo e suas funções permitam uma boa adaptação às demandas da vida quotidiana. Sem os aspectos psíquicos, essas funções não adquirem sentido próprio nem autonomia; podem até ser realizadas via treinamento, condicionamento, mas é sempre outro que tem que exercer o controle, enquanto o lugar da criança permanece sendo o de objeto.

Essa constatação tem conseqü- ências clínicas. Para a clínica psicanal ítica propriamente dita, sabemos que Freud (1895/1974e) partiu daí – da importância desse infantil na sintomatologia neurótica – para criar a “técnica psicanalítica”; essa “cura pela palavra” como ele passou a chamá-la, e que consistia em ir além dos sintomas corporais (na época, tratava-se principalmente de casos de histeria) e além do discurso consciente produzido egoicamente pelos pacientes. Freud propõe a associação livre, para dar lugar aos momentos em que “somos falados”, às forma- ções do inconsciente, que permitem ao sujeito aproximar-se desse saber que o constituiu, foi recalcado, mas constitui sua base psíquica.

Pode-se dizer que essas conseq üências estão presentes em qualquer clínica que se proponha a trabalhar com pessoas. Pois, se nossa história nos “fabrica” como somos, se nosso corpo se constrói numa relação com outro que nos significa, pelo menos dois pontos são a destacar:

1. há um sujeito presente a cada vez que há uma queixa envolvendo questões psíquicas ou funções, com sintomas que aparecem no psiquismo, no corpo, na linguagem (falada, escrita, lida) ou no comportamento;

2. essa queixa é dirigida a algu ém colocado em um lugar de saber, exatamente como os primeiros Outros, das funções materna e paterna, que tudo sabiam e decidiam por nós. Portanto, toda clínica implica no mínimo 3 elementos, a saber:

1. um sujeito que não sabe sobre si, ou não sabe lidar com o que o acomete, e que demanda;

2. um sujeito que é suposto tudo saber e que é chamado a responder a essa demanda – lugar onde se situa “o especialista”;

3. a relação transferencial que aí se trama – considerando os dois primeiros elementos já citados, tendendo a repetir as condições do processo de subjetivação vivido – quer se a considere ou não.

Cabe ao clínico fazer sua escolha: direcionar seu trabalho para o sujeito presente além da função de que se queixa; advertido sobre a demanda e o lugar que lhe é dado, mesmo que não queira, na relação terap êutica. Cabe a ele decidir qual posi- ção tomará diante desse lugar de “especialista” e como manejará seu saber: tanto pode ocupar realmente esse lugar e seu saber virá de uma posição de certeza e verdade absolutos; quanto pode ocupar essa posi- ção relativizando-a com limites e dando lugar à fala e ao desejo do paciente. Ele pode desconsiderar essas questões e centrar-se na correção da função, por exemplo, respondendo literalmente ao que lhe é pedido: uma correção, uma reparação. Pode, por outro lado, levar em conta a subjetividade de seu paciente e engajá-lo na proposta terapêutica, conduzindo-a na medida do sujeito e de seu desejo que aí estão em jogo. Qualquer que seja o caso, há uma responsabilidade envolvida na direção do tratamento, pela qual eticamente todo clínico é chamado a responder.

A Psicanálise como eixo de embasamento teórico para um trabalho interdisciplinar permite um direcionamento clínico que dá lugar ao sujeito, ao desejo e à possibilidade de criação. Neste trabalho, os conceitos de escuta, transferência, inconsciente, castração, juntamente com as técnicas da associação livre para os adolescentes e adultos e do brincar com as crianças, são dispositivos fundamentais tanto para a direção do tratamento, seja qual for a área instrumental, quanto para as discussões clí- nicas. Essas discussões, por sua vez, ao terem como eixo o paciente como sujeito desejante, podem ser momentos fecundos de reflexão sobre a prá- tica de cada um e de reinvenção da clínica.

 

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Endereço para correspondência
e-mail: ledber@terra.com.br

Recebido em março/2007
Aceito em maio/2007

 

 

* Psicanalista, membro fundador da Associação Psicanalítica de Curitiba, analista membro da Association Lacanienne Internationale, professora titular da PUC PR

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