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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.13 n.24 São Paulo jun. 2008
DOSSIÊ
Modalizações nas posições subjetivas durante o ato de escrever1
Subjective's positions while someone writing
Posiciones subjetivas durante el acto de escribir
Claudia Rosa RiolfiI; Mical de Melo Marcelino MagalhãesII
IPsicanalista, docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise
IIProfessora da Rede Estadual de São Paulo. Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise
RESUMO
Escrito na articulação entre Lingüística, Psicanálise e Educação, o objeto do trabalho é o agenciamento da singularidade em textos escritos na escola. Demonstraram-se quatro modalizações deste agenciamento: (1) Sujeito esmagado pelos restos metonímicos do discurso do Outro; (2) Sujeito limitado a testemunhar sua alienação ao Outro cultural; (3) Sujeito que agencia as demandas da cultura escolar e uma ética própria; e (4) Subjetividade agenciada em tal grau que permite a construção de metáforas criativas. Para concluir, postulou-se que, na direção de uma escrita criativa, quem ensina a escrever precisa funcionar como uma " prótese" , suprindo funções ausentes no início do percurso.
Palavras-chave: escrita; subjetividade; ensino da língua materna
ABSTRACT
This paper was written in the relationship between Linguistics, Psychoanalysis and Education about the subjectivity administration in scholar tasks. It showed four modalizations: (1) Subject crashed by the metonymic rests of the discourse; (2) Subject who just testifies his alienation; (3) Subject able to compare cultural demands and his own ethics; and (4) Subjectivity administrated by the student in a level which is possible to recognize a creative metaphor in a creative way a prosthesis that supplies the student with functions.
Keywords: writing; subjectivity; mother tongue teaching
RESUMEN
Escrito en articulación entre la lingüística, el psicoanálisis y la educación, el objeto del trabajo es la administración de la singularidad en textos escritos en la escuela. Se demostraron cuatro modos de esta administración: (1) El sujeto aplastado por los restos metonímicos del discurso del Otro; (2) El sujeto limitado a atestiguar su alineación al Otro cultural; (3) El sujeto que administra las demandas de la cultura de la escuela y una ética propia; y (4) Administración de la subjetividad a tal grado que permite la construcción de metáforas creativas. Como conclusión, se postuló que, en dirección de una escritura creativa, aquel que enseña a escribir necesita funcionar como una "prótesis", supliendo funciones ausentes al principio del recorrido.
Palabras clave: escritura; subjetividad; enseñanza de lengua materna
Expressar singularidade demanda a coragem de expor a própria diferença em se tratando de escrever um texto. Para nós, aceder à escrita singular demanda um processo de ratificação da posição subjetiva daquele que escreve. Quem busca ser fiel a um estilo próprio ao escrever precisa se despir de algumas de suas máscaras sociais, tarefa difícil de ser cumprida em ambientes no qual o seu uso costuma ser pré-condição para o sucesso. Partindo deste pressuposto, interrogamos: Em que medida a expressão de um estilo singular é tarefa passível de ser cumprida por alunos de escola básica quando estão redigindo textos que foram solicitados por seu professor de Língua Portuguesa?
Para construir uma resposta a esta interrogação, tomamos cinco textos produzidos por alunos do segundo ciclo do Ensino Fundamental como objeto de análise, sustentada numa articulação entre a Lingüística, a Psicanálise e a Educação. Nossa hipótese de trabalho aponta para a possibilidade de correlacionar a presença de uma relação privilegiada do sujeito com a linguagem com a administração de elementos lingüístico-discursivos utilizados para compor o texto. Por este motivo, nosso ponto de partida foi o conceito de trabalho de escrita, processo por meio do qual alguém pode vir a escrever um texto que porte as marcas de sua singularidade (Riolfi, 2003).
Pressupondo a presença de um sujeito dividido, capaz de sustentar uma posição enunciativa "com predominância de retroação", as autoras postulam que o trabalho de escrita se instala sob a condição de que o escritor possa ler com estranhamento o que ele próprio escreveu e, por este motivo, consiga: (1) assumir que os significantes consagrados não bastam para nomear um "x" qualquer, isto é, perceber que o sentido tem limite; e (2) retroagir sobre o próprio dizer e calcular ações para alcançar determinado efeito de sentido pretendido, e, no caso, perceber que uma metáfora se prestaria melhor para aproximar a vontade de dizer daquilo que deve ser dito (Riolfi, Rocha & Andrade de Jesus, 2006).
Posto isso, é necessário esclarecer que o conceito de sujeito do desejo inconsciente como efeito de linguagem (Lacan, 1978a) foi fundante da reflexão empreendida por Riolfi, que partiu da noção de sujeito dividido, isto é, clivado pela ação de linguagem sobre um corpo em duas instâncias. Interessa-nos ressaltar que, para explicar como a submissão do sujeito à linguagem se dá, Lacan (1979) mobiliza três elementos (o ser, o outro e o não-senso). Ele descreve duas operações que resultam na submissão do sujeito ao significante, quais sejam: a alienação (a adesão a um significante qualquer) e a separação (o apartamento do sentido de um significante qualquer).
Assim sendo, se o primeiro movimento na constituição subjetiva consiste na apropriação, por parte do sujeito, do sentido oferecido pelo Outro, na separação ele os esvazia. Quando a separação se dá, o indivíduo deixa de se assujeitar a um significante qualquer que cai. Degradando o significante à sua condição de sem sentido, pode gerar uma solução inédita para suportar a angústia gerada pela convocação a escrever. Aqueles significantes aos quais o sujeito se agarrava, para se manter sempre no mesmo lugar, passam a não lhe servir mais. Em especial pela releitura de sua presença nas "quebras da escrita" (Riolfi, 2007) torna-se possível servir-se deles para dizer outra coisa (Riolfi, 2005).
Portanto, as modalizações nas posições subjetivas durante o ato de escrever a que nos referimos são variações entre os pólos da alienação e da separação experimentadas por quem escreve. Para abordá-las, a teoria polifônica da enunciação (Ducrot, 1987) mostrou-se um instrumento potente na análise dos textos escritos por alunos na escola básica. Naquela que ficou conhecida como a teoria polifônica da enunciação, o autor separa três instâncias que, simultaneamente, estão em jogo no momento da produção de cada enunciado: (1) a figura que representa o ser no mundo que realiza a enunciação: lambida (λ); (2) a figura que representa a instância responsável pela organização do discurso: locutor (L); e, finalmente, (3) a figura que representa as vozes que se manifestam em meio ao discurso do locutor: o enunciador (E).
Em outras palavras, Ducrot separa o responsável pela produção de um dado enunciado em três instâncias (figuras): o ser no mundo, o locutor e o enunciador. Um estudo preliminar permitiu compreender que o efeito de presença de singularidade nos textos está correlacionado com a administração competente das várias vozes que compõem a discursividade na qual o aluno está inserido.
Tomemos aqui um exemplo. Digamos que, em um telejornal, a âncora Maria disse a seguinte frase: O presidente Lula afirmou: meu ministro jurou ser inocente. Sem entrar em detalhes, teríamos aí um ser no mundo que consiste na âncora Maria (λ); o Presidente Lula como locutor (L); e o ministro como um dos enunciadores (E).
A polifonia é uma característica da linguagem. Ela ocorre tanto na fala quanto na escrita, querendo ou não o enunciador. Nossa tese é aquela segundo a qual a manifestação da singularidade demanda que aquele que escreve possa agenciar de tal modo sua divisão subjetiva que chegue a administrar as diversas vozes presentes em seu texto de maneira harmoniosa.
Assim sendo, tomando alunos da escola básica como sujeitos de pesquisa, visamos, a seguir, demonstrar que existem diferentes modalizações no que tange ao relacionamento de quem escreve com as suas palavras e com o próprio ato de escrever, quais sejam: (1) Sujeito esmagado pelos restos metonímicos do discurso do Outro; (2) Sujeito que se limita a testemunhar sua alienação ao Outro cultural; (3) Sujeito agenciado pelo aluno a partir do cotejamento das demandas da cultura escolar e de uma ética própria; e (4) Subjetividade agenciada em tal grau que permite a construção de uma metáfora criativa.
Para tal fim, em primeiro lugar, discorreremos a respeito da existência de diferentes modalidades de arranjo entre as palavras das quais o escritor se serve e o legado cultural no qual elas ganham a sua matriz de sentido. Em seguida, por meio da análise das peças selecionadas, demonstraremos como elas podem resultar em diferentes modalizações da posição subjetiva. Lembramos que, em estudo anterior, Magalhães (2007) já pôde chamar a atenção para dois aspectos a serem considerados por aquele que se dispõe a ensinar a escrever.
O primeiro refere-se à qualidade do laço que se estabelece entre quem ensina e quem escreve. Tendo em vista a construção de um modo de ensinar Língua Portuguesa que pudesse proporcionar a manifestação da singularidade, Magalhães ressaltou que, em uma relação de confiança, um sujeito pode vir a se autorizar a escrever textos livres das obrigações de corresponder biunivocamente ao modelo que ele supõe ser o que atenderia à demanda da instituição escolar.
O segundo, por sua vez, refere-se ao posicionamento do aluno e de seu professor frente ao que, no legado cultural, é considerado como sendo bom. Magalhães ressaltou que aquele que escreve pode escolher entre três posturas possíveis em relação aos textos utilizados como leitura prévia: (1) renegar o que já foi produzido e se inscrever numa lógica em que a individualidade é levada ao extremo; (2) aderir de maneira incondicional ao que já está produzido, considerado como sendo um modelo, sobre o qual não há trabalho possível de ser realizado, a não ser o da reprodução. Em termos de comprometimento com a cultura, assim como na postura de número um, o produto é nulo; e (3) utilizar-se dos ensinamentos que podem ser depreendidos da cultura para criar uma nova "regra" de produção que permita inovar, que favoreça o sujeito em sua singularidade, sem deixar, no entanto, de circular na cultura.
Estamos defendendo que, idealmente, o ensino de Língua Portuguesa deveria ser um instrumento que permitisse aos alunos escolher a terceira posição. O fazemos porque acreditamos que os produtos construídos no confronto entre o singular e o coletivo são os que efetivamente representam uma contribuição. Posto isso, estamos em condição de afirmar que não existe bom escritor em si, existe a possibilidade de trabalhar para construir um bom texto a cada vez, por meio do agenciamento harmonioso das várias vozes que constituem a memória discursiva daquele que escreve. É ao adotar cada uma das três posições possíveis diante da cultura que o sujeito produz diferentes tipos de texto.
Posições subjetivas que se depreendem em textos escritos por alunos da escola básica
As quatro possibilidades que passamos a apresentar de posicionamento do sujeito com relação ao saber consistem em diferentes matizes de ação sobre a linguagem que um sujeito se dispõe a operar ao escrever.
Estamos chamando a primeira de sujeito esmagado pelos restos metonímicos do discurso do Outro. Para exemplificar, trazemos um texto produzido em atendimento à proposta de escrever um texto na primeira pessoa do singular, narrando os eventos ocorridos desde que o protagonista recebeu um convite anônimo para ir a uma festa até a sua realização. Trata-se de uma produção de Roseli Marcondes,2 uma aluna da sétima série que, na peça que se segue, se faz porta-voz dos discursos que circulam na cultura de massa.
1. A minha história começa aqui
2. no meu quarto, que fica embaixo da
3. escada, dentro de um armário. Como
4. faço todos os dias, me levanto e confi-
5. ro embaixo da porta as correspondências
6. dos meus tios até ver uma carta ama-
7. relada com um adesivo dourado na
8. qual a colava e escrito atrás: "para
9. o sr. Harry Potter, rua dos Alfeneiros
10. n.º 4 no armário embaixo da escada."
11. Fiquei surpreso, porém, não dizia de
12. Quem era e de onde veio.
13. Eu levei o resto das correspondências
14. para os meus tios que estavam na
15. cozinha, e quando eu ia abrir o adesi-
16. vo, meu primo escandaloso arrancou-o
17. e deu para o tio Válter:
18. - PAPAI! PAPAI! O Harry recebeu uma
19. carta! O Harry recebeu uma carta!!!
20. - Quem iria escrever para você?! Di-
21. zia meu tio as gargalhadas, mas quan-
22. do conferiu, se assustou como se soubesse
23. O que era, e eu engoli seco. Ele sim-
24. plesmente rasgou-a, sequentemente
25. recebia cinco cartas iguais aquelas ao dia,
26. trazidas por coruja. A casa dos meus
27. tios estava coberta por corujas nunca
28. consegui ler nenhuma delas.
29. Quando chegou no domingo, meu
30. tio ficou feliz, pois domingo não
31. Havia correio, mas ele se enganou,
32. Para as corujas todo dia era de dia de
33. correio! E elas trouxeram milhares daque-
34. las cartas amareladas, meu tio me
35. segurou e disse que íamos se mudar
36. Para um lugar onde ninguém nos en-
37. contraria, no farol com uma casa no
38. Meio do mar de Londres. Era uma noite
39. Com tempestades e chuvas grossas, 31
40. de julho do meu aniversário de madru-
41. ga, e um gigantesco homem peludo derru-
42. Bou a nossa porta, ele chamava-se Hagrid.
43. Hagrid, enfim, deu a carta para eu
44. Ler e disse que eu era um bruxo pode-
45. roso, nela também continha uma lista de
46. materiais: "4 penas simples, 3 potes de tin-
47. Ta azul, 2 tintas vermelhas e 2 pretos, 3 ves-
48. Tes simples de trabalho, duas capas de inver-
49. No, 2 pares de luvas pele de dragão, 1 caldei-
50. rão tamanho padrão 2, 1 telescópio, 1 vassoura
51. 200 pergaminhos e um chapéu preto simples."
52. Hagrid me levou ao Beco Diagonal, onde
53. existia vários comércios dos bruxos onde eu
54. comprei tudo isso, e ele me deu de presente
55. uma coruja branca, com leves manchas
56. pretas e eu a chamei de Edwirges, com-
57. prei uma varinha mágica na loja Olivaras,
58. as tintas, penas e os livros de feitiços
59. na loja Floreios e Borrões e fizemos um
60. lanche no Caldeirão Furado (hospedaria
61. e bar dos bruxos). Eu comprei tudo isso,
62. graças a herança que meus pais deixaram
63. no banco cheio de duendes, bem seguro (Gringots),
64. o nome do dinheiro era esquisito: galões,
65. nuques e sicles! Fomos até a estação
66. de trêm, ele me deixou lá sozinho, onde
67. vi outros bruxos que atravessaram a pare-
68. de entre a plataforma 9 e 10, cuja eles
69. chamam de plataforma 9 ¾, eu estava com
70. Medo de atravessar, mas consegui, peguei
71. o trem Express Hogwarts (onde me levaria
72. até a escola de magia e bruxaria Hogwarts).
73. Fiz amizade com a prodígia Hermione, o
74. medroso ruívo Rón, inimigos como Draco.
75. Chegando na escola, um Chapéu velho
76. que falava me selecionou para uma
77. das 4 casas de Hogwarts (Gryffinder, Hufflepuff,
78. Ravenclaw e Slytherin), eu fui para Gruffin
79. Dor, sentei-me numa das 4 mesas gigantes
80. onde havia vários bruxos esperando o
81. banquete da festa de seleção. Um velho e
82. barbudo mago chamado Dumbledore disse:
83. - Que se inicie o banquete! E apareceu
84. Muita comida comemos até não poder
85. mais, ficamos cansados, todos foram
86. dormir, e não consegui acreditar no que
87. estava acontecendo, parecia um sonho,
88. me livras dos meus aborrecentes tios,
89. percebi que era o início de uma nova
90. aventura... Só que demorei a me acostu-
91. mar com a comida, como exemplo feijãozinho
92. mágicos coloridos, um pouco maior do
93. que os comuns, é tem sabores de tudo
94. Como chocolate, laranja sorvete, morango ou
95. Peixe, cêra de ouvido, meleca, e juram até de
96. vômito! São de todos os sabores mesmo!
A aluna serve-se do enunciado proposto pelo professor como um pretexto. Embora transite pela língua e suas regras, a manifestação da subjetividade fica obscurecida. A menina deixa-se parasitar pela presença do enredo de um best-seller.3 Paralelamente, sua produção textual é fruto de um escritor que renega a presença do outro e de suas demandas. O outro com quem Roseli se relaciona é calculado a partir de um resto metonímico genérico da cultura escolar. A aluna parece estar impossibilitada de relacionar-se e de servir-se dos meandros da linguagem em benefício de sua própria singularidade.
Comparando-se a produção de Roseli com o enredo de Rowling (2000) é possível ver que, em um gesto "canibal", a menina se apropria do trabalho para apresentá-lo, resumidamente, como se fosse de sua lavra. Roseli aproveita-se da coincidência parcial de um elemento comum à proposta de redação e à história de Harry Potter (o recebimento de uma correspondência) para reproduzir esta última.
A partir deste exemplo, podemos afirmar, portanto, que um texto escrito nesta modalidade é uma peça que se constrói a partir da reunião de fragmentos de outros textos que já circulam na cultura. Esta operação obscurece a presença da singularidade de quem escreve, uma vez que se baseia em uma posição enunciativa linear de alguém que deposita metonimicamente significantes isolados apreendidos da cultura.
Roseli adere às palavras de uma obra que já circula na cultura. É como se ela escrevesse para si própria. Ao que tudo indica, para ela o ato de escrever não é fruto de um trabalho de escrita, mas sim, em exercício regulado pelo próprio prazer. Operando da posição que nomeamos como "Sujeito esmagado pelos restos metonímicos do discurso do Outro", o sujeito fica impossibilitado de exercer trabalho de escrita. Aderido à palavra do outro, não consegue retroagir para operar sobre ela, uma vez que se trata de um corpo estranho, que não lhe pertence.
Estamos chamando a segunda posição subjetiva que se depreende em textos escritos por alunos da escola básica de "Sujeito que se limita a testemunhar sua alienação ao Outro cultural ". Trata-se de uma posição a partir da qual, se, por um lado, a alienação se mantém, ela não é tão maciça a ponto de esmagar o sujeito. Para exemplificá-la, transcrevemos a seguir um texto de um aluno da sétima série, escrito em atendimento à mesma proposta do texto anterior:
1. Eu estava leno um livro quando
2.Pubaixo da porta entregaram
3.Um cartão para ir numa festa.
4.Não tinha na para fazer em
5.Casa e eu fui siarua para
6.Ir na festa coloquei uma
7.Calsa e uma blusa acaba
8.Ndo de me vesti foi para
9. Festa.
10. Chegando lá tinha muita
11. Gente bacana estava dacano
12. Bebeno convesando etc.
13. O que aconteceu de bacana
14. Eu conheci uma garota muito
15. Legal linda e muito simpática
16. E ficamos foi bem legal
17. Te ficado aquela noite com
18. Ele e só isso.
O texto de Raimundo Benevenuto pode ser classificado, no jargão dos professores, como "tarefeiro", uma vez que, sem acrescentar quase nada, atende praticamente todas as exigências da proposta: (a) receber convite por baixo da porta (Linhas 1 3); (b) o convite era para uma festa (Linha 3); (c) menção à agenda vazia no dia (Linhas 4 6); (d) decisão de ir (Linhas 4 6); (e) preparativos pessoais para a festa (Linhas 6 7); (f) percurso até a festa (Linha 8 9); (g) narrativa da festa propriamente dita (Linhas 10 18) e (h) texto escrito na 1ª pessoa do singular (Toda a narrativa).
Em suma, sua escrita não excede aos limites do que é ordenado, é bem verdade, mas, ao menos, inclui a demanda social na sua produção, dá algum sentido a ela. Pode-se pensar, em uma leitura ingênua, que textos "tarefeiros" como esses poderiam ser produzidos por qualquer aluno com este grau de instrução. Pode-se, mesmo, desprezá-los porque neles não há nada que os personalize; não há nada que indicie o comprometimento do sujeito com seu próprio desejo.
Esta posição merece ser relativizada. Em primeiro lugar, vivemos em uma época em que a tarefa de "simplesmente" atender ao que diz respeito ao outro (o professor, a proposta, o livro didático, o vestibular, ou qualquer outra pessoa ou instituição que ofereça ao sujeito paradigmas a seguir) não é tão corriqueira. Em segundo, para que alguém possa, em um segundo tempo, sair do campo restrito do cumprimento das demandas que o outro faz é preciso, em primeiro lugar, que ele entre neste campo.
Utilizando nossa retomada dos dispositivos para a constituição da subjetividade proposta por Lacan (1978b) como chave de leitura para analisar a produção de Raimundo, pode-se afirmar a operação fundante da subjetividade que se deu: a alienação ao campo do Outro, condição necessária para interpretar os enunciados que compõem a consigna de uma redação. Portanto, textos como o de Raimundo testemunham uma presença rudimentar de subjetividade: a alienação como primeira operação da constituição subjetiva. Deste lugar enunciativo, já é possível calcular o outro (no caso, o professor) e usar a linguagem para atingir um objetivo pretendido.
A terceira posição subjetiva que se depreende em textos escritos por alunos da escola básica aponta para o que chamamos de "Sujeito agenciado pelo aluno a partir do cotejamento das demandas da cultura escolar e de uma ética própria". Os textos que podem ser inscritos nessa terceira modalização consistem em peças nas quais constam traços que podem indiciar a presença de um sujeito constituído, na medida em que seus autores conseguem agenciar de modo equilibrado a demanda da cultura escolar e o seu próprio desejo.
Esses textos conseguem cumprir uma demanda social de uma maneira singular, ou seja, de um jeito próprio, do qual só eles, cada um ao seu modo, poderiam lançar mão. Trata-se de um modo de escrever que se organiza a partir de uma insistência em bem dizer. Para ilustrar este tipo de texto, transcrevemos, a seguir, a produção de dois alunos que indicam capacidade de "reler-se, isto é, a capacidade de retroagir sobre os enunciados produzidos. Vejamos, em primeiro lugar, um escrito na aula de Língua Portuguesa em atenção à proposta de compor uma narração de enredo não-linear, escrito por Gabriel Bravo, um aluno, então na sexta série do Ensino Fundamental.
A cagada do médico
1. Em 1993, nasceu um menino chamado
2. Gabriel B. com um nascimento engraçado
3. E triste.
4. A mãe desse garoto estava gravida
5. e foi no médico. O médico disse que
6. ele ainda não tinha dado o sinal então
7. ela foi pra casa e falou para mãe
8. que o médico tinha dito que ainda não
9. estava na hora mais ela tinha sentido
10. o sinal três vezes. No dia seguinte ela
11. voltou e ele contou a mesma coisa.
12. A mãe dela falou que iria proces-
13. sar o médico se seu neto morrece então
14. o médico ligou para a casa da moça e
15. disse para ela vir fazer o parto. Ela
16. fez cesariana, porque o garoto não tinha
17. Estourado a bousa, então o médico esto-
18. rou a bousa e estava cheia de fezes
19. com água e o nenem tinha engolido
20. as fezes, depois o médico bateu no bum-
21. bum do garoto e o garoto não chorou.
22. Ele tirou um Ultrassom e viu que ele
23. Estava com fezes no estomágo então,
24. ele enfiou dois tubos pela garganta e
25. Sugou as fezes.
26.
27. Isso tudo graças a cagada do médico
Gabriel expõe um fragmento de sua história de vida de maneira corajosa. Atende à proposta na medida em que inicia seu texto anunciando seu desfecho, a saber: seu nascimento "engraçado e triste", antecipando ao leitor o que o texto lhe reserva. Observando os recursos narrativos escolhidos por ele, pode-se afirmar que o menino foi capaz de deslocar-se do lugar daquele que vivenciou passivamente os fatos e construiu um lugar de um narrador observador para narrar sua própria experiência ao nascer. Em especial, ao construir um texto organizado em torno da ambigüidade causada pela palavra cagada, Bravo demonstra poder se servir da opacidade da linguagem para manter o leitor atento à sua narrativa, uma vez que é capaz de brincar com vários sentidos que este significante pode assumir.
Ao gerenciar a palavra cagada, portanto, o aluno demonstrou ter retroagido sobre a sua própria escrita, o que deu a ele a possibilidade de calcular o efeito de humor que pretendia causar junto aos seus leitores. Este efeito foi construído em três tempos: (a) no título, quando fica sugerido o erro médico; (b) ao longo do texto, ao utilizar outras palavras do mesmo campo semântico se referindo ao bebê, quando Gabriel parece desviar a atenção do leitor para o sentido literal da "cagada", ou seja, para as fezes do bebê; e (c) no desfecho do texto, quando, ao retomar a palavra "cagada", o aluno retoma a idéia anunciada no título do texto e convida o leitor a fazer o mesmo movimento de retroação sobre o texto para a apreensão do sentido da palavra. Esse cuidado com o "amarramento" do final do texto com a idéia anteriormente colocada no título demonstra um sujeito capaz de retroagir em sua escrita, relendo aquilo que já está posto sobre o papel e operando sobre isso, de modo a poder calcular os próximos passos e os efeitos que se pretende causar no leitor.
A partir da análise de seu texto, é possível afirmar que a presença de um trabalho deliberado que toma a linguagem como seu material testemunha que o menino não se encontra apenas alienado ao campo do Outro, pois já se separou o suficiente para poder colher elementos que permitem a tessitura de uma escrita criativa.
Posto isso, passamos à análise do texto de Gustavo Figueira Estrada, escrito em atendimento à seguinte proposta feita aos alunos da sexta série de uma escola particular: a partir do contato com uma reprodução do quadro O quarto de Van Gogh em Arles, escrever um texto híbrido (narração com descrição), versando sobre uma experiência vivida por eles dentro do quarto de Van Gogh. Além de contar como chegou ao quarto, o aluno deveria criar uma cena em que fosse surpreendido pelo próprio Van Gogh e narrar o que aconteceu a partir deste fato.
Vincent Van Gogh
1. Eu estava fazendo um trabalho para escola: eu tinha que ver uma obra de
2. arte e falar sobre ela.
3. Eu fui ver "O Quarto de Van Gogh em Arles" por quê o achei interessante; então pen-
4. sei: porquê eu não vou ver o quarto de verdade ao em vez do quadro.
5. Fui no museu de Paris, mas não achei nada olhei para o nome da tela e
6. me lembrei que estava escrito que é em: Arles.
7. Então fui para lá e foi no museu que vi o Quarto comecei a escre-
8. ver o texto e derepente aconteceu.
9. Van Gogh entrou no quarto, o susto que tomei fez meu coração qua-
10. ze sair pela garganta.
11. Ele disse várias coisas mas, não entendi nada por quê não sabia a
12. Língua dele.
13. Eu disse com muito cuidado eu sou Gustavo Figueira Estrada,
14. eu estou aqui porquê preciso fazer um texto!
15. E como ele tivesse um tradutor ele falou Há! desculpas minhas
16. Gustavo, eu ia tirar um cochilo, mas depois eu tiro, bem eu sou...
17. Aí eu disse : - Vincent Van Gogh! Certo?
18. - Sim! Como você sabe?
19. Explique para ele e percebi: Como estava falando com Van Gogh se
20. ele havia morrido a quase 80 anos átras? E como ele estava com as duas orelhas!?
21. Pensei um pouco e disse:
22. Você é um impostor!!!
23. Ai ele disse: - Caramba! você demorou para descobrir!
24. Então ele tirou uma expecie de mascara e disse:
25. - Oi! Não se lembra de mim?
26. Quando olhei! Quem diria que meu melhor amigo que eu não via a
27. 2 anos estava ali em pé na minha frente.
28. Coloquei a conversa em dia e voltamos para casa, esse era o melhor
29. dia de todos.
Fim
Já na análise das primeiras linhas do texto (linhas 1 a 8), podemos depreender uma hipótese segundo a qual o aluno Gustavo Figueira Estrada pôde iniciar seu texto levando em conta um "leitor ideal". Tal hipótese se sustenta pela visível preocupação em situar, logo no início do texto, as circunstâncias que o levaram a escrever o trabalho.
Referimo-nos à uma produção discursiva da necessidade de cumprir uma tarefa escolar que lhe fora solicitada. Ao construir essa discursividade, Gustavo desloca-se da posição de λ (o aluno da sexta série, conhecido pela professora que demandou dele a tarefa) e desdobrou-se em um locutor (L), responsável por organizar o discurso no qual os enunciadores (E) tomarão parte, como veremos mais adiante. Pode-se dizer, portanto, que o aluno criou um personagem que constitui um lugar enunciativo de onde narra sua história, um locutor (L) que não se confunde com o λ, o ser no mundo.
Descolando-se da idéia de que este texto será lido apenas pela professora que teve acesso ao texto da proposta e que, portanto, sabe o que se espera desta redação o aluno admite-se faltoso do conhecimento que o outro esperava dele e relata sua pequena saga em busca do que ele desejava saber. Tendo se libertado da hipótese da onipotência do Outro, portanto, Gustavo leva os seus semelhantes em conta ao escrever e, admitindo a distância imposta entre sujeito e outro pelo campo do não-senso, impossível de ser recoberto pelo simples uso consensual dos significantes, opera sobre a linguagem, fazendo dela sua aliada na tentativa de melhor dizer o que tem a dizer, ou seja, produzindo efeitos de sentido.
Por exemplo, na linha 8, consta uma ruptura da linha argumentativa que vinha sendo realizada até então e que colocava seu texto como o cumprimento de uma tarefa escolar através da introdução da expressão "de repente aconteceu". Lendo esta passagem com algum cuidado, podemos perceber que o uso do verbo "acontecer" de maneira intransitiva cria um interessante efeito de sentido: interromper a narrativa, deixando o leitor em uma posição de incerteza.
Esta ruptura na aparente linearidade que vinha sendo construída no texto permite a elaboração de uma hipótese a respeito da construção de um mecanismo que possa capturar a atenção do leitor, tornado refém do autor do texto, que o convoca a ler a narrativa que se segue. Dizendo melhor: o leitor se vê obrigado a ler o restante se quiser ter acesso ao sentido completo desta frase. Esta manobra lingüístico-discursiva coloca o menino em situação de oferecer algo ao seu leitor.
Retomando a análise do texto propriamente dito, chamamos a atenção para o conteúdo das linhas 9 a 14, em que o narrador retoma a informação do motivo pelo qual ele encontra-se no quarto de Van Gogh, dirigindo-se, agora, ao dono do quarto. No entanto, o narrador, que conta ao leitor nas linhas anteriores como a história aconteceu, agora se desdobra em um E1 que dá satisfação ao seu interlocutor (não mais o leitor): o famoso pintor.
É ainda neste trecho (especialmente, nas linhas 11 e 12), que chamamos a atenção para a preocupação do menino em construir um texto verosimilhante, levando em conta que o narrador esclarece ao leitor a impossibilidade de total entendimento entre o E1 e o seu interlocutor, Van Gogh, uma vez que um não conhece o idioma do outro.
As linhas 13 e 14 são um exemplo da eficiente mobilização de vozes discursivas, em que alguns enunciadores se articulam: "Eu disse com muito cuidado eu sou Gustavo Figueira Estrada, eu estou aqui porquê preciso fazer um texto!" O primeiro "eu" (Eu disse com muito cuidado) desempenha o papel de organizador, portanto está na posição de locutor (L) que conta a história. É este mesmo L, narrador personagem, que anuncia a fala de E1. E1 é a voz do personagem que interage com Van Gogh, que assume a enunciação da segunda frase (Eu sou Gustavo Figueira Estrada).
Além da entrada deste enunciador no texto, é interessante observar que neste enunciado (eu sou Gustavo Figueira Estrada), há uma rasura que pode ser significativa para a análise desta peça, uma vez que aponta para um rudimento de trabalho da escrita. Em princípio, o aluno havia optado por utilizar um sujeito oculto (Sou Gustavo...), mas numa provável releitura, ele rasura o texto e marca a presença com o pronome que lhe designa, dando ao enunciado outra configuração (Eu sou Gustavo...).
Das linhas 15 a 19, trava-se um diálogo entre o aluno em busca de sua tarefa e o pintor dono do quarto retratado, até que na linha 19 podemos presenciar um diálogo entre os enunciadores. O narrador-personagem é interpelado por Van Gogh e este momento é crucial para o desfecho da trama. E1 explica ao pintor o que ele lhe pergunta. No entanto, ao enunciar esta explicação ao seu interlocutor, E1 esclarece a um E2 que desconfia do engodo que há naquela situação, percebendo os elementos que o afastam da possibilidade de estar diante do verdadeiro Van Gogh. Este E2, desconfiado do engano, desdobra-se em E3, que pensa e em E4, que diz e desmascara o impostor, que se apresenta e trava um diálogo com ele. Na linha 26, ao empregar a expressão "quem diria", um E5 admite-se enganado já que ninguém diria, nem E1, E2, E3, E4, que se tratava de um engano, uma vez que o logro foi bem sucedido.
No desfecho do texto (linhas 28 e 29), retorna a voz do E1 com a expressão: "esse era o melhor dia de todos" que finaliza o estado de suspensão em que o menino que escreveu o texto cuidadosamente manteve o leitor e que é introduzida pela ruptura estabelecida e condizente com ela, já que oferece um final qualificado como "o melhor dia de todos" a um texto se iniciou com o cumprimento de uma ação rotineira, como preparar uma tarefa escolar para entregar ao professor.
Concluindo, no texto de Gustavo, há vários indícios que nos levam a postular que houve um agenciamento subjetivo por parte do aluno: (a) a mobilização das diversas categorias enunciativas; (b) o emprego de recursos de manutenção de atenção do leitor e de verossimilhança; (c) a visível tentativa de retroagir em sua própria enunciação e operar sobre ela, calculando os efeitos desejados e as estratégias para alcançá-los.
Por último, estamos chamando a quarta posição subjetiva que se depreende em textos escritos por alunos da escola básica de "Subjetividade agenciada em tal grau que permite a construção de uma metáfora criativa4". Esclarecemos inicialmente que estamos utilizando o termo "metáfora criativa" para designar aquelas que, na concepção de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002), são construídas a partir de uma analogia original, rica. Para eles, são ricas as metáforas que se estabelecem desde o princípio da analogia e se estendem por toda ela, sem dar ao interlocutor os elementos comparados (tema) e aqueles a que estes são comparados (foro).
Conseqüentemente, a quarta posição descrita por nós designa uma posição desde onde o aluno pode operar sobre os significantes de modo a esvaziá-los do sentido consensual entre os falantes da língua para, posteriormente, inscrevê-los metaforicamente. Aqui, aquele que escreve agencia de tal forma sua singularidade em tamanho grau de sofisticação que pode escrever um texto que testemunha um uso inventivo da linguagem. O texto Uma floresta pareceu-nos um bom exemplo deste tipo de escrita.
Uma floresta
1. Não, querido leitor, não vou falar
2. sobre desmatamento da fauna. Não!
3. não vire a página! A coluna
4. de esportes não vai pegar um avião
5. para Atenas. Deixe-a para depois.
6. Então você me pergunta "Tá, mas
7. que floresta é essa então?"
8. É uma floresta mágica, e só
9. tendo o poder você poderá fazer
10. parte dela. Sim! Você me entendeu, é
11. a floresta de dinheiro, em vez de
12. folhas notas de dolar e euro, essa
13. Floresta fica normalmente na Suiça.
14. Para chegar lá é muito fácil:
15. 1.º Faça teatro e conheça várias línguas
16. porque você vai precisar
17. 2.º Afilia-se a um partido e se
18. Candidate
19. 3.º Tenha um bom acessor, amigos e
20. uma família grande! Agora é só
21. Conseguir votos!
22. Agora você pode ir
23. para a página de esportes.
O texto que vimos foi escrito por Paloma Cardoso, aluna da sexta série do Ensino Fundamental, como produto final de um projeto de estudo do gênero crônica. Entre a ironia e poesia, discorrendo a respeito dos quesitos para se tornar um político no Brasil, a aluna construiu um texto que é, em si, "pura metáfora". Para nós, "Uma floresta" é um bom exemplo do que Perelman chama de uma metáfora rica, uma vez que sua construção impossibilita, num rápido olhar, a determinação dos termos da metáfora (tema e foro).
A ligação metonímica entre os significantes (no plano sintagmático) e as quebras nesta ordem "prevista" (plano paradigmático) obrigam o leitor a retroagir em sua leitura para apreender a significância que ali se deposita. Um exemplo disso se encontra nas linhas 6 a 13. A menina anuncia que falará de uma floresta, mas não completa a analogia. Antes, convida o leitor a prosseguir a sua leitura ao colocar-se na voz dele: "Tá, mas que floresta é essa então?". Sem entregar a analogia de bandeja ao leitor, ela "recorta" elementos de uma floresta (o foro) e do seu tema ainda não identificado explicitamente: "Sim! Você me entendeu, é a floresta de dinheiro, em vez de folhas notas de dólar e euro" (linhas 10 a 12). A aluna prossegue dando "pistas" ao leitor para que ele mesmo suponha de que floresta ela quer dizer: "essa floresta fica normalmente na Suíça." (linhas 12 e 13).
O texto exemplifica o que vimos chamando de uma escrita marcada pelo gerenciamento dos recursos da linguagem de modo inédito e peculiar. A construção da analogia se faz ao longo do texto e vai se constituindo diante do leitor de forma metonímica (parte a parte). A garota dá provas de contar com seu leitor como co-partícipe do seu ato de escrever. Testemunha a possibilidade de fazer um laço social estreito e, deste modo, construir para si própria, maiores chances de fazer sua singularidade circular na cultura. Mesmo tão jovem, ela nos ensina que sustentar uma singularidade demanda uma insistência incansável na busca de estabelecer laços que criem redes para que a produção inédita faça sentido na cultura e, conseqüentemente, circule.
Considerações finais
Ao menos no nível declarado, levar o aluno a escrever de maneira saborosa e criativa é a ambição que irmana a todos que se dispõem a ocupar o lugar de professor de Língua Portuguesa. Considerando-a como uma vontade legítima, no que se segue, gostaríamos de tirar conseqüências da pesquisa realizada para o contexto específico da aula de Língua Portuguesa.
Em primeiro lugar, gostaríamos de salientar a necessidade de diferenciar aquilo que é rebuscado para dar a aparência de sofisticado daquilo que foi realmente trabalhado. Após a análise feita das produções escritas realizadas em âmbito escolar, foi possível compreender que a presença do trabalho de escrita não é sinônimo de texto com aparência complexa. Os textos aparentemente simples não são idênticos entre si. Simples não quer dizer simplório. Expliquemos esta diferenciação.
O que estamos chamando de texto simplório são os textos que não são resultantes de uma elaboração pessoal. Não testemunham implicação subjetiva. São resultantes do trabalho de sujeitos alocados nas posições (1) e (2). Por não demandarem compromisso com a transmissão e nem se pretendem portar algum valor cultural, são produtos cujo mecanismo principal é tomar o outro como o dono das regras. Frente a elas, é apenas possível ou a adesão irrefletida ou a perigosa refutação.
Por sua vez, o que estamos chamando de texto simples são os textos que são a expressão do "melhor possível" por parte de um sujeito e que, mesmo não se assemelhando aos modelos culturalmente consagrados, testemunham implicação subjetiva. São resultantes do trabalho de sujeito alocado na posição (3), que denota a presença de um sujeito compromissado não só com a cultura, como também com os parâmetros pelos quais ele mesmo se responsabilizou.
Em segundo lugar, a reflexão a respeito dos textos dados a ler tornou-se imperativa. Para aqueles que compartilham da posição que vimos defendendo ao longo do trabalho, trata-se de encontrar um lugar produtivo para os ditos "textos clássicos". Com relação ao acervo de textos já consagrados pela humanidade, não se trata de tomá-los no estatuto de modelo, mas, sim, considerá-los como uma (entre outras) fonte de inspiração para os jovens escritores.
Neste sentido, eles são material para serem explorados em sala de aula, transformada em um laboratório de experimentação. Trata-se, portanto, de gerar um espaço no qual haja liberdade para tirar a palavra do outro de um lugar de peça para ser reverenciado em solene e paralisante submissão. Em um laboratório de experimentação, é possível, a alunos e professores, tomando-se um texto qualquer, desmontá-lo, revirá-lo, subvertê-lo, testar novas maneiras de fazer a mesma coisa, sem censura imposta pelo professor.
Em terceiro lugar, parece-nos importante salientar a preciosidade da instalação da lógica do trabalho da escrita. Ao longo deste trabalho, vimos desenvolvendo um raciocínio que pressupõe que aceder à escrita singular demanda um processo de ratificação da posição subjetiva daquele que escreve. Esteve implícita em nossa reflexão uma posição segundo a qual escrever de modo criativo é uma árdua conquista, não estando isenta de um preço a ser pago.
Nas palavras de Forbes (2004), que transcrevemos na seqüência, representar um desejo individual, ou seja, dar a ver a sua singularidade, exige sustentar a presença de um conflito inexorável. "A civilização, necessariamente universal, conflita com os mecanismos de representação dos desejos individuais. Nessa diferença entre a civilização e o homem é necessário não o homem da certeza, como na harmonia forçada, mas o homem da aposta. Estar em conflito com a natureza não é necessariamente ruim. Alguns só podem suportar isso por meio de uma doença que possa fazer uma falsa ponte entre o si mesmo e o mundo. Trata-se da adequação à expectativa do outro. Há também aqueles que, suportando esse conflito, pagam o preço da autorização de algo novo. São os criadores, a quem devemos tanto: poetas, escritores, cineastas, cientistas." (pp.55-6).
Aceitar este limite nos possibilitou ter, por assim dizer, um olhar mais generoso com os textos produzidos por jovens alunos inseridos em processo de escolarização. O quarto ponto, portanto, foi um desdobramento da insistência na responsabilidade. Dizendo de outro modo, a escrita criativa implica poder se responsabilizar pelas palavras, tornando-as suas por meio de um arranjo que, deliberadamente, dialoga com a cultura.
Foi possível descrever quatro lugares passíveis de serem ocupados por um sujeito quando ele está escrevendo. Ressalte-se, neste momento, que as modalizações que vimos de descrever consistem em fases que são superadas umas pelas outras. A cada vez que alguém se dispõe a se arriscar em um campo novo (seja em relação ao conteúdo, seja em relação à forma) necessariamente retrocederá a alguma delas, mesmo que, em outra ocasião, já a tenha superado. Cotejando esta afirmação com a teoria da responsabilidade que vimos de evocar, podemos afirmar que cada uma das posições por nós descritas constitui-se em matizes de responsabilização, isto é, em diferentes possibilidades, por parte de um sujeito, de trabalhar para fazer passar algo de singular na cultura.
Neste sentido, esta reflexão, portanto, deu continuidade à reflexão ética de Riolfi (2006) que, assentando-se nas palavras de Jonas, denunciou os riscos que correm aqueles que acreditam na possibilidade da concretização material de um ideal: "desde que o ideal possua uma verdade, esta considerará todas as situações, salvo ela própria, como indignas dele, e não é bom ingressar na moderação imposta com ódio contra aquilo com o que devemos viver; com o desprezo por aquilo que se trata de aperfeiçoar na medida do possível, com a descrença no valor daquilo que, apesar de tudo, a condição humana o permite, dentro de seus limites." (Jonas, 2006, p.309).
Esclarecemos que somos solidárias a tese de Jonas segundo a qual, para a preservação da possibilidade da existência de um futuro para as gerações posteriores, existe a necessidade premente de se despedir do ideal utópico, uma vez que, segundo o autor, a utopia aponta para o mais e a sobrevivência da espécie exige o menos.
Foi, portanto, a partir dela que defendemos a posição segundo a qual para sustentar o ato educativo é necessário se responsabilizar pelo imperfeito, por aquilo que está longe de se aproximar de um modelo canônico. Foi, também, a partir dela, que pudemos postular que a análise das materialidades-discursivas presentes em um texto tem muito a revelar acerca da posição do sujeito que escreve em relação à linguagem, mesmo quando a possibilidade de sustentar uma dada posição singular e de se esforçar para passá-la no mundo ainda não foi construída.
Olhar para o texto do aluno desde esta posição equivale dizer que uma leitura rigorosa do texto de um aluno transcende, e muito, ao que costumamos fazer sob a rubrica "avaliação", o nosso quinto ponto. Por meio deste estudo, vimos defendendo, portanto, que, para além de uma questão meramente formal, avaliar o processo ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa demanda compreender o quanto determinado sujeito já se tornou permeável aos efeitos da linguagem.
Por meio da análise de textos, argumentamos a favor da tese segundo a qual a instalação do trabalho da escrita como uma lógica não consiste em um processo nem simples nem linear. Ao mostrar como os alunos vão encontrando formas de lidar com a escrita escolar sem abrir mão de si, pudemos dar a ver como aprender a escrever de maneira criativa consiste em percurso no qual o sujeito, ao imiscuir-se no campo do Outro, o transmuda em seu texto.
A referida instalação, portanto, é algo que deve ser reconquistado a cada vez. Isso porque, para que a criação se dê, é necessário o relançamento da dupla divisão subjetiva de modo que: (a) a retroação - operação que permite ao sujeito (re)ler-se possa, sempre e novamente, ser exercida por meio da administração da divisão dos diversos locutores que se imiscuem no momento da escrita do rascunho; e (b) o objeto cicatriz da falta do sujeito possa, sempre e novamente, ser circundado de modo a mobilizar um traço que sempre se repete e testemunha a presença de um gozo que se exerce por meio do ato de escrever, repetição essa por meio da qual um estilo se configura.
Aqui chegamos em nosso sexto ponto: a posição do professor de Língua Portuguesa. Compreender que o trabalho de escrita deve ser construído a cada vez não deixa qualquer margem de conforto para o professor de Língua Portuguesa. A partir dela, não lhe será mais possível se livrar de uma vigilância constante para fornecer aos seus alunos os meios para que a escrita criativa possa ser encarada. De nada lhe valerá o famoso "eu já ensinei, foi você quem não aprendeu", porque, aqui, não se trata de "aprender", mas sim, da coragem necessária para se imiscuir no outro sem medo de se perder.
O professor de Língua Portuguesa é visto, nesta lógica, como o facilitador da instalação do trabalho da escrita. Funcionando como uma espécie de prótese que supre funções ainda não presentes no início de um percurso de escrita. Esta presença é imprescindível para que haja uma distância consistente entre o rascunho e o produto final. Ela pode ajudar o aluno abrir "ocos" na ordem social, buracos onde seus alunos possam assumir sua diferença naquilo que escrevem.
Considerando que a escrita criativa pode ser via de manifestação do que há de mais singular para cada qual, para que ela possa ser sustentada, é necessário haver uma relação de confiança, de modo que a manifestação subjetiva de um indivíduo encontre guarida no outro. Relembramos aqui o trabalho de Riolfi (2005) que comparou o equívoco de leitura, no qual uma criança desloca o sentido daquilo que ouve para um outro campo e do equívoco constitutivo da subjetividade em que o sujeito constituído desloca também o sentido do determinado significante para que este sirva ao seu próprio desejo.
Expostos estes seis pontos, a guisa de conclusão, podemos agora retomar a palavra poética de Carlos Drummond de Andrade (2006): "É feia. Mas é uma flor./ Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.". No poema A flor e a náusea, o poeta mineiro descreve o momento em que, em meio à mesmice urbana, uma flor irrompe no meio do asfalto, causando estranheza em todos que presenciam este fenômeno. Na analogia que aqui fazemos, portanto, a "flor" refere-se à coragem de se expor em suas diferenças e de lidar com o estranhamento que isso possa causar, já que aquilo que é singular situa-se no campo do não-senso. ■
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Endereço para correspondência
E-mail: riolfi@usp.br
E-mail: micalsv@yahoo.com.br
Recebido em fevereiro/2008.
Aceito em abril/2008.
NOTAS
1 O presente trabalho dá continuidade às reflexões iniciadas por Magalhães (2007).
2 Esclarecemos que, para preservar a identidade dos envolvidos, todos os nomes de alunos aqui mencionados consistem em pseudônimos.
3 Para tornar o movimento da menina mais claro, confira o enredo da obra que parasitou a menina em "Home Page Brasil do Harry Potter". Disponível em: https://www. mauriciosampaio.hpg.ig.com.br/ filosofal.html. Data da coleta: 24 de junho de 2007.
4 Para uma compreensão mais aprofundada da noção de metáfora que estamos mobilizando neste trabalho, qual seja, a substituição de um significante por outro e que produz um efeito de significação que é da ordem da criação que "adiciona" sentido, confira Saussure (1969) e Jakobson (1999), na lingüística, e, na psicanálise, Freud (1900/1969) e Lacan (1982).