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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.13 n.25 São Paulo dez. 2008
DOSSIÊ: ESCRITAS II
A escrita e a psicose na criança: uma proposta de tratamento
Writing and psychosis in childhood: a treatment proposal
La escritura y la psicosis en los niños: una propuesta de tratamiento
Ana Beatriz Coutinho Lerner
Psicóloga, mestre em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da USP, membro da Associação Lugar de Vida Centro de Educação Terapêutica
RESUMO
A clínica com crianças com graves comprometimentos psíquicos põe à prova a hipótese de que a posição da criança frente à castração e frente à linguagem determina o modo como ela se relaciona com o conhecimento e, em especial, com a escrita. Esse artigo apresenta a fundamentação teórica e recortes clínicos do trabalho desenvolvido no Grupo da Escrita, criado em 2002 no Lugar de Vida. De natureza interdisciplinar, o trabalho no grupo tem como objetivo oferecer atividades variadas de leitura e escrita que coloquem em ação a organização cognitiva das crianças como uma possibilidade de reordenação do campo simbólico.
Descritores: escrita; psicanálise; psicose; autismo; tratamento.
ABSTRACT
The treatment of children with severe psychological problems tests the hypothesis that their position front castration - linked to language - determines the way that they relate to general learning and writing skills. This article presents the theoretical foundation and clinical observations of the work developed by the Writing Group, created in 2002 at Lugar de Vida. Based on a multi-disciplinary approach, the group's objective is to offer activities linked to reading and writing, which set in motion children's cognitive skills in order to reorganize their symbolic field.
Index terms: writing; psychoanalisis; psychosis; autism; treatment.
RESUMEN
La clínica con niños con serios comprometimentos psíquicos da muestras del supuesto de que la posición del niño frente a castración - y frente a la lengua - no es sin efecto para la manera como se relaciona con el conocimiento y, en especial con la escritura. Este artículo presenta los fundamentos teóricos e fragmentos clínicos del trabajo del "Grupo da Escrita", creado en 2002 en el Lugar de Vida. El trabajo tiene como objetivo a ofrecer actividades variadas de la lectura y de la escritura que pueden poner en la acción la organización cognitiva de los niños como posibilidad de ordenanza del campo simbólico.
Palabras clave: escritura; psicoanálisis; autismo; psicosis; tratamiento.
1. Entre o saber e o conhecimento
Na clínica com crianças com graves comprometimentos na constituição subjetiva, é certo que nos deparamos com questões próprias da aprendizagem. Embora a psicanálise não se constitua como uma teoria da aprendizagem, Freud (1905/1980a) não se furtou a abordar o tema ao propor nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade que a pulsão de saber é despertada concomitantemente ao início das investigações sexuais infantis.
O desejo de saber despertado pelo enigma da origem e da diferença sexual anatômica é a mola propulsora da construção das teorias sexuais infantis e, ao empreender suas investigações sexuais, a criança passa também a exercer suas atividades intelectuais.
Cabe pensar, desta maneira, que os processos intelectuais estão intimamente relacionados à posição da criança na subjetivação e, portanto, que a atividade intelectual entendida como uma função do ego está calcada em aspectos próprios da constituição subjetiva, na medida em que o que a criança quer saber diz respeito, em última instância, ao desejo.
É preciso, no entanto, esclarecer que para a psicanálise as noções de saber e conhecimento não são equivalentes. O conhecimento diz respeito a uma função do Eu, enquanto o saber está remetido ao saber inconsciente e, portanto, saber é saber sobre o desejo do Outro.
Na tentativa de distinguir "desejo de saber" de "saber do desejo", Aulagnier (1990) retoma a premissa freudiana segundo a qual a criança, ameaçada com a chegada de um irmão, tem que lidar com as questões da origem dos bebês e da diferença sexual e que, não contente com as explicações provenientes dos adultos, avança sozinha em suas investigações. É neste sentido que a autora afirma que algo na resposta do adulto deve falhar, para que a criança possa voltar a sua posição de investigador, mudando, contudo, o objeto de sua pesquisa.
Para essa autora, a primeira forma de conhecimento está a serviço do princípio do prazer. Para que haja um "desejo de saber" é preciso que o "conhecido" tenha se revelado insuficiente para responder à questão à qual o sujeito se encontra defrontado. A questão para a qual a criança busca respostas é, em última instância, aquela proposta pelo desejo do Outro a mãe ou aquele que, na cena real, vem encarnar o discurso inconsciente.
"Desejo de um saber sobre o desejo, assim nos parece ... aquilo que está no próprio coração da relação do sujeito com o conhecimento. Mas, esse desejo nos indica também o que está no alicerce de sua meta: opor à dura realidade de castração, a esse luto do desejo infantil, um campo de ação onde o desejo passa a ser levado ao infinito, onde jamais corra o risco de deparar-se com a finitude de seu objeto". Aulagnier (1990, p. 188).
A clínica com crianças que passam por dificuldades na constituição subjetiva põe à prova a hipótese de que a posição da criança frente à castração e, conseqüentemente frente à linguagem não é sem efeitos para o modo como ela se relaciona com o conhecimento. Na medida em que o conhecimento está remetido ao saber inconsciente na sua função de estruturação do sujeito, investigar esta relação se faz necessário quando tratamos de crianças cujo processo de constituição psíquica encontra-se obstaculizado.
2. A escrita e a psicose
A construção do conceito de inconsciente está atrelada à noção de escritura desde os trabalhos inaugurais de Freud. Sua concepção apresentada na carta 52 (1950[1896]/1980b), escrita a Fliess, apresenta um modelo de psiquismo como um aparelho de memória constituído a partir da inscrição de um conjunto de traços mnêmicos, que são as marcas da relação do sujeito com a linguagem. Essas inscrições são as representações das experiências de prazer/desprazer que se dariam em diferentes níveis do aparelho psíquico: consciente, pré-consciente e inconsciente.
Nessa carta, Freud trabalha com a hipótese de que a constituição do psiquismo dá-se por um processo de estratificação do material presente em forma de traços de memória. Após a sua inscrição, estes traços ou ficam disponíveis na memória consciente do sujeito ou sofrem uma espécie de "apagamento" pelo efeito da operação do recalque, ficando, assim, fora da cadeia associativa consciente.
Numa estruturação que se dá pela via da neurose, Freud afirma que ocorre uma falha na tradução de uma determinada parte do material psíquico inadmissível para a consciência. Esta falha na tradução é o que ele concebe clinicamente como recalque: "Gostaria de acentuar o fato de que os sucessivos registros representam a realização psíquica de épocas sucessivas da vida. Na fronteira entre essas épocas deve ocorrer uma tradução do material psíquico. Explico as peculiaridades das psiconeuroses com a suposição de que essa tradução não se fez no caso de uma determinada parte do material, o que provoca determinadas conseqüências.... Uma falha na tradução isto é o que se conhece clinicamente como "recalcamento". Seu motivo é sempre a produção de desprazer que seria gerada por uma tradução; é como se esse desprazer provocasse um distúrbio do pensamento que não permitisse o trabalho de tradução." (Freud, 1950[1896]/1980b, p. 319).
Dessa perspectiva, podemos dizer que, no caso de sujeitos neuróticos nos quais a constituição psíquica está orientada pela operação do recalque, alguns traços mnêmicos permanecem inconscientes, isto é, não traduzidos e, portanto, inacessíveis à consciência. Sua condição de inacessibilidade, porém, não minimiza sua presença no psiquismo, na medida em que o conteúdo recalcado subsiste sob a forma de traços mnêmicos e retorna por meio dos sintomas, lapsos, sonhos, podendo sofrer uma retranscrição, por exemplo, a partir da relação transferencial com o analista.
A própria construção do conceito de transferência na psicanálise apóiase na metáfora da escrita, na medida em que ela é entendida, em alguns momentos da obra freudiana, como a reedição de uma história pregressa, por vezes imaginária, do sujeito que se atualiza na relação com o analista.
O que, por ora, importa ressaltar do texto freudiano é que as várias associações que têm origem nas inscrições dos traços mnêmicos não poderiam se organizar sem ter a linguagem como condição e que a inscrição desses traços apresenta uma organização contingencial que demarca a singularidade radical do sujeito. A partir dessa noção de inscrição começa a se fundar no pensamento freudiano a idéia de que a soma das inscrições cifraria um texto, o que cria o campo para que a escrita possa ser tomada pela psicanálise como uma modalidade de linguagem.
No caso da estruturação psicótica, porém, o estatuto das inscrições e do recalque e, por conseguinte, a função do analista, desdobram-se de uma outra maneira. Freud (1924/1980c) identifica na psicose um mecanismo de recusa da realidade que seria, em ultima instância, uma recusa da castração, já que esta está intimamente ligada a uma função interditória e normativa. A perda da realidade é atribuída a um tipo especial de ocorrência no nível dos sistemas mnêmicos que é a recusa à inscrição psíquica da castração.
Ainda que a teorização freudiana acerca das psicoses tenha sido considerada insuficiente pelo próprio Freud, a definição da gênese da psicose que articula fixação e regressão ao narcisismo primário e recusa da castração continua bastante atual e constitui os fundamentos da teorização psicanalítica das psicoses. Lacan é um dos autores importantes que avançam nos estudos sobre a psicose, propondo uma releitura da metapsicologia freudiana que insere de maneira mais explícita as psicopatologias na trama da linguagem. Para ele, a maneira como se exprime a linguagem define por si só a subjetividade (Lacan, 1998).
Seu primeiro posicionamento frente à questão das psicoses é bastante influenciado pela conceituação sobre o estádio do espelho de 1936 e aponta para a presença de identificações alienantes na psicose que virão aprisionar o sujeito em uma dinâmica dual, em geral com a mãe. Esta reflexão fundamental vai demarcar a ênfase inicial dada ao registro imaginário na estruturação psíquica do sujeito, na medida em que o autor define a relação do psicótico como uma relação de captura imaginária no desejo materno.
Em sua primeira clínica, esse autor define a psicose pela via da recusa da castração, derivada da concepção freudiana, nomeando-a como a foraclusão do significante Nome-do-Pai, o que inviabilizaria a operação da função paterna. O significante Nome-do-Pai é aquele que porta a lei e que rompe a relação simbiótica da criança com sua mãe, introduzindo a criança numa relação triangular que é a antesala da entrada na cultura.
A noção lacaniana de significante guarda relações com a teorização freudiana sobre o aparelho de memória, na medida em que os traços das primeiras impressões são o que, para Lacan, correspondem ao significante. Os significantes, portanto, se constróem em um tempo anterior a qualquer possibilidade de o sujeito construir a ligação dessas representações com a palavra. É também pela via do significante que Lacan vai pensar a questão da posição do sujeito na linguagem, entendendo as psicopatologias como perturbações nessa relação do sujeito com o significante.
Assim sendo, os determinantes lingüísticos da psicose estão relacionados a um tipo de falha na estruturação simbólica que é produzida pela não incidência da função paterna. No entanto, é o próprio registro do simbólico que dá ao sujeito o acesso estruturado à linguagem e a falha na entrada do pacto simbólico, por sua vez, irá comprometer toda a relação do sujeito com a linguagem.
De modo geral, podemos dizer que a principal diferença entre o modo freudiano e o modo lacaniano de abordar a psicose é que, para Freud, os fenômenos psicóticos são efeito de uma certa defesa diante da dinâmica libidinal conflitiva, enquanto, para Lacan, a psicose mostra-se como efeito de um fracasso na constituição do sujeito a partir de sua relação com a ordem simbólica (Freire, 2001).
Por estar situado de forma atípica no simbólico, o discurso psicótico retira o que da linguagem há de metafórico/ambíguo, quando toma a palavra como coisas e a torna literal. Assim, apoiados em Lacan, podemos entender que o delírio psicótico, ao tentar recuperar a dimensão simbólica do discurso, recupera também essa dimensão da linguagem, ou seja, o delírio busca metaforizar a realidade ao tomar as coisas no campo da palavra.
Freud (1914/1980d) já aponta para esse sentido do delírio quando, em Sobre o narcisismo: uma introdução, propõe que o delírio psicótico é uma tentativa de restituir a castração de onde ela foi abolida. É neste sentido que Lacan interroga sobre uma possível estabilização da psicose a partir do delírio, ou, melhor dizendo, via construção de uma metáfora delirante.
Tendo como referência a noção de estrutura proposta por Lacan, podemos entender que, no tratamento, não se trata de buscar a cura da psicose, quiçá uma estabilização, que conduziria o sujeito a uma condição outra de circulação pela linguagem. É assim que Lacan (1998) afirma que o delírio de Schreber é, à sua maneira, um modo de relação do sujeito com o conjunto da linguagem.
Contudo, ao pensar na psicose na infância, cabe-nos ainda interrogar a via possível estabilização, uma vez que, na maioria dos casos, a construção do delírio está inviabilizada pela própria condição de infans, ou seja, de não-falante.
Em relação à psicose do adulto, a psicose na criança guarda sua especificidade, pois a falha na subjetivação se dá no mesmo momento em que importantes aquisições no desenvolvimento deveriam estar ocorrendo. E isso, para a clínica, não é sem conseqüências. A psicose, quando manifestada na infância, traz consigo as marcas próprias do tempo da constituição subjetiva e da aquisição da linguagem.
Com a eclosão da crise, o desenvolvimento da criança fica estagnado. Sendo assim, tratar uma criança psicótica implica criar vias de retomada da estruturação psíquica, fazendo surgir possibilidades de circulação social, uma vez que com a interrupção do desenvolvimento a criança fica aprisionada em um momento anterior a qualquer aprendizagem do universo social.
Estruturalmente, podemos dizer que, na psicose infantil, a operação de separação da criança do Outro materno fracassou, ou se deu de modo muito precário, impossibilitando que a criança se inscrevesse na linguagem. Podemos dizer que, embora esteja na linguagem, a criança psicótica está fora do circuito do discurso que implica uma referência ao Outro. Deste modo, não se constituirá um lugar de fala para essa criança, e ela ficará impedida de construir laços sociais, permanecendo fora da circulação social por não encontrar representação possível no discurso.
Na clínica da psicose infantil, comumente vemos crianças para as quais a linguagem não possui a ambigüidade (diferença/ distância) da relação significante/significado ou está simplesmente inacessível como possibilidade de o sujeito se dizer. A linguagem, quando presente, está no campo do real, comumente como estereotipia motora ou da fala.
De acordo com Kupfer (2001), quando se trata da psicose infantil, o que está em jogo é uma palavra absoluta, uma palavra que oferece à criança um sentido único, que rouba da linguagem a sua flexibilidade, sua ambigüidade, suas múltiplas possibilidades. Os fenômenos elementares da psicose, tais como alucinações auditivas ou visuais, interpretações delirantes, afrouxamento dos elos associativos e alterações diversas da linguagem, vão ganhar novos contornos na psicose infantil, apresentando-se intimamente articuladas a estereotipias motoras, a falhas na construção da imagem corporal e a comprometimentos no estabelecimento do laço social.
3. A escrita inconsciente e a escrita alfabética
A escrita alfabética não é simplesmente uma representação da fala. Para Kupfer (2007), a base da escrita alfabética está no escrito inconsciente, isto é, nesse "sistema de marcas inconscientes que rege o funcionamento do aparelho psíquico, inicial, fundamental. Esse escrito está na base das manifestações do sujeito do inconsciente; um sujeito pode surgir falando, desenhando, sonhando, fazendo lapsos e ... escrevendo." (pp.55-56).
Podemos dizer que a escrita, assim como as outras formações do inconsciente, têm uma origem comum que é a própria estrutura do inconsciente, pois é a partir do escrito inconsciente que se organizam as demais escritas: o sonho, o desenho e a escrita alfabética.
Para Bergés (1988), a entrada da criança na escrita supõe uma nova orientação psíquica, uma nova ordem que exige levar em conta o princípio da realidade e a existência de um outro a quem o sujeito se dirige. Portanto, ela é a marca da emergência de algo novo no sujeito. A aprendizagem da escrita e da leitura nada tem a ver com o reconhecimento da imagem da letra, e só pode advir em decorrência da entrada da criança em um verdadeiro processo de simbolização que permite a utilização do código de uma língua.
Em função disso, a escrita é contemporânea à entrada no laço social e só pode se dar posteriormente ao tempo da constituição do campo do Outro, isto é, do universo simbólico que compõe, precede o acesso à escrita. Escrever seria uma manifestação da operação do recalque, na medida em que significa separar-se de uma língua original materna e inscrever-se numa língua compartilhada e organizada segundo as leis da cultura. A língua materna original porta não apenas as palavras, mas a voz, o cheiro, o corpo da mãe. Escrever é, de alguma maneira, "perder" tudo isso. É perder uma certa relação com a presença materna e supõe que a criança não esteja mais presa ao corpo da mãe, numa relação especular e imaginária.
Em termos lacanianos, a passagem à escrita supõe uma passagem da primazia do imaginário para o simbólico, que significa destacar o objeto de sua imagem e introduzi-lo num campo de linguagem que prescinde da coisa em si ou de sua imagem ao simbolizá-la. Trata-se de alcançar uma operatividade simbólica tal que permita a retirada da letra de sua ancoragem imaginária.
Na clínica da psicose, a relação do sujeito psicótico com a escrita é sempre marcada pela sua dificuldade de separar-se do corpo e da língua materna. Nesses casos, o sujeito ou bem faz uma colagem à língua materna, que se evidencia nas falas estereotipadas e repetitivas, ou procura salvar-se dela criando uma linguagem própria ininteligível porque desarticulada de qualquer código compartilhado.
No caso da escrita, essas manifestações aparecem na escrita da letra pura, apartada das outras que lhe conferem sentido ou no automatismo da escrita que faz a grafia das letras ininterruptamente e, portanto, sem que se constitua um texto. A letra presa à pura imagem pode afetar a busca do sentido, pois há uma sobreposição da imagem ao símbolo que repele o acesso à letra. As letras, nesses casos, ficam "coladas" aos olhos, atreladas à pura percepção.
Afirmou-se até aqui que é necessária uma operação de recalque para que se dê o surgimento da escrita. Para que esta última apresente-se enlaçada ao social se faz necessário que o sujeito passe pela castração, pela separação do corpo materno e abandone uma vivência de pura satisfação para render-se à lei humana e, portanto, à lei da linguagem.
Entretanto, como podemos pensar a escrita no tratamento de crianças psicóticas se o que lhes falta é exatamente a operação do recalque?
Trabalhamos com a hipótese de que na psicose a relação do sujeito com a linguagem pode ser trabalhada pela via da escrita, uma vez que a escrita inconsciente é o suporte para a escrita alfabética. Se há um paralelismo entre essas duas escritas, a escrita alfabética poderia servir ao psicótico como uma via de suplência, como uma nova possibilidade de estruturação psíquica produzida a partir da inscrição de traços que teriam o caráter subjetivante?
Garcia-Roza (1994) nos lembra que "só há inconsciente se houver simbólico". É a partir das exigências do simbólico, entendido como um conjunto de sistemas que formam a cultura, que o sujeito se constitui: "O acesso ao simbólico é, portanto, condição necessária para a constituição do inconsciente e, evidentemente, também do consciente", e é a aquisição da linguagem que permite esse acesso. Partindo desse pressuposto, interrogamo-nos sobre a possibilidade de o aprendizado da escrita, ao solicitar que o sujeito se dobre às leis próprias da língua, impulsionar a entrada desse sujeito em uma lei simbólica.
Entendemos que a forma como a escrita se organiza e se inscreve no papel depende substancialmente dos efeitos da relação do sujeito com o Outro. Na concepção que orienta o trabalho no Lugar de Vida, a escrita deve ser trabalhada em sua dimensão simbólica, dimensão significante que difere da escrita instrumental em sua dimensão técnica.
Além disso, o trabalho com a escrita visa colocar a criança em contato com as aquisições próprias do universo escolar, na tentativa de fomentar a construção do laço, a circulação social e, assim, minimizar os danos causados pelas vicissitudes de seu desenvolvimento psíquico.
Nesse sentido, a aposta do Grupo da Escrita é que a escrita pode constituir-se como um instrumento de tratamento na tentativa de promover, ainda que ortopedicamente, alguma entrada da criança na linguagem.
4. O grupo da escrita no Lugar de Vida
Idealizado por Maria Cristina Machado Kupfer, o Grupo da Escrita foi criado em 2002 para atender a mais uma das demandas provenientes do intenso movimento institucional do Lugar de Vida. Originalmente, esse grupo contava com duas coordenadoras, uma psicanalista e uma educadora, e com quatro crianças cuja leitura clínica apontava para uma tendência desejante à escrita.
Um dos critérios de encaminhamento de crianças para esse trabalho é o grau de enlaçamento do sujeito pela escrita, que pode ser lido, entre outras coisas, pela escolha dos objetos com que a criança se ocupa em seu cotidiano.
De natureza interdisciplinar, o trabalho no grupo tem como objetivo oferecer atividades variadas de leitura e escrita que possam colocar em ação a organização cognitiva como uma possibilidade de reordenação do campo simbólico. Para tanto, são propostas atividades que têm como eixo temático as diversas produções da cultura (festas folclóricas, datas comemorativas, calendário, meios de transporte, entre outros), bem como visitas a museus, bibliotecas e espaços públicos relacionados aos conteúdos trabalhados no grupo, possibilitando também novas ofertas de circulação social a essas crianças e adolescentes.
Apresentamos, a seguir, recortes de casos clínicos de crianças psicóticas que fazem parte do Grupo da Escrita. Os fragmentos destacados têm como objetivo mostrar de que maneira a configuração psíquica e os sintomas psicóticos evidenciam-se na escrita dessas crianças e problematizar as mudanças de posições subjetivas que puderam ser lidas a partir da intervenção com a escrita.
4.1 Caso: Guilherme
Guilherme é um pré-adolescente que chegou ao Grupo da Escrita com doze anos. A condição de sua escrita ao chegar no grupo era a de uma escrita rígida, ininterrupta, cópia exata do modelo que lhe apresentavam. Escrevia em letra de forma, sem intervalo entre as palavras, produzindo marcas que mais se assemelhava a um desenho do que a uma escrita. Reconhecia a imagem de todas as letras, as marcas visuais e sonoras das letras, mas não a sua utilidade na língua. Fazia uma leitura das palavras soletrando individualmente cada letra, sem que elas se unissem na formação de um novo fonema e de uma nova palavra e adquirissem significado. Como afirma Pavone (1996, p.78), em relação a um caso de autismo, "as letras e números apareciam colados nos olhos, atrelados à pura percepção".
O trabalho com Guilherme procurou atribuir um significado, dentro de um campo de linguagem, às letras que ele escrevia, articulando imagem, som e sentido na produção das palavras. Para isso, buscávamos um enlace da escrita com as produções delirantes de Guilherme e, aos poucos, pudemos vê-lo arriscar-se mais na escrita das letras, ainda que isso se refletisse, muitas vezes, em troca de letras e erros ortográficos.
As intervenções visavam à extensão simbólica das marcas que ele deixava no papel e observamos uma mudança de sua posição subjetiva frente à escrita ao descobrir que escrever não é desenhar. Essa descoberta pôs em andamento uma operação de descolamento da imagem da letra e a saída da pregnância imaginária característica da escrita como um desenho. É importante destacar essa passagem que ele viveu, já que para escrever e ler é preciso "esquecer" o valor de imagem da letra.
Na medida em que a escrita avançava, pudemos notar que escrever, nomear dava bordas a Guilherme, contendo suas produções delirantes e produzindo um apaziguamento do sujeito. Os neologismos de que lançava mão para nomear um monstro pelo qual se sentia perseguido foram diminuindo e sua linguagem passou a ser mais compartilhada. A "língua própria" que Guilherme falava aos poucos virou um tema do grupo: desenhos animados, cenas de lutas sangrentas, mortes, perseguições, mas agora de um modo mais contextualizado e enlaçado imaginariamente. Interessante notar aqui a função estabilizadora do grupo sustentada numa relação transferencial no trabalho com a escrita.
O próprio desenho do monstro e a escrita de seu nome parecem ter tido um efeito de promover uma nova amarração dos registros do real, do imaginário e do simbólico. Muitas vezes, diante de uma verbalização incessante de histórias, sem ponto de parada, Guilherme percebe o estranhamento do outro e, diante disso, "explica" ao seu interlocutor que aquilo não é a realidade, mas sim o "mundo da imaginação".
Poderíamos pensar a partir desse fragmento que Guilherme construiu a possibilidade de fazer uma distinção entre a fabulação e a realidade? Ou ele repete estereotipadamente a fala que ouve do outro dizendo que aquilo é a sua imaginação?
Até onde pudemos analisar, a escrita e leitura de Guilherme são tanto melhores quanto mais ele puder se apoiar no significado daquilo que está sendo proposto, ou seja, naquilo que traz um sentido para o que ele vê. Por conta disso, o trabalho com ordenação de histórias, descrição de personagens e criação de narrativas mostrou-se muito rico para ele no grupo.
Além disso, houve uma ampliação do seu repertório de palavras e histórias e uma sofisticação no endereçamento de sua fala e escrita ao outro. Nesse sentido, ainda que a escrita não seja a única modalidade de linguagem de Guilherme, ele se beneficia dela como um organizador de sua subjetividade.
Atualmente, já com a escrita mais estabelecida, Guilherme funciona como um organizador do grupo que faz a mediação das relações entre as outras crianças, participa da resolução dos conflitos recorrendo às regras construídas conjuntamente e, quando somos interrompidas por alguma criança pequena de outro grupo, ele levanta a voz e diz: "Aqui não pode mais criança pequena. Esse é o grupo dos adolescentes".
A partir daí, "adolescente" passou a ser um significante importante no grupo, que confere uma posição diferenciada aos nossos (agora) adolescentes.
4.2 Caso: Tatiana
Quando Tatiana chegou ao Grupo, sua escrita era absolutamente caótica e ilegível. Ela fazia uma série de marcas no papel, com formatos que não se assemelhavam a letras e que mais pareciam traços ou pequenas garatujas, separados uns dos outros. Sua escrita preenchia toda a folha, sem deixar nenhum espaço em branco. Quando pontuávamos isso para ela, ela dizia: "Não pode faltar nada" e seguia sua escrita incessante e sem sentido.
Apesar disso, podíamos ver que algo da ordem das leis da escrita já havia feito sua inscrição, pois Tatiana escrevia marcas segmentadas (separadas umas das outras como letras), da esquerda para a direita, numa direção horizontal e seguindo as margens do papel, o que nos fez apostar em um certo grau de enlaçamento pela escrita.
O trabalho com ela deu-se na direção da construção das letras e da inscrição mesma de uma distinção entre as formas. Fomos transformando, junto com ela, o seu traçado em letras, transformando suas "minhoquinhas" em "A", "T", "I" etc., começando pelas letras de seu nome e atribuindo sentido aos primeiros conjuntos de letras que Tatiana escrevia.
Aprendidas as letras, porém, ainda restava uma questão importante: o automatismo da sua escrita. Uma escrita sem parada, com a disposição das letras, uma seguida da outra, até preencher todo o papel e sem fazer as separações que constituem as palavras. Como um exemplo, podemos citar o dia em que ela escreveu seu nome com mais de 30 letras, sem parar, até que a psicanalista interrompesse sua escrita segurando a sua mão.
Começamos então um trabalho com os símbolos de pontuação e com a construção da noção de tamanho das palavras e da quantidade de letras necessárias para se construir uma palavra. Separávamos as palavras com hífens, encerrávamos as frases com ponto final e mostrávamos os diferentes tamanhos dos nomes dos colegas do grupo.
Inicialmente, para fazer a separação entre as palavras, Tatiana precisava do dedo da terapeuta no papel que introduzia concretamente uma pausa, um corte em seu movimento incessante. Durante algum tempo, os pontos finais foram incluídos como mais um elemento nessa série de letras, perdendo seu caráter de encerramento e de símbolo que promove a ordenação da escrita.
Sua escrita aparecia no papel da seguinte forma:
A C T I H Õ. S I M R TAT I. N R ST H Y U V A H. T A Y H R S V. H Y A
Em meio a esse amontoado de letras, algumas palavras começaram a aparecer (vide grifo nosso), o que surpreendia Tatiana diante da nossa leitura que, por sua vez, consistia no enlaçamento das letras numa série significante que possibilitou à criança representarse para além de seu corpo real que se manifestava no automatismo da escrita. A partir do entrelaçamento dos corpos de analista e paciente na escrita "a quatro mãos" é que pode surgir um entrelaçamento das letras e a produção significante.
Outra intervenção que surtiu efeitos interessantes de parada foi fazer bordas concretas no papel delimitando os espaços que ela poderia utilizar para escrever. Fazíamos palavras cruzadas, articulando imagem e palavra e ela conseguia colocar uma letra em cada quadrado. Porém, depois de terminado o jogo, ela passava a escrever montes de letras em todos os outros espaços do papel.
O deslizamento pelas letras também encontra manifestação em sua fala. Muitas vezes, a referência a uma palavra inaugura toda uma série de outras palavras relacionadas entre si, mas não relacionadas ao contexto do que está sendo falado. Tatiana perde o ponto de parada, o ponto de contato e se perde.
Depois de uma ida ao Museu de Oceanografia quando trabalhávamos com os animais marinhos, a terapeuta perguntou o que as crianças tinham visto no museu e Tatiana disse:"Peixe, golfinho, cavalo-marinho, passarinho, macaco ...".
Por meio dos fragmentos clínicos apresentados pretendemos refletir sobre o papel da escrita no atendimento clínico de crianças psicóticas como um agente estruturante de sua subjetividade. A inscrição da perda, do espaço em branco entre as palavras, do ponto final só se dá na medida em que se possa conservar, tornar-se experiência e, por isso, ser passível de transmissão. Experiência que, nesse caso, se transmite em um contexto compartilhado. Para isso, o testemunho do outro é fundamental. A inscrição da perda, no advento do sujeito, se faz em um ato de testemunho do outro que lhe oferece suporte corporal e significante. Testemunho que só se torna efetivo como produção de subjetividade em uma relação transferencial.
Podemos pensar que o que subjaz às intervenções "um tanto ortopédicas" realizadas no grupo é a propriedade do testemunho e, portanto, da possibilidade de inscrição, conservação e extensão simbólica da experiência.
Para concluir, vale citar a afirmação de Bernardino (2001) de que é o analista que, como promotor de um processo de leitura, pela via da transferência, permite uma transcrição, ou seja, a passagem de uma inscrição de um registro ao outro para ser abordada pela palavra e, assim, produzir significação.
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Endereço para correspondência
E-mail: anabcoutinho@yahoo.com.br
Recebido em maio/2008
Aceito em julho/2008