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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.13 n.25 São Paulo dez. 2008
ARTIGOS
Um sujeito à procura da imagem o caso Mlle. B.
A subject looking for the image the case of Mlle. B.
Un sujeto en busca de la imagen el caso Mlle. B.
Cristina FredericoI; Angélica BastosII
IPsicanalista, psicóloga do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Instituto Municipal Philippe Pinel
IIPsicanalista, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
RESUMO
O trabalho aborda a função da imagem do semelhante para os falantes e sua relação com o corpo. Partindo do ensino de Jacques Lacan sobre o estádio do espelho e as psicoses, discutese a suplência do imaginário ao simbólico e as conseqüências do malogro da imagem em compensar a falha simbólica. Os impasses subjetivos resultantes do fracasso das identificações em se aglutinarem num eu são discutidos em torno do caso Mlle B., paciente entrevistada por Lacan em uma apresentação de doentes. Com base no caso, a noção de doença da mentalidade é cotejada com as psicoses.
Descritores: imagem; suplência; psicose; corpo; doença da mentalidade.
ABSTRACT
This paper focus on the function of the analogous image to the speakers and its relationship with the body. From the teaching of Jacques Lacan's essay about the mirror stage and the psychosis, the imaginary supplying to the symbolic and the consequences of the image failure in compensating the symbolic fault are discussed. The subjective impasses resulting from the fact that identifications fail to agglutinate into a self are discussed around the case of Mlle B., a patient who was interviewed by Lacan during a case presentation. Based on this case, the notion of mentality disease is confronted with the psychosis.
Index terms: image; surrogates; body; psychosis; mentality disease.
RESUMEN
El trabajo aborda la función de la imagen del semejante, para los seres portadores del lenguaje y su relación con el cuerpo. A partir de lo enseñado por Jacques Lacan, sobre la fase del espejo y las psicosis, se discute la suplencia de lo simbólico por el imaginario y las consecuencias del malogro de la imagen en compensar la falla simbólica. Los impases subjetivos resultantes del fracaso de las identificaciones al aglutinarse en un yo, son discutidos a través del caso "Mlle. B.", paciente entrevistada por Lacan, en una presentación de enfermos. Con base en dicho caso, se coteja la noción de enfermedad de la mentalidad con las psicosis.
Palabras clave: imagen; suplencia; psicosis; cuerpo; enfermedad de la mentalidad.
Introdução
O corpo não é algo que se é, mas algo que se tem, ou melhor, que se crê possuir. Como tudo o que é da ordem da crença, tratase de uma posse sujeita à dúvida, à instabilidade, à descrença ou mesmo à certeza delirante de que o corpo é possuído por Outro. Quando o corpo não é subjetivado, essa crença pode faltar, deixando o sujeito despossuído de suporte imaginário e da consistência que este proporciona ao falante. Nesses casos, como afirma Lacan (1993, p. 30), o sujeito não faz a menor idéia do corpo que tem para colocar sob a vestimenta.
Este trabalho visa discutir o papel que a imagem do semelhante desempenha para todo sujeito e as vicissitudes a que estão submetidos aqueles que não dispõem desse recurso. Para tal, recorreremos a um caso de uma apresentação de doentes conduzida por Lacan o caso Mlle B e discutiremos a noção de doença da mentalidade, suscitada na discussão que se seguiu a essa mesma entrevista.
O que torna a imagem tão cativante? A fascinação pela imagem explicase por ela vir recobrir a falta designada falta fálica quando a castração é simbolizada. No estádio do espelho, a criança tem a imagem do corpo unificada graças à interposição da imagem do semelhante na qual ela se aliena. A constituição do eu sob a forma de unidade narcísica dá lugar a uma experiência de júbilo diante do desamparo, da impotência motora e da fragmentação corporal em que a criança se encontrava até então. Desta forma, o sujeito se empenha em dissimular a falta recorrendo à imagem do semelhante.
É uma marca vinda do campo do Outro que possibilita ter um corpo. A consistência, no sentido de manter junto, de organizar uma unidade corporal, não é dada só pelo imaginário, pois depende do simbólico, através da incidência de um significante, de um nome reconhecido aqui como significante Nome-do-Pai.
Caso o sujeito fique excessivamente capturado pela imagem, "é porque a relação dual pura o despoja de sua relação com o grande Outro", diz Lacan (2005, p.135). Sem essa marca fundamental, as falas que chegam aos psicóticos não produzem a escansão necessária. Isso se manifesta como invasão de falas que eles não reconhecem como suas, mas também como tendência a imitar e a tomar emprestada a fala de outros. Visam, assim, a uma compensação através de um sucedâneo: a imagem do semelhante.
As bengalas ou muletas imaginárias que o psicótico encontra em seu duplo especular servem de apoio quando o simbólico não promove a sustentação do sujeito: "o seminário sobre a psicose lhes permitiu compreender, se não o fundamento último pelo menos o mecanismo essencial da redução do Outro, do grande Outro, do Outro como sede da fala, ao outro imaginário. É uma suplência do simbólico pelo imaginário" (Lacan, 1998, p. 14).
As circunstâncias de desencadeamento nas psicoses demonstram que a estabilização alcançada na compensação imaginária pode não ser suficiente para manter a imagem do corpo, que se desestabiliza no surto. Também pode ocorrer que a própria compensação seja malograda, não atingindo sequer uma estabilidade mínima, conforme verificamos na experiência clínica com alguns psicóticos.
Focalizemos, então, o caso Mlle. B. Ela não nos servirá como um caso exemplar de compensação imaginária; pelo contrário, ela indicará o avesso. Mlle. B. irá nos mostrar o que pode ocorrer quando um sujeito não resguardado pelo Nome-do-Pai por isso, despojado de sua relação com o Outro simbólico e reduzido à relação com o semelhante procura em vão uma imagem em que possa se enganchar.
A entrevista com Mlle. B.
O caso Mlle. B. foi levado à apresentação de pacientes conduzida por Lacan em 1976. Por não se tratar de um caso clínico propriamente dito, mas de uma apresentação de pacientes, a reprodução de alguns trechos da entrevista tem o intuito de pôr em relevo algumas peculiaridades da própria entrevista feita por Lacan, principalmente no que se refere à relação construída entre os dois durante o encontro.
Ao longo da entrevista, Mlle. B. nos oferece uma série de personagens que passaram por sua vida; afirma que se parecer com alguém é condição de vida, porém, constatase que ela não consegue cristalizarse diante de ninguém. A curiosa relação de Mlle. B. com Lacan nos diz de sua posição diante do Outro: "Jacques Lacan ou qualquer outro, isto não tem importância" (Lacan, 1993, p. 7). Todos se mostram intercambiáveis, não há ninguém que se fixe diante dela.
Seu discurso é fluido e em suas associações algumas vezes por meio de um deslocamento uma mesma palavra toma diversos sentidos sucessivamente, e todo um encadeamento de pensamento precipitase em um uso coisificado do significante. Isso se verifica na relação do esquizofrênico com as palavras, que toma como coisas. Quando Lacan pergunta qual seria o seu métier, Mlle. B. responde: "Meu papel, através dos estudos que eu fiz, é de encontrar um lugar na sociedade, desempenhar um papel... os mundos imaginários... eu sou os papéis, eu os jogo fora... eu gosto muito do papel... através dos papeizinhos, dos cartõezinhos" (Lacan, 1993, p. 27).
Logo no início da entrevista, diz querer se "valorizar" e afirma ser preciso que esse valor seja reconhecido pelos outros: "Eu gostaria de encontrar um lugar na sociedade, na vida, eu não o encontro, eu estou à procura, eu não encontro este lugar porque eu não tenho mais lugar" (Lacan, 1993, p. 11).
É a mais velha de seis irmãos1, pai alcoolista e violento. Mlle. B. sai de casa aos 21 anos após ter feito um curso de estenodatilografia. Passa por diversos empregos provisórios até conseguir trabalhar por oito meses como monitora em St. Ch. um lar de crianças abandonadas, todas psicóticas. Ali realiza um ateliê com terra e cerâmica, trabalho por meio do qual "procurava uma mudança de valor justamente... Eu era uma pessoa temporária que substituía uma outra. Lá eu não substituía ninguém" (Lacan, 1993, p. 8). Em outra ocasião diz sentirse "incomodada por causa de uma sociedade que quer reconhecer alguém como tal à condição que ele seja sancionado por um diploma... Eu não tinha um diploma" (p. 12). Se considerarmos o diploma uma sanção do Outro, nesse sentido, ela não podia ser reconhecida.
Nessa época, teve a sua primeira internação com um atestado de síndrome persecutória. Após cinco meses de internação, passa a viver reclusa na região parisiense e, após diversas tentativas de retomada de trabalho, sobe em um caminhão indicando C. e internase com o diagnóstico de mania atípica. Depois da alta, reside em um quarto na casa de um médico onde cuida da filha epilética deste, além de trabalhar meio período na casa de um advogado. Em seguida à leitura de um livro sobre hipnotismo, é admitida em sua terceira internação, encontrando Lacan.
Na ocasião da entrevista, nada do que diz ganha peso nem convicção. Apesar de Lacan insistir para que ela fale de seu filho, Mlle. B. não se deixa interessar por esse assunto. Indagada por Lacan sobre o lugar que procura, diz: "eu gostaria de ter o lugar de uma mãe que ama o seu filho, eu merecia ter o lugar de mãe atraente" (Lacan, 1993, p. 11).
No momento de sua entrada na atual internação, diz ter sido hipnotizada; já durante a entrevista afirma "jamais ter sido hipnotizada ou enfeitiçada, eu não sei o que tomou conta de mim" (Lacan, 1993, p. 6). Parece ter sido influenciada por suas leituras numa espécie de sugestão. Lacan pergunta se houve um momento em que se sentia hipnotizada. Ela diz ter lido e escrito muito durante as vigílias. "Eu pensei que efetivamente eu havia sido hipnotizada porque eu havia lido livros dizendo que podese transmitir a hipnose" (Lacan, 1993, p. 12). Questionada quanto a ser uma verdadeira ou uma falsa doente, Mlle. B. revela "não ser nem verdadeira e nem falsa doente... Eu faço o que tenho vontade, eu tenho vontade de ser uma verdadeira doente, eu sou uma verdadeira doente, se eu não tenho vontade, eu não sou uma verdadeira doente" (Lacan, 1993, p. 26).
Mlle. B. diz ter a idade mental de uma criança de três anos, e logo depois afirma poder ter a idade que quiser como quinze, vinte e cinco, trinta anos, dependendo da coisa com a qual tem que se arranjar. Isto a diferencia do débil mental, pois o débil também pode se apresentar com uma idade mental inferior, entretanto, ele se fixa nela.
Acompanhando a entrevista, temos a impressão de que suas internações são apenas mais um ponto de um caminho no qual parece levada a prosseguir sem que um circuito se feche ou se defina. Lacan lhe pergunta quantas vezes esteve internada em um hospital psiquiátrico. Mlle. B. relata as três vezes. Reproduzimos aqui esta passagem da entrevista:
"Mlle. B.: um em C., um em Cl., um em P... Da próxima vez será na montanha.
Lacan: Como você foi a C.?
Mlle. B.: Eu encontrei um grande caminhão sobre o qual estava marcado C. Eu disse: 'eu vou a C.'
Lacan: Como você se fez admitir no hospital psiquiátrico?
Mlle. B.: Eu cheguei uma noite em uma hora absolutamente indevida. Eu contei ao cara uma lorota, não sei o quê.
Lacan: Uma lorota de qual gênero?
Mlle. B.: Que eu sou perseguida... então me receberam porque eu estava doente. Se eu não estivesse doente, não teriam me recebido" (p. 27).
Foi também pedindo carona que conheceu o pai de seu filho: "Eu havia me enganado de rota. Eu fui parar em uma cidade onde eu não queria ir... Foi lá que eu o encontrei" (Lacan, 1993, p. 14). Viveu um tempo com ele: "era mesmo uma coisinha sem importância" (p. 15). Vivia com ele em hotéis, sem dinheiro, até serem expulsos pela proprietária. Algum tempo depois, o pai de seu filho é preso por "desvio de fundos de caixa". Justamente ao abordar sua relação com o pai de seu filho, Lacan surpreende Mlle. B. com a sua gentileza: chamaa de "minha garotinha" quando ela esperava ser chamada de "safada ou de puta" (p.15). A partir daí, Mlle. B. fala de cartas de amor escritas para um rapaz e revela, por conta disso, ter "imitado" uma prostituta.
Em diversos pontos da entrevista, Mlle. B. descreve os personagens que imita ou com os quais tenta se identificar, sem, no entanto, deterse em nenhuma identificação estável. Diz ter se identificado a uma pessoa que não se parecia com ela: "várias pessoas que não se parecem comigo. Ao menos uma que eu conheço" (Lacan, 1993, p.13). Destacamos uma amiga de infância que, talvez, tenha servido de esboço de um eu ideal: conta ter conhecido MarieAline F. aos seis ou sete anos: "nós éramos um grupo de meninas... Eu a desenhava toda bela, por sua vez ela me desenhava toda feiosa... Eu sofria um pouco. São lembranças de amor, eu penso, as primeiras decepções de amor" (Lacan, 1993, p.13).
Mais tarde volta a falar em MarieAline F. Lacan pergunta se não era a ela que Mlle. B. havia se referido anteriormente, e pergunta: "É dela que você gosta muito?". Mlle B. responde: "É da sua irmãzinha que eu gostava muito, em seguida, eu a preferi, parecia que nós éramos parecidas, mas ela certamente não se parecia comigo, o que eu procurava na minha idéia, é ser parecida com alguém, é a condição de vida, é por isso que eu tomo a vida deles" (Lacan, 1993, p. 20).
Diz gostar de viver "suspensa como uma roupa, se eu fosse anônima, eu poderia escolher a roupa na qual estou pensando, eu vestiria as pessoas ao meu modo, eu sou um pouco um teatro de marionetes" (Lacan, 1993, p. 22). Em outra ocasião, descreve o suposto roubo de seu xale por uma mulher e diz: "ela tomava minha identidade" (Lacan, 1993, p.28). Com o roubo do xale, esse objeto que lhe pertence, levase também a sua "identidade". Aqui objeto e imagem parecem não estar distintos, diferenciados, pois com o roubo do xale/objeto vaise embora também a "identidade" /imagem.
A vestimenta
Segundo Lacan (1993), Mlle. B. não tem a menor idéia do corpo que possui para colocar sob as vestes, pois "não há ninguém para habitar a vestimenta. Ela é este pano. Ela ilustra o que eu chamo de semblante... Seria reconfortante que isto fosse uma doença mental típica. Seria antes melhor que alguém pudesse habitar a vestimenta" (p. 30). O caso Mlle. B. expressa como o sujeito pode ficar à deriva, caso a vestimenta do imaginário não tenha um corpo para habitar. Nessas condições, o registro do imaginário fica solto, incapaz de compensar o simbólico e fazer suplência ao Nome-do-Pai forcluído.
Mlle. B. referese a si mesma como "um pouco um teatro de marionetes". Ao discutir essa apresentação de pacientes, à qual esteve presente, acredita estar diante de alguém sem personalidade, pois Mlle. B. poderia ser alguém que pediria a qualquer um na rua que trocasse suas roupas com as dela. Tentar usar a vestimenta dos demais seria a sua maneira de responder se os outros eram ou não seus semelhantes (Laurent, 1989, p. 45).
Graças ao Outro, os pedaços de corpo são captados e vestidos pela imagem. Destacase, assim, a importância da imagem como uma vestimenta para os objetos pulsionais. Caso isso não ocorra, os pedaços de corpo permanecerão na desordem dos pequenos a: "esse é o verdadeiro sentido, o sentido mais profundo a ser dado ao termo do 'autoerotismo' ou sentir falta de si, ...de uma ponta à outra. Não é do mundo externo que sentimos falta, ... mas de nós mesmos" (Lacan, 2005, p. 132).
Lacan (1985) associa o hábito com aquilo que produz identificação, desde que o hábito faça Um com o corpo. "O hábito ama o monge, porque é por isso que eles são apenas um. Dito de outro modo, o que há sob o hábito, e que chamamos de corpo, talvez seja apenas esse resto que chamo de objeto a" (p. 14).
Nesta perspectiva, podemos tomar o objeto a como o que resta sob o imaginário, os dois sendo unidos pelo simbólico para formar um corpo. Dessa forma, para sustentar a imagem de um corpo é preciso que haja um resto, como produto da operação simbólica de castração. E é precisamente de um corpo que Mlle. B encontrase desprovida, restandolhe ser pura vestimenta.
Diante disso, Lacan (1993) afirma ser esta "a doença mental por excelência, é a doença de ter uma mentalidade. Não se trata de uma doença mental grave identificável, não é nenhuma de suas formas... ela vai fazer parte do número destes loucos normais que constituem nosso ambiente" (p. 30).
Doença da mentalidade
Diante dessa lição enigmática de Lacan, perguntamos o que viria a ser um doente por ter uma mentalidade. Segundo Lacan, os falantes sentem o fardo de ter uma mentalidade, pois há sempre um descompasso na tentativa de todo sujeito em transformar o seu corpo em uma unidade. Não há um encaixe perfeito entre a vestimenta e aquilo que ela vela; por isso, encontramos o tão comum sentimento de estranheza em relação ao corpo próprio, dentre outras formas de padecimento que a mentalidade nos impõe.
O corpo é a nossa única consistência, mas sem garantias, pois ele é passível de "sair fora a todo instante" (Lacan, 2007, p. 64). Desta forma, a estabilização da imagem corporal é ameaçada e ilustra os fenômenos de despersonalização e toda ordem de perturbações na imagem narcísica.
Se todo falante tem uma mentalidade e sofre por têla, por que Mlle. B. seria uma doente por ter uma? Para Mlle. B. a mentalidade não chega a conjugar vestimenta e fragmentação pulsional, deixandoa na inconsistência de um semblante fugidio.
No seminário sobre o sinthoma, Lacan (2007) sugere que ter mentalidade é o mesmo do que ter amorpróprio, "sendo o amorpróprio o princípio da imaginação" (p. 64). Poderíamos, então, considerar a doença da mentalidade como aquela onde não haveria uma consistência narcísica.
A partir de um artigo de J.A. Miller (1996) sobre a apresentação de doentes, convencionouse, dentro das escolas de psicanálise ligadas ao Campo Freudiano, chamar de "doenças da mentalidade" essas psicoses desprovidas de um ponto de basta que produza uma amarração entre o simbólico, o imaginário e o real, como outras psicoses. O diferencial é que também não caracterizariam uma psicose típica como a paranóia e a esquizofrenia. A data da entrevista coincide com o período do seminário de Lacan sobre o sinthoma, período em que, às definições estruturais baseadas nas conhecidas estruturas clínicas freudianas, somase a abordagem dos nós com a diversificação das possibilidades de amarração entre os registros; amarrações que supõem os nomesdopai, no plural.
Geralmente os "doentes da mentalidade" são "seres de puro semblante"; está aí a sua excelência e o seu caráter exemplar de doença mental. São pessoas que não conseguem estabelecer uma identificação, como observa Miller a respeito do caso de Mlle. B.,"As identificações, por assim dizer, não se precipitaram no "eu" (moi), não há cristalizador algum... Nenhum significantemestre, nada que venha lhe dar o lastro de alguma substância, nenhum objeto a que preencha seus parênteses (singular substância lacaniana, feita de falta, mas a falta que acaba por ser constante dá à pessoa de um sujeito a ilusão de sua síntese)" (1996, pp. 147148).
A doença da mentalidade, por não ter nenhuma definição estrutural, parece se aproximar, por vezes, da histeria e, outras vezes, da esquizofrenia. Diríamos que a sua referência maior é a esquizofrenia, pois lembraa em vários aspectos. Termos como flutuação, abandono do Outro, ausência de lastro, deslocalização do gozo são usados por Miller e outros psicanalistas ao se referirem a esses casos. Dentre vários traços comuns às psicoses em geral, destacamse a falta de incidência do simbólico acompanhada da instabilidade do imaginário, promovendo errância, deriva e inconsistência narcísica. Alguns desses loucos normais, no sentido de Lacan, correm o risco de passar a vida entrando e saindo do hospício, "porque não foram capturados pelo simbólico e porque mantêm, com relação a esse último, uma flutuação, uma inconsistência" (Miller, 1996, p. 146).
A referência à doença da mentalidade faz parte das discussões empreendidas pelos autores de duas publicações: A Conversação de Arcachon os casos raros, inclassificáveis da clínica psicanalítica (Miller et al., 1998) e também A Psicose Ordinária a Convenção de Antibes (Miller et al., 2005). Nesses dois estudos, abordamse tanto os casos de doença da mentalidade quanto aquela psicose considerada discreta e sem desencadeamento, em que se consegue estabilização pela via de uma amarração dos três registros. Curiosamente, não podemos dizer que Mlle. B. tenha uma psicose não desencadeada, mas também não podemos dizer que se trata de uma psicose com desencadeamento. Mlle. B. permanece em uma errância; assim, ela não é uma verdadeira doente, mas também não é uma falsa doente, exatamente como ela mesma se refere.
Vimos que Mlle. B. não se fixa em ninguém e também em nenhuma doença. Com a teoria do narcisismo, Freud (1914/1980) afirma que a paranóia e a esquizofrenia sofrem retração da libido objetal, diferenciandoas no ponto de fixação. Na paranóia há uma perda do interesse libidinal, seguida de uma regressão ao narcisismo. Já na esquizofrenia, a retirada da libido do mundo externo é mais radical e situase no autoerotismo. Podemos, então, dizer que a libido de Mlle. B. não se fixa em nenhum ponto? Que não há nenhum caminho traçado para a sua libido?
Mesmo que ela não consiga se fixar em um ponto, ou que ela não encontre nenhum traçado para a libido, podemos observar em sua entrevista que é pela relação dual, especular, que Mlle. B. minimamente se guia. Esse é o eixo que a fisga de alguma maneira, é por aí que ela tenta construir suas relações, como a tentativa de se parecer com a sua amiga de infância, questão vital para ela. Vale retomar a sua fala em relação à amiga: "Eu havia me identificado a uma pessoa que não se parece comigo" (p. 12). É por esta via imaginária que ela tenta sustentar a imagem de seu corpo, pura vestimenta.
Ao comentar as observações de Lacan sobre o caso Mlle. B., Miller (1996) distingue as doenças da mentalidade das doenças do Outro a partir de algumas indicações. Reitera, com isto, a importância da referência ao Outro para se pensar a categoria do eu. Das doenças da mentalidade fariam parte aqueles para os quais a dimensão do Outro está em déficit. O Outro na doença da mentalidade e na esquizofrenia está em déficit em relação ao Outro constituído na paranóia, um Outro sem falta que o paranóico sintetiza em sua tentativa de cura. Mas, à diferença do esquizofrênico, o doente da mentalidade não sofre do retorno de gozo no corpo, tão presente nos primeiros. E, por isso, tratase de sujeitos que se "sustentam na emancipação imaginária, na reversibilidade aa', desvario por não se estar submetido à escansão simbólica" (p. 148), seres de "puro semblante", referidos a um "imaginário desvairado sem eu" (p. 147).
Já a personalidade forte, segundo Miller, é encontrada do lado da paranóia2. Ao esclarecer as doenças do Outro, referese aos que conseguem minimamente designarse diante do Outro, mesmo que seja em um lugar de dejeto diante de um Outro absoluto, não afetado pela falta. A ligação ao Outro, neste último caso, é marcada pela certeza, como é o caso dos paranóicos. Podemos inferir daí a estreita dependência do estatuto do Outro para que as identificações se precipitem no "eu".
Vimos com Mlle. B. a impossibilidade de se produzir ao menos um enganchamento ao semelhante, solução pela via do imaginário, na tentativa de obter uma estabilização. Essa busca de identidade leva a sua vã insistência em encontrar um lugar na sociedade: "eu continuava sempre tentando encontrar um lugar, e a encontrar um 'eu mesma' nos outros" (Lacan, 1993, p. 23).
Apesar de o simbólico se mostrar determinante na estabilização de um corpo, ele não é o mais importante. Tanto o imaginário quanto o real se apresentam em uma relação interdependente com o simbólico. "Desde o gesto fundador de seu ensino [de Lacan], o simbólico tomou seu valor quanto ao imaginário, que é, de certo modo, sua pedra angular, seu parâmetro em relação ao qual o simbólico se diferencia. Nesse sentido, a referência ao imaginário permanece essencial" (Miller, 2005, p. 306).
Conclusão
Mlle. B. atesta o valor cativante da imagem do semelhante, pois procura a todo instante tomar de empréstimo a imagem do outro sem, contudo, conseguir essa apropriação. Portanto, a especificidade do caso de Mlle. B. é justamente falhar onde outros psicóticos obtêm o mínimo de estabilização oferecida pela compensação imaginária. Mlle B. apresenta tentativas sucessivas, porém fracassadas, de identificarse imaginariamente a seu semelhante, permanecendo em uma atopia uma ausência de lugar frente ao Outro. Assim, a impossibilidade de se nomear faz dela uma errante.
Os nomes-do-pai como significante da lei, princípio de separação, ou como pai em sua função de nomeação executam uma operação que faz corpo, estabilizando a imagem e produzindo a consistência corporal. Neste sentido, o corpo se amarra ao nome.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Endereço para correspondência
E-mail: cristinafred@gmail.com
E-mail: abastosg@terra.com.br
Recebido em agosto/2008
Aceito em outubro/2008
NOTAS
1 A pesquisa dos dados iniciais foi realizada por Robson F. Pereira e Adão L.da Costa (ver Psicose: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 4, (9), 1993).
2 Em uma referência a sua tese intitulada Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade de 1932, Lacan (2007, p.52) comenta que a "psicose paranóica e a personalidade não têm, como tais, relação, pela simples razão de que são a mesma coisa".