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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.23 São Paulo dez. 2007

 

DOSSIÊ TERAPÊUTICA E ESTÍLOS DA CLÍNICA

 

O lúdico no atendimento de crianças com deficiência: uma reflexão sobre a produção cultural na infância1

 

The ludic in the assistance of disabled children: a reflection on the cultural production during childhood

 

El juego en el atendimiento direccionado a niños descapacitados: una reflexión de la producción cultural en la infancia

 

 

Marisa Takatori*; I; Edda Bomtempo**; II; Fernanda de Souza Dalti Pereira***; I; Luana Wang Lin***; I; Luciana Orui Bansi***; I; Ricardo Lopes Correia ***; I

I Centro Universitário São Camilo
II Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo propõe discutir as atividades que a criança com defici ência realiza durante o processo de terapia ocupacional vistas como produções singulares de cultura e expressão da subjetividade. Para tal, numa investigação onde os campos da subjetividade e do simbolismo estão presentes, utilizou material da experiência clínica com crianças que têm deficiência coletado da leitura de prontuários e dos registros das observa ções vivenciadas pelo terapeuta num diário de campo. Verificou- se a possibilidade de uma reflexão sobre a consideração cultural das produções das crianças, como favorecedoras do seu reconhecimento e da sua participação ativa na realidade compartilhada.

Palavras-chave: Criança com deficiência, Lúdico, Brincar, Cultura, Terapia ocupacional.


ABSTRACT

The present article proposes the discussion of the activities which the disabled child performs along the process of occupational therapy, viewed as unique productions of culture and expression of subjectivity. In order to achieve this, material from clinical experience with disabled children was collected in a field diary from medical patient charts and records of the observation experienced by the therapist in an investigation where the aspects of subjectivity and symbolism are present. It was verified, then, the possibility of a reflection on the cultural aspect of children’s productions as favoring their acknowledgment as well as their participation in the shared reality.

Keywords: Disabled child, Ludic, Play, Culture, Occupational therapy.


RESUMEN

El artículo propone debatir las actividades que el niño discapacitado realiza durante el proceso de terapia ocupacional observadas como producciones singulares de cultura y de expresión de la subjetividad. Para esto, en una investigación en dónde los campos de la subjetividad y del simbolismo están presentes, se ha utilizado el material de la experiencia clínica con niños discapacitados que fueron colectados de la lectura de los historiales médicos y de los registros de las observaciones vivenciadas por el terapeuta en un diario. Se ha verificado la posibilidad de una reflexi ón sobre la consideración cultural de las producciones de los niños como fuentes favorables de su reconocimiento y de su participación activa en una realidad compartida.

Palabras clave: Niños discapacitados, Lúdico, Jugar, Cultura, Terapia ocupacional.


 

 

Introdução

As atividades que se evidenciam na experi ência clínica na terapia ocupacional impelem-nos a pensar no processo do fazer, nos fazeres cotidianos, no fazer nada, no não fazer dos sujeitos atendidos. Diante das crianças, somos capturados pelas discussões sobre o que fazem, como fazem, quando fazem e com quem fazem as coisas, e o brincar e os brinquedos sempre estão no cenário dessas discussões. Para a criança com deficiência há o entrela çamento das condições físicas com os lugares sociais a ela atribu ídos e construídos nas relações sociais, o que nos convoca a pensar no desenvolvimento considerando esses aspectos no encontro entre o sujeito em constituição e o ambiente.

Apresentamos neste artigo uma discussão sobre as atividades que a criança com deficiência realiza durante o processo de terapia ocupacional; atividades vistas como produções de cultura e experiências de manifestação da subjetividade. Este trabalho aborda uma das reflexões decorrentes de um Projeto de Iniciação Científica2, em desenvolvimento, realizado por uma docente e alunos do curso de Terapia Ocupacional.

Este trabalho discute a importância do brincar com crianças com deficiência física, considerando o desenvolvimento do brincar e a ênfase dessa atividade no cotidiano da criança, objetivos a serem incluídos nos cuidados a ela oferecidos, visando facilitar sua participação social. O projeto conta com quatro alunos de diferentes semestres, que decidiram participar por diferentes motivos, tais como: ter a oportunidade de presenciar atendimentos de terapia ocupacional e deles participar; engajar-se em um trabalho sério, ao qual pudessem se dedicar; entender o trabalho clínico; vivenciar a responsabilidade com relação aos pacientes e aos atendimentos; exercitar a interpretação e a elaboração de textos científicos; apropriar- se de uma linguagem técnica como preparação para a formação profissional e aprender a trabalhar em grupo.

Cada aluno, com suas habilidades e repertório cultural de atividades, usando o aprendizado em cursos extracurriculares sobre técnicas de atividades artesanais, brincadeiras e jogos, música, teatro e outros, enriquece sua prática e participa ativamente das ações na clínica, trazendo conhecimentos, novas idéias e sugest ões de atividades, sendo, muitas delas, compartilhadas e propostas aos pacientes.

Fazer atividades, aprender atividades, estudar a história das diversas técnicas de atividades, conhecer as atividades do próprio contexto familiar e participar da transmissão transgeracional desse repertório cultural fazem parte da formação do terapeuta ocupacional e ampliam as possibilidades de ações quando na situação clínica. Para o aluno, articular conhecimentos conquistados ao longo da história pessoal àqueles que foram apropriados durante a formação profissional, e produzir conhecimentos, alimentando a história de uma profissão, tornam-se um desafio, na medida em que as experiências vividas podem tocá-los e fazê-los refletir sobre o próprio ser humano e suas atividades. Ao mesmo tempo, essas experiências fazem-nos ter consciência da responsabilidade e dedica ção que a profissão exige, uma vez que cuidar do outro não é uma tarefa simples e nem fácil. É um aprendizado conhecer os próprios limites e perceber que cada um tem sua individualidade expressa no seu fazer.

Para o professor-terapeuta também se trata de um desafio. Produzir conhecimento e ensinar durante sua atuação como terapeuta ocupacional é uma tarefa não fácil e de grande responsabilidade. Um desafio marcado pelo reconhecimento e pelo agradecimento, que tornam essas tarefas uma vivência de muito prazer. Como observa Minayo (1994, p. 17), “é a pesquisa que alimenta a atividade de ensino e a atualiza frente à realidade do mundo”.

Inicialmente localizaremos, teoricamente, nosso ponto de partida para realizar esta discussão e, em seguida, recorreremos aos acontecimentos da experiência clínica3 que mobilizaram esta articula ção entre produção cultural, atividades constituintes de uma relação terapêutica e o fazer da criança.

O material originário da experiência clínica utilizado para esta discussão foi resgatado dos registros em prontuário das crianças atendidas na terapia ocupacional, que constitui uma das fontes documentais (Phillips, 1974) para realização da pesquisa. Outro recurso utilizado tem sido o diário de campo, que guarda, de modo minucioso, as descrições das observações dos atendimentos das crianças, falas, gestos, atividades, materiais utilizados e também as impressões sobre a experiência vivida por aqueles que estão realizando a pesquisa.

Numa investigação em que os campos da subjetividade e do simbolismo estão presentes, compreender as atividades humanas e seus sentidos só se torna possível através de um caminho metodol ógico que considere tais variáveis. Nesse caminho, as etapas da investigação e o processo da análise colocam, necessariamente, o pesquisador numa relação subjetiva com o fenômeno social investigado (Takatori, 1999).

A partir dos acontecimentos na clínica e dos referenciais teóricos apresentados adiante, propomos tecer a discussão sobre a quest ão que tem mobilizado o grupo neste momento da pesquisa: olhar as atividades dessas crianças – nesse caso, aquelas realizadas durante os atendimentos de terapia ocupacional – como produções culturais singulares realizadas no cotidiano.

 

A criança: seu locus, sua produção

Aos pensarmos na criança remetemo- nos à obra clássica de Philippe Ariès, História social da criança e da família (1973/1978), que traz como tese decifrar os lugares assumidos pela criança e pela família nas sociedades tradicionais e as mudanças advindas com as sociedades industriais. Na sociedade medieval, a criança era pouco vista e quando passava o per íodo de maior dependência da mãe ou ama, logo era misturada à vida coletiva dos adultos e, sem experimentar um período de passagem, tornava-se a companheira natural do adulto. Nessa convivência precoce em meio à diversidade etária, sua aprendizagem se dava no interior dos acontecimentos cotidianos da sociedade. O sentimento da infância, isto é, a particularidade infantil, que distingue a criança do adulto ou do jovem, não existia nessa época. Já nos séculos XVI e XVII, decorrente de uma moralização da sociedade mudança relacionada ao fenômeno burguês, houve o reconhecimento da importância da educação, destinada especificamente às crianças e aos jovens.

Uma vez concebida como algu ém que necessitava de um preparo especial antes de se juntar aos adultos, a criança foi retirada desse convívio precoce para ingressar na escola. Nesse período, emergiu um novo sentimento da infância, a “paparicação”, tal como foi nomeado por Ariès (1973/1978), em que a criança era vista pela sua graciosidade, ingenuidade e pelo divertimento que causava ao adulto. Mas, ao final do século XVII, um outro sentimento da infância inspirou as preocupações, até hoje presentes, referentes ao desenvolvimento mental e moral da criança. Do século XVIII até o momento, a criança passou a ter um lugar central dentro da família. Mudanças de atitudes com relação às crianças são verificadas no decorrer da história dos homens, marcando diferentes representações de infância a partir dos diferentes discursos e posicionamentos sociais sobre essa etapa da vida. A concepção de criança que necessita ser preparada para o ingresso na vida adulta por vias disciplinares, há quatro séculos, persiste modificada pela necessidade de as crianças estarem, segundo o aspecto etário, dentro de um espectro de habilidades e capacidades esperadas. A criança deve estar adequada ao que dela se espera em cada faixa etária. No processo de desenvolvimento, a idéia de progresso e de evolução levou à sistematização dessa etapa do ciclo vital, determinando uma seqüência ordenada de um progressivo aperfeiçoamento de habilidades e aquisições, caracterizando a concep ção de criança normal, aquela esperada em termos de aquisições motoras, sensoriais, perceptuais e de habilidades psicossociais segundo cada faixa etária.

Mas essa concepção de desenvolvimento linear é questionável, como observado nas próprias crianças que nos apontam seus diferentes ritmos de desenvolvimento. O discurso da criança como um ser em desenvolvimento, que vive momentos significativos do processo maturacional, pode acabar sendo usado para escamotear a idéia reducionista da criança que não está pronta. Mas o que a sociedade dela espera? A criança não está pronta para o quê? Nesse sentido, pensamos que a expectativa social acerca da criança coloca-a, muitas vezes, num lugar de pouca autonomia diante de seu próprio momento de desenvolvimento. Desde muito cedo, a criança é convocada a corresponder às expectativas sociais, incluindo aquilo que profissionais da saúde e pessoas leigas esperam em termos do seu desenvolvimento orgânico. Apesar das contribuições de Ariès (1973/1978) para essa leitura histórica acerca da criança e da infância, a idéia de uma progressão e evolução maturacional durante essa fase da vida fica ainda a certa distância de uma análise sóciohist órica do processo de desenvolvimento (Legnani & Almeida, 2004; Perrotti, 1990).

Quando se fala em produção cultural, a inexistência ou insuficiência de análise política e histórica quando o discurso se refere à criança continua a se evidenciar (Perrotti, 1990). Permeada de uma atmosfera naturalista, freqüentemente, a leitura que se faz da criança e daquilo que acontece em relação a ela coloca-a à parte das conseqüências decorrentes das mudanças sociais ao longo do tempo. É como se a criança fosse um ser em desenvolvimento, no sentido do inacabado e, portanto, não pronto para ser considerado alguém em relação aos acontecimentos da sociedade, isto é, alguém como peça fundamental da engrenagem do modo de produção capitalista.

Poderíamos pensar que não somente a criança encontra-se em desenvolvimento e traz em si um tom de inacabado, mas o ser humano que, ao longo de sua jornada, parte da dependência à independência com a marca da incompletude. Essa independ ência nunca é plenamente alcançada, já que o homem não vive isolado, mas é interdependente de outros, em uma sociedade, tal qual nos afirma Winnicott (1963/1983). Ent ão, por que associar à criança essa idéia do inacabado? Vemos aqui um outro sentido diferente daquele usado por Winnicott. O inacabado não como um estado contínuo que move o ser humano para o desenvolvimento e transformações próprias, mas como uma insuficiência que requer determinado tempo para a correção.

Segundo Perrotti (1990), a concep ção de criança que leva em considera ção somente a perspectiva etária e a do organismo em formação, parece determinar a essa criança sempre uma falta a ser ainda completada: “a criança é sempre alguma coisa imperfeita que necessita ser lapidada, educada” (p. 12). Para esse autor, a criança, nesse sentido, pode se aproximar de grupos totalmente marginalizados da vida política e sociocultural como as pessoas com doença mental, os índios, os analfabetos e, por nossa conta, acrescentamos, as pessoas com deficiência. Deparamos, nesse momento da reflex ão, com uma importante questão: a criança com deficiência, nessa lógica, é vista como a falta na falta? Por exemplo, a criança que não anda: o não andar é a falta que se encerra na criança, vista como aquela que falta ser completada tal qual um adulto.

A visão reducionista acerca da criança também se verifica em relação às pessoas com deficiência. Nos anos 60 do século passado, o modelo médico ganha visibilidade graças às suas considerações sobre as pessoas com deficiência, vistas a partir de suas dificuldades como casos patológicos que requerem um diagnóstico e um tratamento centrado sobre o indivíduo, mais especificamente sobre as funções alteradas. Circunscrever a situação da pessoa que tem alguma deficiência à dimensão orgânica leva a não dar atenção às implica ções de outras ordens, como a dimensão social que dessa situação decorre. Há uma encruzilhada onde a doença ou a diferença física se encontram com as normas sociais. Ter uma deficiência é uma situação não somente da ordem do corpo e de suas funções, mas uma situação social (Plaisance, 1984).

As crianças com deficiência, em especial as de ordem física, encontram-se no grupo de pessoas estigmatizadas que têm caracter ísticas distintas imediatamente evidentes, colocando-as na condição do desacreditado (Goffman, 1982). A aparência física diferente, os movimentos do corpo não usuais, a comunicação verbal expressa por sons incompreensíveis são exemplos de características de algumas pessoas que podem, facilmente, até por sua visibilidade, desviar ou absorver toda a atenção do outro para aquilo que é o não esperado e explicitamente diferente, não restando olhar para outros atributos que elas possam ter. Às vezes, não raras, os atributos relativos ao estigma parecem multiplicar-se em outras caracter ísticas que nem são da pessoa.

Se há uma dificuldade para olhar a pessoa com deficiência a partir do que ela é, associada ao fato de essa pessoa “ainda” ser uma criança, pensamos como pode ser considerado aquilo que elas fazem? Quando se fala em cultura, a criança continua no lugar daquela pessoa que não está pronta. Mas, contraditoriamente, vemos que, se de um lado não está pronta para produzir, de outro, é considerada socialmente pronta para receber uma cultura que vem de fora, de experiências das quais não participa, muitas vezes, sem abertura para aquilo que possa ser próprio. “Assim, enquanto faixa etária ‘incompleta’, a criança deve ser a consumidora passiva de produtos culturais elaborados para ela pelo grupo social, a fim de que possa tornar-se um ser humano evoluído, ‘completo’, vale dizer, adulto” (Perrotti, 1990, p. 16).

A criança consome produtos culturais e a cultura fica reduzida aos produtos e objetos que podem ser mercantilizados. Perrotti (1990) aponta que a cultura torna-se objeto opaco e sem vida, pois não se conecta àquele que a produz, mas ao tipo de sistema de produção. A cultura, tomada como conjunto de produtos acabados a serem transmitidos para as crianças, inverte a lógica: as coisas passam a ter um movimento quase vital e as pessoas são vistas como coisas. Toda cultura realiza produtos. A questão problemática é o deslocamento dos produtos do lugar de objetos da ação humana para o dos sujeitos do processo histórico.

Estamos diante de uma atualidade na qual o tempo encontra-se a serviço do consumo de produtos que foram produzidos, sem levar em conta o tempo de quem os produziu, mas a máxima produtividade que o mercado mundial exige das sociedades capitalistas. O tempo não está mais relacionado às experiências humanas vividas. E a criança ingressa, gradualmente, desde seu nascimento, nessa realidade externa, muitas vezes somente respondendo às exigências externas, isto é, desabrigada da própria experiência.

Na análise das produções textuais do pensador Walter Benjamin, Galzerani (2005) aponta para os questionamentos desse crítico acerca da sociedade moderna capitalista fundada no consumo e voltada para a dimens ão do ter e não do ser. Uma sociedade pautada no que seus membros têm e não no que são e podem, a partir daí fazer pelo grupo, corre um grande risco de ter a saúde da sua coletividade esgarçada. Como diz Winnicott (1967/1996), a saúde social depende da saúde dos indivíduos que a compõem; saúde é “alcançar uma certa identificação com a sociedade sem perder muito de seus impulsos individuais ou pessoais” (p. 21). O autor enfatiza, em sua obra, a constituição do humano através de uma longa jornada na qual tempo e espaço são marcadores de um processo de constituição de uma forma de ser que leva a uma forma de fazer. Estamos falando da possibilidade de o ser humano ser e fazer, e não da dimensão do ter ou não ter.

Fazer remete à ação, ao movimento humano de criação daquilo que, muitas vezes, já existia, mas que, ao ser feito de novo, assume um aspecto diferente pela singularidade de quem fez. Arendt (1958/2005), ao falar da ação humana, enfatiza a diferença entre os homens, condição básica da própria ação. Se não houver diferen- ças, a ação perde sua razão de exist ência e importância para comunicar ao outro quem é aquele que agiu.

Compreender a cultura como produções distantes e distanciadas de quem as produziu é prescindir das atividades humanas. A “concepção redutora da cultura que vê nas obras o elemento último e indispensável do processo cultural; que concebe o objeto separado do sujeito” (Perrotti, 1990, p. 17), denuncia a não considera ção do homem como autor e produtor da própria cultura, e a exist ência de uma cultura dominante, dada e única.

Nesse cenário, a criança com deficiência corre, duplamente, o risco de não se reconhecida pelo que faz, uma vez que seu fazer está associado ao estranho, ao anormal, ao diferente, à ausência. A criança com deficiência coloca-nos, continuamente, diante do desafio de exercitar nosso olhar para além daquilo que nos é socialmente dado como familiar e de encontrar, nas diferenças, a singularidade de cada sujeito. Como diz Arendt (1958/2005), os seres humanos são diferentes, mas iguais o suficiente para poder compreender uns aos outros. Mas é preciso saber se há abertura para essa compreensão e reconhecimento das diferenças expressas nas ações e produções.

Na terapia ocupacional, referimo- nos a essas ações e produções como atividades, instrumentos dos procedimentos do terapeuta. As atividades são consideradas como a materialidade colocada em processo de transformação pelo sujeito: as tintas derramam-se sobre o papel; o brinquedo manipulado vive pelos movimentos que lhe são emprestados; o ar se move ao ser soprado; os fios colados sobre o papel transformam- se em nuvens; o espaço modifica- se com o corpo que nele se move, entre outros exemplos. Isso implica que, ao falarmos de atividades, necessariamente estamos nos referindo ao sujeito que se posiciona de modo singular diante do que a realidade externa lhe oferece em termos de material, espaço e tempo, e que utiliza a seu modo.

Fazer atividades é fazer parte da produção cultural de um grupo social. Tomamos neste trabalho a cultura em seu sentido de pluralidade, como explica Certeau (1995), compreendendo as atividades como express ão e construção dessa cultura no cotidiano, que se mantém organizado socialmente, mas não de modo monolítico, ao contrário, permite que a criatividade dos membros do grupo social possa proliferar e expressar práticas singulares de sujeitos reconhecidos pelos sistemas de referências sociais vigentes.

Conforme Certeau (1995), o homem comum, através das artes de fazer, apropria-se do que lhe é apresentado pela cultura já presente, anterior à sua existência como sujeito; contudo, essas pessoas comuns, no seu dia-a-dia, fazem as coisas com uma criatividade que dribla uma cultura que se propõe única e dá origens às formas próprias de fazer. Esse autor nos faz ficar atentos, não aos produtos culturais oferecidos numa determinada sociedade, mas aos gestos de seus usuários que operam sobre aquilo já dado. O gesto, para esse autor, é um ato produtor que leva às criações anônimas, diferentes maneiras de fazer que compõem a cultura na vida comum e cotidiana.

Diante das várias circunstâncias experimentadas no cotidiano, a brincadeira é uma delas, na qual a criança interage com um cenário e ajuda a construí-lo com sua participação ativa. É uma atividade que se destaca na infância com seu papel facilitador do processo de socialização, visto que permite à criança a apropria ção e o exercício dos códigos culturais e sociais. Consideramos essa apropriação um processo no qual a criança assume uma postura ativa diante das coisas que lhe são apresentadas, conhecendo, explorando e criando a partir do já existe. Assim como nos diz Bomtempo (2005), ao se referir ao brinquedo como um pedaço de cultura colocado ao alcance da criança, um parceiro na brincadeira. O brinquedo, sendo esse parceiro, não se trata de um objeto que impõe a cultura, mas de um objeto que está a serviço do movimento que leva a criança à ação e à criação de sentidos nessa experiência cultural.

Brincadeiras e outras atividades são colocadas nessa discussão como formas de comunicação do sujeito, no sentido da apresentação de si e da aproximação com o outro. Tal qual nos diz Winnicott (1971/1975), primeiro ser para vir depois o fazer, tomamos essa forma de compreender o ser humano em seu desenvolvimento para fazer uso das atividades na clínica da terapia ocupacional: as atividades são partes constituintes da relação terapêutica e são instrumentos dos procedimentos do terapeuta ocupacional. Esse procedimentos visam conhecer o sujeito, alvo dos cuidados, aproximar- se dele e provocá-lo em seu fazer, no sentido do ensinamento; da proposição de desafios; da apresentação de diferentes materiais e ferramentas para fazer coisas; da adaptação do espaço, materiais, instrumentos e técnicas de atividades para que o fazer possa acontecer; do estar presente enquanto ele faz; de ser testemunha de suas possibilidades no fazer a partir de sua singularidade. Aqui nos referimos ao fazer como gesto criativo, portanto, aquele que é genuíno por vincular-se à existência de um sujeito.

“Compreender o ser humano como ser criativo é compreend ê-lo como ser que acontece por meio do gesto e que acontece em meio à liberdade” (Safra, 2004, p. 59). Essa criatividade não é, necessariamente, aquela relacionada com o fazer artístico, mas à ação como possibilidade do acontecer e da singularidade de si mesmo.

 

Fábrica de brinquedos e outras atividades: do lúdico na clínica com a criança à reflexão da sua produção cultural

Quando falamos da clínica com a criança, referimo-nos à experi ência na terapia ocupacional com crianças que têm deficiência física associada ou não às dificuldades cognitivas. Neste trabalho, iremos nos remeter aos atendimentos de três crianças que estão fazendo terapia ocupacional: Hot Park, 8 anos, Isabela, 4 anos, e XLR-84, 6 anos. Essas e outras crianças, além de adolescentes, adultos e idosos, constituem a população atendida na clínica escola da instituição de ensino onde a pesquisa está sendo realizada. A clínica escola é uma instituição de caráter filantrópico, que tem uma proposta de serviço ambulatorial em reabilitação, oferecendo atendimentos conforme as necessidades dos pacientes, de terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicologia, fisioterapia, enfermagem, farm ácia e nutrição.

Não pretendemos falar do processo terapêutico dessas crianças, mas utilizar algumas de suas passagens para servir de cenário e relatos de experiências subjetivas que possam subsidiar a discussão, para nós, um desafio: pensar em cultura, produção cultural e na criança, num contexto em que a razão para essas crianças estarem nele é, num primeiro momento, a dificuldade para fazer coisas no dia-a-dia e a expectativa, especialmente a familiar, de melhoras no desenvolvimento das habilidades físicas.

 

Cenas: ‘Fábrica de Brinquedos’

Em uma das supervisões, conversávamos sobre materiais recicl áveis. Esse assunto foi levantado, pois uma das alunas levou um pequeno helicóptero que havia feito com sucatas. Decidimos, ent ão, realizar um encontro para criar e fabricar brinquedos com as crianças. Estabelecemos um cronograma para organizar o encontro e dividimos tarefas: quais brinquedos cada um de nós faria para que fossem apresentados às crianças. Nomeamos o encontro de Fábrica de Brinquedos. Essa idéia surgiu também por uma necessidade de reunir e apresentar as crianças atendidas e observar, durante a proposta, como se daria o entrosamento, compartilhamento social e expressão da subjetividade de cada um no contexto do grupo. Em um primeiro momento, pensamos em fazer a Fábrica de Brinquedos com as crianças atendidas, e então propor uma brincadeira de roda para que Isabela também pudesse participar, por ém, após conversas, concluímos que Isabela estava em um momento do desenvolvimento diferente dos meninos, e isso poderia trazer algumas dificuldades na compreensão das solicitações durante o ensino das atividades propostas. Foi decidido que apenas XLR-8 e Hot Park participariam. Os alunos e a terapeuta selecionaram algumas brincadeiras, criações e outras situações que estabelecessem uma aproximação entre Hot Park e XLR-8.

Dias antes da proposta, apresentamos Hot Park e XLR-8, que se cumprimentaram timidamente, porém, no dia da Fábrica de Brinquedos, antes de entrarem na sala, já estavam conversando e mostrando-se ansiosos para o início. As mães foram avisadas com antecedência sobre o atendimento em conjunto e permitiram que assim fosse feito.

Unimos os horários dos atendimentos dos meninos. Montamos na sala uma exposição com os brinquedos, feitos por nós, para que eles pudessem olhar, experimentar, brincar e escolher um para fabricar. Antes que as duas crianças entrassem na sala, separamos e organizamos todos os materiais necessários sobre a mesa e dividimos a sala em ambientes: um ambiente para a exposição, outro para a criação e outro de pintura.

Conversamos com Hot Park e XLR-8 sobre museus e o que eles sabiam sobre estes. Eles falaram o que sabiam e mostraram-se eufóricos para entrar e começar as atividades. Na sala, os dois olharam os brinquedos um a um: o barco a vela feito de retalho de tecido, rolha e embalagem de margarina; o vai-e-vem feito de garrafa pet; o bilboquê feito também de garrafa pet, barbante e bola de meia; o helicóptero com hélice que gira confeccionado com garrafa pet pequena, palito de sorvete, palito de dente e lápis; a tartaruga com rodas feita de garrafa pet, lápis e embalagem de iogurte; o telefone de lata e barbante e o peão feito de vareta de bambu, jornal e adornado com tinta e purpurina. Hot Park e XLR-8 experimentaram e brincaram com todos os brinquedos, alguns deles com nosso auxílio, explicando como funcionavam e também brincando, até decidirem qual brinquedo gostariam de fabricar. Os dois escolheram o peão. Os alunos orientaram Hot Park e XLR-8 na fabricação. Cada qual fez e pintou o seu peão à sua maneira. Mostraram prazer em manipular e ver o produto final de suas obras.

Para terminar o encontro, assistimos a um filme que se passou numa televisão feita de caixa de sapato, confeccionada por um dos alunos. O filme era uma história cujos personagens éramos nós: crianças, terapeuta ocupacional e alunos. A história foi se passando através de uma extensa tira de papel enrolada em varetas de bambu dentro da caixa de sapato que serviu de estrutura para imitar uma televisão. A sessão de filme foi acompanhada de pipocas, feitas com o auxílio de Hot Park e XLR-8, na cozinha ao lado da sala de atendimento, e de refrigerantes.

Ao denominar as atividades Fábrica de Brinquedos, não tínhamos a intenção de nos referir ou remeter à noção de fábrica, tal qual surgiu nas sociedades pós-Revolução Industrial, com a racionalidade imperando sobre o sistema de produção e com a negação da possibilidade de haver nesse espaço uma produção singular. Ao contrário, a experiência vivida caracterizada pelo sujeito que faz atividades, portanto, humanas, foi a proposta lançada às crianças, reafirmada não só pelo processo observado do fazer de Hot Park e XLR-8, mas nas palavras tais quais apareceram quando XLR-8 respondeu sobre o que viria a ser uma fábrica de brinquedos: “É pra brincar”. Além de brincar, perguntamos o que mais iríamos fazer, uma vez que a proposta chamava-se fábrica. XLR-8 logo acrescentou: “Construir”.

Fazer coisas implica diversos acontecimentos que resultam em produtos palpáveis ou não, e exige do sujeito que faz um conjunto de investimentos da ordem do corpo, da mente e da psique, geralmente, em contexto em que a existência de outras pessoas torna a experiência particular, pois requer que esses investimentos aconteçam na presença de um outro. Portanto, fazer coisas não é simples. Quando o fazer implica produ ção do sujeito como uma criação original, mantendo a riqueza de uma comunicação pessoal, podemos compreender essa produção como experi ência saudável e potencialmente transformadora. Pareceu-nos que XLR-8 e Hot Park viveram essa ordem de experiência. Ver as coisas que fizeram como produções e alimentos de uma cultura requer uma postura de quem presencia esse fazer, no caso nós adultos, de cuidado para ensinar e compartilhar a experiência, e não esperar ou impor aquilo que está em nós e não nas crianças.

Quando lembramos dos comentários da mãe do XLR-8 sobre as expectativas do filho diante da proposta da Fábrica de Brinquedos e das histórias que XLR-8 contou sobre o que fizemos nesse dia, remetemo- nos à figura do narrador apresentado por Walter Benjamin (1936/ 1994). O narrador é aquele que, vinculado à tradição oral, usa a própria experiência ou a de outro para contar, isto é, narrar e partilhar essa hist ória vivida com o ouvinte. Narrar é uma forma artesanal de comunicarse, pois os vestígios do narrador ficam impressos na sua narrativa, tal qual a mão do oleiro na argila do vaso.

 

Cenas: ‘Jogando Combate’ XLR-8

XLR-8 parece sempre ter pressa, e a pressa é expressa na sua narrativa. Outro dia, assim que avistou sua mãe na sala de espera, ao final do atendimento, contou sobre o que jogou, dizendo das bombas, da bandeira a ser protegida do adversário, de quem derrotou quem. Sua mãe mal conseguia falar conosco sobre uma dúvida acerca da terapia. XLR- 8 saiu da clínica contando ainda sobre o jogo. Afora a pressa que é expressa, muitas vezes, no seu fazer, podemos pensar em: o que é expresso? A matéria-prima da narrativa é a experiência vivida, portanto, ao narrar comunicamos e intercambiamos experiências. XLR-8 contou a sua mãe, avidamente e com entusiasmo, aquilo que ele viveu sem pressa. A pressa não foi observada ao montar o tabuleiro ou realizar as jogadas. Esse jogo requer um tempo longo e XLR- 8 ingressou nesse ritmo. Concentrado, atento e interessado, XLR-8 jogou Combate, aprendendo as regras e respeitando-as, na medida em que seu momento do desenvolvimento lhe permitia.

A narrativa é a possibilidade de permanência, para além do tempo e do espaço, da experiência vivida sob outras formas, através da memória, da oralidade e do encontro com o outro, ouvinte e testemunha da produ ção cultural no cotidiano de quem narrou.

 

Cenas: ‘Eu brinco desse jeito’

Isabela, diante do brinquedo de construção (Pequeno Engenheiro), olhava enquanto a terapeuta ocupacional montava uma pequena cidade com casas térreas, sobrados, ponte e igrejas. Mas Isabela quis pegar as peças, uma a uma, e dar para a terapeuta segurar e depois tomá-las de volta. A brincadeira se repetiu diversas vezes, acompanhada de gritos e gargalhadas. Isabela não quis montar uma cidade, afinal, o que são casas térreas e sobrados? Para ela, naquele momento, isso não fazia sentido e não provocou interesse. Seu jogo era outro, e pôde mostrá-lo à terapeuta.

Como diz Arendt (1958/2005, p. 193), “desprovida de um nome, de um ‘quem’ a ela associado, a ação perde todo sentido, ao passo que a obra de arte conserva sua relevância, quer saibamos ou não o nome do autor”. Em vários momentos dos atendimentos esse jogo apareceu; os gritos e as gargalhadas também. Não estamos falando de uma obra de arte que também constitui o acervo de uma cultura, nem de uma brincadeira tradicional, que já tem seu lugar na história da humanidade – como a amarelinha –, mas nos referimos a uma forma de brincar, uma das maneiras do fazer de Isabela. E é assim que essa criança preenche, com seu fazer, o espaço e o tempo correspondentes aos nossos encontros semanais.

Assim brinca Isabela, e de outros jeitos brincam Hot Park e XRL-8.

 

Cenas: ‘Eu faço, quero ser o ator’

Hot Park é habilidoso, tem boa pontaria e somente com uma mão encesta várias bolas. Num longo corredor ao ar livre, brincamos de arremessar bola, variando formas do arremesso e regras para catar a bola, como, por exemplo, pegar a bola no ar ou deixá- la bater uma vez no chão.

Hot Park jogava com a mão esquerda, quase sem uso da mão direita, que tem alterações no movimento. Hot Park mostrou ter direção ao jogar a bola, boa pegada, ótima coordenação e arremesso. Jogou de modo diferente da maioria? Diferente, mas eficiente para si pois se comunicou com o outro – e suficiente para poder brincar, agir e fazer naquele contexto.

Como diz Bomtempo (2004), “para usufruir das riquezas proporcionadas pelo jogo é indispensável que a criança seja dona da brincadeira” (p. 141), tal qual pensamos quando Hot Park colocou o papelão, que sobrou após recortar uma placa para sua atividade, na frente de seu rosto, segurando-o com as mãos, como se fosse a tela de televisão e ele, no centro, o ator. Ator de seu gesto, espontâneo e brincalhão.

Rolnik (1997) aponta para a articulação entre a cultura e a subjetividade, indicando uma compreensão da cultura como um modo de apropriação das coisas do mundo sob o crivo das transforma ções pessoais: “não há subjetividade sem uma cartografia cultural que lhe sirva de guia; e, reciprocamente, não há cultura sem um certo modo de subjetivação” (p. 29).

No entanto, observamos um movimento em que “a criança passa a ser somente o depositário de um mundo criado pelo adulto, sem ter jamais reconhecidos os seus direitos de intervir ativamente no processo sociocultural que lhe diz respeito” (Perrotti, 1990, p. 16). Pensamos que um caminho para que isso não se verifique, no âmbito da nossa prática com as crianças, é estar atento a esse movimento social e refletir sobre formas de favorecer a visibilidade da criança nos contextos socioculturais como, por exemplo, o espaço de um serviço – uma clínica de reabilitação voltado à saúde da população. As produções culturais não estão confinadas em museus e nem se restringem ao que, tradicionalmente, já tem seu lugar estabelecido numa cultura. Falamos de uma cultura que é transformada, quando a ela são acrescidas novas produções e formas de produzir coisas que vão surgindo nos fazeres cotidianos das pessoas responsáveis pela cultura.

 

Algumas considerações finais e uma pausa

Consideramos que a ação que cria o mundo e dá origem ao gesto criativo, presente no acontecimento do bebê que cria o seio materno a partir de sua necessidade e ação porque o outro estava lá no momento do inaugurar do gesto, permeia, na saúde, as atividades cotidianas de um sujeito. A ação e o gesto favorecem o acontecer de si-mesmo no mundo; quando essa ação encontra um outro devotado, humaniza-se e transforma-se em gesto (Safra, 1999).

Nossa ação, como terapeuta ocupacional, é intervir, a partir dos recursos que o sujeito tem e do desenvolvimento de outros, no sentido de favorecer sua participação nos contextos sociais e estabelecer formas de comunicar-se com os outros. É ajudá-lo a reconhecer-se e ser reconhecido pelos seus gestos.

Compreendemos que as propostas de experiências de atividades na terapia ocupacional favorecem o que singulariza essa criança em devir, tal qual nos aponta Safra (2004). Se brincar é fazer e ao fazer produzimos objetos, imagens, palavras, música, dança, movimento corporal, sons, desenhos, conhecimento, então brincar é manter, produzir e ingressar na cultura.

Voltamos ao desafio: ver e mostrar a produção de cada criança quando, muitas vezes, ela não é vista, por ser criança e por ter uma deficiência. É um desafio para todos, profissionais, estudantes, mães, pais, irmãos, amigos ou para aquele que vê a criança com deficiência num ponto de ônibus. O não fazer e o não fazer como as outras crianças são mais evidentes aos nossos olhos e chocam nossos desejos e expectativas.

Na clínica, presenciamos, muitas vezes, que o não ser visto provoca no sujeito um intenso sofrimento e um vazio que pode ser sentido como o si-mesmo, muitas vezes, expresso quando, continuamente, o paciente nos diz não saber fazer ou que o que faz é feio. Na situação extrema, o próprio sujeito não se vê. Favorecer à criança experimentar suas possibilidades e ver a si própria nas atividades são nossos propósitos. Um cont ínuo exercício de conhecer o outro, a criança, nos é exigido a cada encontro do processo terapêutico. Quando vemos cada criança e seu fazer, é uma experiência de encantamento e alegria, e mobiliza-nos nessa aposta de favorecer a criação singular de cada uma no que faz.

Expomos aqui algumas considera ções acerca dessa discussão inicial e, portanto, não pretendemos apresentar conclusões, mas apresentar nossas discussões em trânsito. Como diz Minayo (2004), “certamente o ciclo nunca se fecha pois toda pesquisa produz conhecimentos afirmativos e provoca mais questões para aprofundamento posterior ” (p. 27).

Nesse momento uma questão se evidencia: se na terapia ocupacional, que não foi diretamente aqui discutida, mas usada para falar da criança, da criança com deficiência, e da cultura, referimo-nos ao cotidiano, espaço e tempo em que as atividades daqueles que procuram ou são encaminhados à terapia ocupacional acontecem ou, na maior parte das vezes, deixou de acontecer, pensamos: aquilo que o sujeito faz na terapia, durante os atendimentos semanais, é também constituinte de um cotidiano, esgarçado pela doença, pelo sofrimento, pela internação ou após um acidente. A prática cotidiana do profissional entrelaça-se na prática cotidiana do sujeito atendido. Passamos a fazer parte da sua história, compartilhada em decorrência da necessidade de fazer essa terapia e outras. Pensamos que cabe uma discussão mais aprofundada sobre essa questão do cotidiano permeado por tratamentos. Compartilhamos uma história com o paciente, mas caminhamos para que esse sujeito prescinda do profissional para trilhar sua história em outros espaços socioculturais.

Ainda nesse momento, um desdobramento prático: decidimos fazer uma atividade com as três crianças – uma vez ao mês, compartilhando a programação com elas e pensar juntos nas diversidades, incluindo os diferentes momentos do desenvolvimento que cada um vive. A indicação de atividades procedimento do terapeuta ocupacional, voltada para as necessidades das crianças – será compartilhada com o grupo de crianças, favorecendo a autonomia e o exercício de buscar caminhos para lidar com as diferenças de idade, de sexo, de gosto, de habilidades, de desejos, de dificuldades.

E aqui fazemos uma pausa para continuar nosso cotidiano na clínica, instrumentalizados com esta discuss ão, e rever continuamente as teorias com nossa prática e esta com aquelas que vamos lendo, conhecendo, apropriando e construindo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mtakatori@uol.com.br
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Recebido em setembro/2007
Aceito em novembro/2007

 

 

NOTAS

1 Agradecemos às crianças e suas famílias que nos apoiaram na produção deste trabalho, a partir de suas e de nossas histórias, e autorizaram sua publicação
2
Este projeto está sendo desenvolvido na Clínica Escola do Centro Universitário São Camilo. É parte integrante do projeto de doutorado da docente, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da Universidade de São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra. Edda Bomtempo
3 Enfatizamos que as cenas clínicas aqui evidenciadas são de crianças em atendimento na terapia ocupacional que autorizaram verbalmente o uso desse material. Acrescentamos que obtivemos o consentimento dos seus pais, documentado no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que consta no projeto acima referido, aprovado pelo Comit ê de Ética e Pesquisa da instituição local de pesquisa, reafirmando os cuidados éticos necess ários na realização de uma investigação
4 Os nomes das crianças foram mantidos ou mudados conforme solicitação das famílias e crianças. Hot Park foi escolhido pela criança que diz ser o nome de um parque aquático. O nome da Isabela foi mantido a pedido dos pais desde o primeiro encontro, quando foi explicada sua participação no projeto. XLR-8 foi o nome escolhido por Guilherme para fazer refer ência à sua pessoa. Explicou que é o nome de um dos super-heróis alienígenas do desenho animado “Ben 10”A mãe pediu que fosse tamb ém referido o nome verdadeiro do filho

* Terapeuta ocupacional da Prefeitura do Município de São Paulo e docente do Curso de Terapia Ocupacional do Centro Universitário São Camilo, doutoranda do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
**Livre Docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
***Alunos do curso de Terapia Ocupacional do Centro Universitário São Camilo e do programa de Iniciação Científica

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